FORRÓS E MEMÓRIA

FORRÓS E MEMÓRIA

— Dante, mas você escreve coisas que não tem nada a ver. Você se expõe — me diz um forista puritano por mensagem privada.

Respondo a você, afeiçoado forista, falar o que se quer é uma das liberdades que a idade traz, desde que eu fale sobre mim, não sobre terceiros. Nesta altura do meu campeonato, o personagem Dante já se confunde com o autor e o autor com o Dante, a fronteira é tênue e não me limito por pudores juvenis. Se até o suposto Jeová disse “eu sou o que sou”, por que eu, supostamente sua imagem e semelhança, não posso dizer o mesmo? Eu sou o que sou e para a opinião alheia aprendi a responder com uma palavra milagrosa: foda-se.

Outra característica da idade e das perdas que vamos sofrendo com os anos é que parece que nos apegamos mais à memória. Ultimamente, venho me recordando de muitas situações, muitos lugares, e principalmente do que vivi na década de 80 e no início da década de 90, o apogeu da minha juventude. Passei muitos anos estudando, estudo até hoje, mas quando jovem a minha fome por livros e pelo estudo tragava os poucos caraminguás que eu levava no bolso. Não à toa, construí uma biblioteca milenar. Como meus pais nunca foram de me bancar, passei a pão e água numa época em que poderia ter sido playboy, mas de todos os reveses podemos tirar pontos positivos. A dureza financeira me fez criativo.

O Rio de Janeiro de hoje não é o Rio de Janeiro de ontem, constatação óbvia. O Rio de Janeiro de hoje é uma merda, há poucas opções de lazer noturno, boates faliram, bares interessantes quase não existem e o Tinder não presta para pegar mulher. O Rio de Janeiro que eu ainda consegui viver oferecia mais diversidade e como peguei o início dos sites de relacionamento, no fim da década de 90, segui por uma trilha em que comi tantas e tantas mulheres civis que perdi a conta.

Como citei acima, como minha conta bancária era magra, eu precisava improvisar. Certa vez, um colega me falou sobre forrós (isso no início dos anos 80) e um dia decidi me arriscar em uma visita. O primeiro forró que entrei ficava no Catete, o nome era Alegria do Catete, localizava-se do lado de um hotel na Rua do Catete. Acredite, forista sem fé, a primeira vez em que entrei nesse forró me senti uma espécie de Brad Pitt. Não precisei azarar nenhuma mulher, eu era azarado por todos os lados. Ali naquele salão, entre triângulos e sanfonas, todos os meus preconceitos sociais desapareceram, comunguei com porteiros, empregadas domésticas, balconistas, auxiliar de serviços gerais. Foi um novo mundo que se descortinou e um universo de vaginas afetuosas se debruçaram sob o meu jovem pênis. Eu não tinha carro e ainda sinto o cansaço de esperar o ônibus da linha 410 passar pela Praia do Flamengo para me levar à bucólica Tijuca.

A primeira vez que comi uma mulher foi na Casa Rosa da Rua Alice, em Laranjeiras, mas a primeira vez que fiz sexo foi com uma empregada doméstica que conheci no forró. Franciele era o nome da menina, dona de um par de seios que até hoje povoam o meu imaginário. Fiz carreira nos forrós do Rio, ao contrário dos nordestinos e nortistas que frequentavam esses locais, eu me vestia igual ao Zé Bonitinho, almofadinha total, assim eu marcava a minha diferença. Da Alegria do Catete, descobri o Forró da Associação (que ficava ao lado do finado Canecão, em Botafogo); depois passei para o Forró da Praia, também em Botafogo, na Rua da Passagem; segui para o Forró do Mourisco, ali ao lado de onde hoje é a churrascaria Fogo de Chão; me apresentaram ao Forró de Copacabana, onde até pouco tempo funcionava a Mariuzinn); em Copacabana, descobri a Help, em uma época que putas ainda davam no 0800. Foram muitas, muitas, muitas mulheres, amigo forista. E posso dizer, sem falsa modéstia, que nunca paguei, pois não tinha grana para isso. Era sexo por amor.

