A pombagira

A POMBAJIRA

A POMBAJIRA

Para ser livre é preciso fracassar! Não me tome como insano, pois se lhe revelo uma das minhas maiores iluminações, o faço por ter sido eu próprio a cobaia de onde brotou essa sentença.

Qualquer êxito, por mínimo que seja, transforma o bem-sucedido em servo de uma prepotente implacável: a vaidade. Conquistar o sucesso é iniciar um ciclo de escravidão.

Aos 48 anos, eu não tinha problemas por ter trabalhado pouco, não me envergonhava por não haver construído nada com o suor do meu rosto; não me incomodava viver confortavelmente, graças a uma gorda parcela da pensão de minha mãe, viúva generosa de um militar falecido; menos ainda me constrangia o fato de me abrigar sob a asa materna, num amplo apartamento em Santa Teresa, próximo ao Largo das Neves. A despreocupação da cigarra é sempre muito mais saborosa do que a rotina gananciosa das formigas.

Em certa altura, para disfarçar minha sina de desocupado, convenci minha genitora a me comprar um táxi. Eu deixava de ser um vagabundo oficial para me tornar um malandro com álibi. A vizinhança ficou satisfeita, minha mãe mostrou-se orgulhosa e eu podia desfilar num carrão amarelo, mais afeito a transportar libertinas à passageiros que me remunerassem.

Com o fluir dos dias e a verdade inevitável que emerge de cada alvorecer, a vizinhança alcoviteira apercebeu-se de que eu não me tornara um regenerado da esbórnia ou um ex-boêmio catequizado. Continuava, mais do que nunca, o mesmo hedonista que afrontava o moralismo dos hábitos pequeno-burgueses. Por se sentirem ludibriados, passaram a maldizer meu táxi divulgando que ele possuía dois bigorrilhos, um que ficava sobre o teto do carro e outro que se postava atrás do volante. Infames! Mas eu desprezava essas pequenas vilezas, o que realmente me importava era abraçar os prazeres que nos proporcionam sorver as delícias do tempo presente.

Fiz-me um notívago. O Sol embalava meu sono e a Lua era a musa da minha adoração. Eu apreciava ver o dia apagar da janela do meu apartamento, o prédio se debruçava sobre um abismo que abria a vista para o Centro e parte da zona norte. As sombras começavam a exibir pequenos diamantes, pontos de luz que se derramavam por vales e montanhas. O anoitecer é uma metamorfose. Eu acendia um cigarro e o consumia em breves tragos enquanto contemplava o desabrochar daquela imensa mariposa: a Noite.

A felicidade não é um momento esparso, tampouco é uma busca interminável que devemos trilhar. A felicidade é apenas uma frequência captada quando nos sintonizamos ao que nos rodeia.

Debaixo de um céu estrelado, entro no carro, ligo o rádio, seleciono uma estação para encontrar a música que me servirá como anfetamina e alimentará o meu entusiasmo. Uma batida sexy invade a cabine do automóvel. Acelero, antes de engatar a marcha, ouço o motor vibrando, recolho a âncora e começo a navegar pelo negrume do asfalto.

Conheci Selene no baixo meretrício, a Vila Mimosa, uma menina de 21 anos, menos da metade da minha idade. Ela guardava uma eletricidade que me fascinava, além de ser uma negra bonita, de porte vistoso. Já no primeiro encontro, tivemos aquela afinidade que é fatal para os instintos, a simpatia da pele.

Eu, que era acostumado ao clima claustrofóbico dos bordéis do Centro da Cidade, fui esbarrar com a Vila Mimosa somente durante o ofício de taxista, ao levar dois nordestinos que me indicaram o caminho da Zona boêmia. Confesso que a primeira impressão que tive, ao atravessar um pequeno arco sob os trilhos da linha de trem que margeia a Praça da Bandeira, foi a de estar penetrando num lugar macabro. 

As ruas são penumbrosas e a paisagem é devastada até alcançarmos o miolo, onde tudo se parece com uma grande festa junina, é a jubilação da luxúria. Constatei que não fui eu quem conduziu os nordestinos, eles é que me arrancaram do tédio arrogante dos que não acreditam haver mais nada para descobrir. Havia a Vila Mimosa e o meu amor por ela foi brutal, desmedido!