Tudo bem, concordo que envelheci, ganhei uma barriga imoral, mas a verdade é que um neófito comum que começa sua carreira sexual no século 21, no Rio de Janeiro, irá encontrar pouquíssimas opções além dos puteiros (que também se reduziram) e forrós nem existem mais, acho que somente na Baixada. Uma pena.

Quando a década de 90 caminhava para o crepúsculo, conheci os sites de relacionamento: Par Perfeito, Como Vai etc. No início desses sites, as mulheres não exigiam fotos e eu me valia da boa escrita, com mensagens que me faziam um príncipe encantado. Depois, o contato continuava pelo telefone, onde eu simulava voz de locutor da JB FM. Tiro e queda, quando a mulher me encontrava já estava tão na pilha que a porta do motel se abria fácil. Comi muitas mulheres por esses sites de relacionamento. Dinheiro curto, criatividade imensa. Na verdade, a minha decadência como Dom Juan começou justamente quando comecei a ter mais dinheiro. A grana é inimiga da criatividade produtiva.

Infelizmente, fica a conclusão de um velho: tempos que não voltam mais…

FEITIÇO DO TEMPO 1

FEITIÇO DO TEMPO

Ontem me prometi não sair de casa, resistir à agonia de ficar enclausurado em um sábado à noite. Escolhi filmes, li um livro, comi uma pizza, mas nada disso foi suficiente para aquietar o espírito libertino. Eu precisava de alguma aventura ou, ao menos, da tentativa de me aventurar. Digo a você, afeiçoado forista, estou na fase da terceira idade em que durmo pouquíssimo, sou invadido constantemente por uma inquietude noturna que não me permite ficar aconchegado na atmosfera caseira. Vesti meu velho uniforme libertino (sim, libertinos são como heróis, usam uniformes), geralmente um vestuário em tons escuros, chamei um táxi (estou com a carteira de motorista vencida) e pedi para o piloto tocar para a rua do Senado. Passou-me pela cabeça ir para a Mosaico, na Vila Mimosa, mas fazia tempo que eu não visitava o Feitiço do Tempo. Decidi o meu destino.

Quanto mais o veículo se aproximava do Centro, mas a paisagem ia se tornando árida, deserta, silenciosa. As lâmpadas de vapor de mercúrio refletiam um cortejo de pálidas luzes amareladas, o asfalto nos conduzia pelo velório do vazio. Logo após a Praça da Cruz Vermelha, uma arena rodeada por velhos prédios carcomidos, pedi que o taxista parasse. Preferi ir a pé pelo resto do caminho. Finquei minhas botas na calçada, pisei firme e calmo, com a serenidade dos que conhecem os recantos furtivos e traiçoeiros da madrugada. Coragem não significa violência, mesmo porque violência muitas vezes significa covardia; coragem é sinônimo de ousadia e na maior parte das vezes é o contraponto à violência. Ninguém percorre tranquilo as ruas do Centro, mas a região da Cruz Vermelha é próxima à Lapa, também pontuada por bares e pés-sujos que compõe a fauna do local.

O Feitiço do Tempo é um inferninho que teve sua origem no entorno da Central do Brasil, depois o proprietário se uniu a um outro empreendedor e unificaram a firma nos arredores da rua do Senado. Neste último sábado, quando entrei na boate, tive uma surpresa que me deixou boquiaberto, o bordel está emplacando um perfil original, virando marca. Subi os degraus do antigo sobrado e quando entrei no salão tudo continuava iluminado à luz de velas, mas com velas estilosas. Do corte de luz, brotou a criatividade. A iluminação elétrica se restringia a umas poucas luzes coloridas colocadas em cantos estratégicos da pista. Avistei quatro casais, provavelmente se aquecendo antes de partirem para o Swing do Mistura Certa. De puteiro, o Feitiço do Tempo pescou a ideia de se firmar como boate temática de flash back. Achei genial.

Quando ainda estava buscando uma mesa para armar o meu acampamento, começou a tocar uma música de um passado muito distante (1987), meu melhor passado. Admito, colega forista, quando sou pego de surpresa com esses elementos que nos lançam para trás, fico a beira de me emocionar. Reconheci a música, reconheci a voz, reconheci a época. Patrick Swayze cantando She’s Like the Wind. Acredite, forista sem fé, foi neste ponto uma garota chegou perto de mim e me puxou para dançar. Morena, alta, corpo esguio que denunciava as curvas de uma falsa magra, cabelos longos presos com rabo de cavalo, um olhar intenso e sexy. A última vez que me lembro de ter dançado música lenta com uma puta foi na finada Discoteca Help, que fazia uma sessão romântica às 3h da madruga.

SHE’S LIKE THE WIND

Digo a vocês, foi foda. Que momento. Aquele corpo quente colado no meu, os passos lentos em que nos orbitávamos, as mãos dela acariciando a minha nuca, os acordes que transbordavam pelas caixas de som. O coração do velho precisou ser forte. De repente, do nada, ela me beija na boca. E aqui eu quebrarei toda a elegância do texto para poder descrever o pensamento que quase saltou nu da minha mente. Puta que pariu. Que beijo. Que cena. Nessas ocasiões é que me convenço de que a vida libertina é maravilhosa. Ainda existe magia, estimado forista. Permanecemos na pista quando o DJ emendou com Kate Bush.

KATE BUSH

— Dante, como você consegue lembrar desses detalhes? — Perguntaria o forista incrédulo.

Impossível é esquecer, meu cético camarada. E se algum forista se mostrar insatisfeito com este relato, se considerá-lo repleto de informações inúteis, descartáveis e afirmar que eu não falo do principal, o que poderei responder? Lamento pelo humano estéril que você se tornou, meu caro. O prazer está na percepção do abstrato.

Sentei-me com a mulher que me levou por uma viagem que irei me recordar até o último suspiro. Revelou-me que seu nome é Laura, tomamos umas cervejas, conversamos, namoramos e decidi convidá-la à alcova. Pedi que nos deixassem no quarto por uma hora e meia. O fim desta história resumo com sussurros, gemidos e orgasmos. Fui feliz.

Andarilho da Lapa

O ANDARILHO DA LAPA

Cansado… é a palavra que me vem à mente muitas vezes, quando estou prestes a entrar em uma sala do AA37 ou quando estou perambulando pelo Centro. Compreenda, entrei no meu primeiro bordel em 1980, depois disso me tornei um lobo desgarrado buscando saciar a fome da libido. Acredite, forista sem fé, mais do que uma necessidade, toda fome é um vício.

Foi a última noite em que saí para caçar, a mais recente, antes da invasão da falsa alegria do Carnaval. Confesso que sempre fui um velho misantropo, bem antes de me tornar um velho pela idade. Nunca gostei de muvuca, de calor humano ao meu redor, sofro de antropofobia. A única vez em que me senti bem no meio de uma multidão foi no Comício das Diretas em 1984, havia um romantismo idealista que unia e confortava quem esteve no miolo daquela turba.

Foi minha incansável insônia crônica que me jogou nos braços da madrugada, cogitei ir para a Vila Mimosa, mas concluí que seria um destino deprimente, a Av. Francisco Eugênio também não me apeteceu. Aonde ir? Copacabana já era, as frees estariam dormindo ou cuidando dos filhos. O que resta? A Lapa, o último reduto libertino, não que seja um lugar que me motive, apesar de toda a história boêmia que repousa naqueles sobrados. A Lapa continua resistindo às transformações do tempo, morrendo e ressuscitando através dos séculos.

Para o leitor casado ou àquele que está abandonando o casamento na tentativa de recuperar a juventude perdida, que se limita somente aos encontros nas salas dos corredores sombrios da rua Álvaro Alvim ou em prédios decadentes da cidade, para esses ainda é difícil recordarem-se de que o maior tesão do sexo está na adrenalina que o precede, nada que é programado favorece à adrenalina. Talvez, por isso, eu me sinta um pouco entediado atualmente, me deixei contaminar por um ritmo que não é o meu. Retomar a liberdade, o meu desejo por descobertas, é me libertar do bolor sexual dos outros.