Selene senta-se no banco do carona e não espera que eu respire para me dizer que desejava conhecer uma boate de swing naquela noite. O Rio, como toda metrópole decadente, abriga suas alcovas de devassidão. O swing, que é a prática da troca de casais, se transformou em febre entre os libertinos. Eu, que nunca me neguei à lascívia, aceitei o convite.

— Então vamos logo que hoje estou com a Pombagira! — a afirmação de Selene antecipava uma transfiguração quase literal. Durante a madrugada, eu enfrentaria a Pombagira.

Estamos em 2008, percorrer o Rio nas altas horas noturnas era navegar por uma cidade deserta, escura, os burburinhos de vida se manifestavam em ilhas esparsas e raras. A atmosfera era composta por ares que comungavam selvageria e medo. A Cidade Maravilhosa se tornara sinônimo de uma aventura perigosa e opressora.

A boate escolhida por Selene localizava-se no Centro, perto ao desamparado Campo de Santana, em frente à casa onde nasceu o Barão do Rio Branco.

Ao chegar, atravessamos uma pequena recepção, recebi uma cartela para registrar nosso consumo e a chave de um armário onde guardamos nossos pertences. Subimos uma longa escada e desembocamos num salão espaçoso. Um telão suspenso exibia clipes musicais. Em torno da pista de dança, estendia-se um prolongado sofá onde as pessoas sentadas entreolhavam-se como quem avalia a qualidade das carnes na vitrine de um açougue.

Talvez, tenha sido a bebida a responsável pela transformação. Ao final da noite, eu e ela havíamos, cada um, alcançado cinco doses de vodca com Red Bull.

Selene levanta-se e me puxa pela mão na direção a uma pequena fenda, entramos. Não havia luz, era um complexo de corredores confusos, penumbrosos, um labirinto. Pelo caminho, era possível perceber a presença de casais embolados num nó cego de braços e pernas, entregues ao mais absoluto bacanal.

Ela me viu e me chamou. Estava cercada por um cinturão de homens e mulheres, totalmente nua, possuída pela Pombajira e pela loucura da orgia. Uma serial killer do sexo! Aquela visão me intimidou, me acanhou. Eu, que sempre me considerei um desregrado sem fronteiras, me senti afrontado diante daquela volúpia coletiva. Bastaram poucos segundos para que eu abandonasse a máscara do libertino e me assumisse um pudico.

Como não me movi, ela me apontou e gritou para a turba orgíaca que eu era o seu namorado, foi o que bastou para que a embolada humana começasse a se arrastar em minha direção num alvoroço de mãos e braços formando os tentáculos de uma gigantesca Medusa erótica. Aos trancos e barrancos, driblei o polvo pervertido e resgatei Selene daquele estupro voluntário, ela cedeu a contragosto.

Voltamos para a pista e um funk embalava os corpos, todos tomados por um espírito desregrado. Selene, tal qual uma serpente encantada pela flauta indiana, iniciou uma dança em que se agachava e se empinava, simulando ondulações provocantes. Eu me mantive estático, impassível, apático. O clima devasso não me contagiou. Aborrecida com a minha frieza, ela pediu para ir embora.

Tento explicar a Selene que cada um possui seus limites, mas percebi que eu tentava era justificar para mim mesmo a minha fuga. As novas gerações já nascem com o vírus da depravação inoculado nos genes.

Entro no carro, giro a chave na ignição, piso no acelerador sem engatar a marcha, ouço o grito feroz do motor, ligo o rádio e deixo a música inundar a cabine. Provo a boca da mulata ninfomaníaca que serpenteia ao embalo do som.

O refrão estrangeiro se repetia através dos alto-falantes: “Set me free”.

Uma gargalhada estridente vaza do automóvel, deve ter reverberado como eco na Central do Brasil, era a Pombagira se despedindo. Eu havia sobrevivido! Mas a noite nunca tem fim. Solto as amarras e os pneus ganham o asfalto, meu oceano.

Meu nome? Podem me chamar de Dante.

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