Sei que para alguns é complicado crer que existe um mundo mundano além das salas de mulheres com anúncios, não é à toa que um ou outro forista me pergunta, após ler alguns dos meus relatos com mulheres aleatórias: “ela existe mesmo, Dante?” — Foi assim com a Gisele, com o Palácio de Cristal e com outras situações. No caso das minhas visitas ao Palácio de CristaL, dois foristas estiveram lá e me deram retorno, gostaram. No fórum não há essa cultura da rua, da caça aleatória, mesmo que envolva garotas de programa. Essa é a única modalidade que realmente me interessa agora.

Quem frequenta a Lapa com olhos de ver deve ter reparado que não é incomum sermos repentinamente abordados por mulheres que se apresentam como promoters em muitas das casas de diversões que ali estão instaladas, algumas a gente olha e sente a saliva pasma de desejo escorrer pelo canto da boca, são mulheres bonitas. O que pode acontecer é demorarmos para percebermos que algumas dessas mulheres estão ali para jogo.

Larguei um pouco a cachaça Salinas e voltei a abraçar o Black Label, o uísque é a única bebida alcoólica que opera uma transformação psicológica em mim, fico mais eufórico, mais solto, mais descontraído, chego a me sentir feliz. Após rodar para cima e para baixo na Av. Men de Sá, pedindo uma dose do Black em cada esquina em que vi um bar, decido entrar em um estabelecimento que fica entre a rua do Lavradio e a Gomes Freire, na mesma calçada da Up House. Tocava um funk quando passei em frente e me chamou a atenção uma cortina que me impedia de ver o que rolava lá dentro. Fiquei na tocaia, até que alguém saiu, a cortina se moveu e pude observar que o interior do lugar era pequeno e estava lotado. Entrei e fui recepcionado ao som de Michael Douglas…

MICHAEL DOUGLAS

PARTE 2

Saber escrever é perigoso. Você pode despertar admiração, competição ou recalques; pode erguer mundos, descrever cenários, conquistar a eternidade; pode enaltecer ou implodir pessoas; desmascarar mentiras e falsidades; pode dar fama ou relegar ao anonimato qualquer criatura ou situação que sirva como tema. A palavra é poderosa, é a arquiteta do nosso espírito, aprendo e confirmo isso à medida em que me aprimoro na articulação da língua.

É inegável que a idade pesa, mesmo que antes eu não tivesse essa melancólica noção sobre o princípio da velhice. Fui um guerreiro dos mais ativos, minha conta sobre a quantidade de ocasiões em que fiz sexo já se perdeu há tempos. Eu não poderia ter aderido ao matrimônio quando mais novo, pois seria mais um adúltero patético povoando as penumbras envergonhadas da prostituição e não suporto viver uma face de mentiras. Meu único ato de juízo foi me manter como um celibatário.

Hoje, percebo que estou maduro para um relacionamento mais estável. Talvez, por isso, eu esteja também mais suscetível às ilusões sentimentais. A experiência nem sempre nos faz imunes à malícia. Ser uma alma libertina não me priva de ainda possuir um tempero romântico. Sou da velha guarda, da safra dos boêmios que ainda amam.

Afirmo sempre que o libertino não é aquele que não ama, mas é o personagem que não se encaixou em qualquer espécie amor. É um errante, um náufrago do afeto, agarrando-se às pequenas boias que flutuam nesse imenso oceano das miragens, boias que logo afundam e o obrigam a continuar nadando. É uma vida solitária, mas em que a solidão não é castigo, é dádiva. Na ausência do amor, ama-te sem reservas ou pudores.

A passagem do tempo tenta impor aos que envelhecem um tipo de deslocamento geracional, sobrevivem aqueles que sabem se inserir em todas as épocas que testemunham e atravessam. Com o avançar da idade, precisamos escapar dos nossos próprios preconceitos e da armadilha tosca que o etarismo arma para nos encurralar. Após os quarenta anos, é preciso revolucionar-se diariamente para não se tornar um proscrito condenado pela frieza homicida do calendário cristão.

PARTE 3

O que ainda me empurra para a noite? Não tenho certeza, talvez a ansiedade, uma ponta de angústia, o breve incômodo por estar sozinho quando gostaria de me compartilhar com uma mulher que estivesse à minha altura.

O universo da luxúria é frio, principalmente no que diz respeito às mulheres. Uma prostituta tem seu lado social, de família, é onde ela preserva seus melhores sentimentos. Por outro lado, quando está com o homem que paga pela sua presença, não é incomum que assumam uma face maliciosa, que gira pelo interesse monetário, que não se importa com o outro, que quer apenas usar, se divertir com carências de forma muitas vezes implacável. As mulheres que cedem a essa bifurcação do caráter se perdem, se afogam em si mesmas. Nunca vi um final feliz em casos assim. O afeto não salva, mas atrai energias melhores.

Naquele buraco em que entrei, no meio de um bando de jovens saltitantes, envolvido pelo funk nas alturas, me senti um Matusalém. Não querendo ser pernóstico, mas sou um homem clássico, frequentador do Teatro Municipal, da Sala Cecília Meirelles, um adepto da música clássica, leitor sofisticado, me visto com sobriedade, considero-me um exemplar elegante da minha geração e cultivo tudo isso com dedicação. Estar no meio daquela arena selvagem me oprimiu, senti o impacto do choque de gerações, da ruptura com meu próprio tempo. Não suportei ficar cinco minutos naquele ringue juvenil, escapei dali como um presidiário desesperado pelo oxigênio das ruas. Também possuo meu limite de tolerância.

Voltei a perambular pelos descaminhos da Lapa, pensei em revisitar o Palácio de Cristal (PALÁCIO DE CRISTAL), mas a ausência da Gisele acentuaria o meu desânimo. Com as pernas cansadas, os olhos turvos pelo uísque, decidi encostar a carcaça no primeiro abrigo que avistei, um lugar chamado Cavern Pub. Estava cheio, uma banda de rock se apresentava, me embrenhei e pedi mais um Red Label que matei em um único gole. Creio, estimado forista, bebo pouco, mas quando saio para beber costumo compensar todos os dias em que não bebi.

A mágica acontece quando menos esperamos. Uma mulher de uns quarenta anos, trajada em um estilo gótico, surgiu do nada e se aproximou de mim.

— Desculpa perguntar. Você está bem? Achei seus olhos tristes?

O destino me pregava mais uma peça. Girei o pescoço para ver quem falava comigo e me deparei com uns olhos azuis que também teriam roubado o paraíso de Adão. A resposta à pergunta que me fez ficou entalada na minha garganta, pois me pareceu a oportunidade exótica de falar sobre toda a minha vida. Ela continuou me encarando. A banda começou a tocar Something, meus olhos quase marejaram…

SOMETHING

FINAL

Sou um insurgente. 

Sim, ao contrário do que alguns insistem em suspeitar, talvez por estarem mergulhados na ignorância da inexperiência, não escrevo ficção por aqui. Tenho na minha face de jornalista a inevitável simpatia por narrar histórias que brotam da vivência verídica do dia a dia ou do noite a noite. Aos que tentam me reprovar por escrever relatos com apelo sexual, respondo com os versos do inigualável poeta português José Régio:

“Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…”

—————————-Continuação—————————————–

— Se quiser conversar, sou psicóloga — me informa a coroa gótica.

O fato de se dizer psicóloga mais me desanimou do que motivou, no entanto, a torrente incessante do destino me oferecia a oportunidade de uma conversa inesperada. Perguntei se eu poderia pagar uma bebida, ela pediu uma caipirinha e aceitei o convite do acaso, despejei minhas infelizes experiências recentes no ouvido da suposta psicóloga. Ao terminar, lembrei-me de que não sabia o nome dela.

— Demmy, não estranhe. Sou filha de americanos — ela me responde.

Pela cor imaculada do azul dos olhos, tomei como verdade a origem do nome. Pareceu-me que estávamos os dois no mesmo patamar de embriaguez, Demmy foi muito simpática, demonstrou uma capacidade rara de ouvir sem julgar. Permanecemos ali, debaixo de um toldo com a inscrição “Boemia da Lapa”, trocando as nossas impressões sobre o vertiginoso ato de existir.

Com a conversa esgotada, me despedi de Demmy e segui no meu périplo noturno pela velha Lapa. Segui até ao Bar das Quengas, que nos meus tempos mais juvenis era um pé-sujo democrático frequentado por putas e travestis lutando pela sobrevivência. Busquei um lugar vago e sentei-me, pedi outro uísque. Sinceramente, perdi a conta de quantas doses de uísque tomei naquela noite, mas eu continuava um ébrio dono da razão.

— Tá sozinho, rapá? — perguntou-me um sujeito na mesa vizinha.

Respondi que sim.

— Tu é carioca? Senta aqui com a gente, somos de Manaus e estamos visitando essa cidade da porra.

A contragosto, mas por cortesia, troquei de lugar e me acomodei na mesa do amazonense, ele estava acompanhado de duas mulheres, uma delas grávida. Falei sobre o Rio, sobre a minha origem gaúcha, ele dissertou sobre Manaus e sobre sua própria vida. Contou-me que já tinha sido morador de rua em São Paulo, mas hoje é um orgulhoso empresário na área de informática. Expansivo, apresentou-se como Edvaldo, apontou para a morena bonita agarrada ao seu ombro, revelou ser sua namorada. Teceu elogios à grávida do meu lado, futura mãe solteira.

O interessante é que não detectei qualquer sotaque nos manauaras, talvez amazonenses não tenham sotaque, foram os primeiros que conheci de perto.

— Conhece algum lugar bom para a gente ir? Para virarmos a noite na farra? — me pergunta Edvaldo.

— Olha o lugar que conheço aqui por perto talvez você não aprove, é uma boate. Uma boate de swing.

O grupo se entreolhou e Edvaldo solta a exclamação.

— Homem, é tudo que a gente queria. Conhecer as sacanagens dessa cidade. Por isso, viemos à Lapa. Vai com a gente? Swing é casal, temos que formar dois casais.

— Mas ela também vai? — apontei para a grávida.

— Claro que eu vou — a própria gestante respondeu.

Quando dei por mim, estávamos os quatro entrando na boate Mistura Certa, com a grávida segurando em meu braço. Chamava-se Kássia, uma loira bonita que me fez lembrar a atriz Cheryl Ladd quando jovem.

Edvaldo encheu a mesa de bebidas. Eu estava entrando no começo desconfortável das vertigens alcoólicas, mas não quis estragar a festa. A namorada do Edvaldo era uma morena realmente lindíssima, cabelos longos, rosto de traços finos, olhos negros e expressivos, um corpaço de parar trânsito. Edvaldo cochichou ao meu ouvido que se tratava de uma garota de programa, amante de um advogado e que topou viajar para o Rio com ele pela “modesta” quantia de sete mil reais.

— E a grávida? — perguntei.

Também era uma garota de programa que deu mole e engravidou de um cliente que se comprometeu a bancar o filho.

No meu íntimo mais profundo, eu pensei: definitivamente, putas e libertinos se atraem como o mercúrio. Depois da Demmy psicóloga, a casualidade quase previsível me coloca no meio de um putanheiro com duas garotas de programa a tiracolo. Quem sabe ainda me livro dessa sina me submetendo a um descarrego?

Edvaldo e a morena fizeram a festa no labirinto da luxúria. Eu, que nunca havia ficado com uma grávida, me meti em uma cabine e recebi um dos boquetes mais arrepiantes da minha carreira, além de uma sequência de beijos na boca capazes ressuscitar Lázaro.

Fim de festa, o excesso de doses de uísque agora me provocava náuseas mais incômodas, preferi me despedir do grupo. Perguntei quanto devia a menina, Edvaldo disse que nada, tudo por conta dele, incluso nos sete mil reais. Por via das dúvidas, puxei duzentos e cinquenta reais e entreguei na mão da gestante, que me deu outro beijaço na boca como agradecimento.

Despedi-me de todos eles. Antes de sair, ouço a derradeira pergunta de Edvaldo.

— Homem, não seu teu nome, nem perguntei.

— Dante, meu nome é Dante.

VINHETA

Fiz sinal para um táxi, desfaleci na minha cama e quando acordei nem eu mesmo acreditei nas memórias que transbordavam em mim