Fausto Fawcett na Cabeça: o anacronismo do moderno

Fausto Fawcett na Cabeça: o anacronismo do moderno

Fui assistir ao documentário “Fausto Fawcett na Cabeça”, dirigido por Victor Lopez. Gostei.

Não faço crítica de filmes, ofereço impressões pessoais. Fausto ainda é o poeta psicodélico dos anos 80. Envelheceu fisicamente, mas continua moderno e inquieto, morando em uma Copacabana que não é mais a Copacabana que o gerou como artista. As boates dedicadas à luxúria feneceram, a Discoteca Help está soterrada sob as ruías de um museu eternamente inacabado. A rua Prado Júnior é um eco de lembranças boêmias que não mais pulsam. A avenida Atlântica é palco de punguistas.  Porém, Fausto ainda é lembrado e cantado nos versos icônicos de Kátia Flávia, a godiva do Irajá.

Com todos os meus amigos aderindo ao matrimônio precocemente ou seguindo por caminhos distantes da minha jornada, eu costumava perambular pelas noites de Copa, pelos inferninhos. Por muitas vezes ancorei no balcão do Cervantes para tomar um chope e esbarrava com Fausto Fawcet também batendo ponto no local. Fausto representava a efervescência criativa das noites erotizadas e boêmias de Copacabana.

Infelizmente, Copacabana se transformou em um bairro de indigentes de marquises e perigos sorrateiros que não existiam de forma tão agressiva nas noites das décadas de 80 e 90. Muitas boates foram engolidas pelas falências promovidas pela pandemia, mas também foram vítimas de uma limpa moralista aplicada àquele território. Cancelaram a prostituição, mas ela ainda existe nos guetos mais subterrâneos.

São melancólicas as cenas em que Fausto caminha pelas ruas de Copa, durante o dia, e percebemos que ele mesmo é o representante de um passado que não sobreviveu ao século 21. Porém, sobreviveram os seus versos de rap na boca de frequentadores dos botecos resistentes.

Regininha Poltergeist foi a musa loira que se encaixou com perfeição no som de Básico Instinto: a loura pólen, sangue, mel. A nossa nacionalização da Sharon Stone. Fausto enaltecia as loiras e fazia delas as protagonistas de suas letras. Também erotizadas, mas protagonistas.

As cenas de Fausto e sua banda tocando dentro das ruínas do inacabado Museu da Imagem e do Som são magníficas. Acredito que Fausto tenha conhecido e frequentado a Discoteca Help, o maior tempo da luxúria carioca de frente para o mar. É a Help que está sepultada sob aquele museu inconcluso, é ali que jaz um dos maiores símbolos das noites cariocas. E Fausto Fawcet canta sobre a tumba da luxúria, talvez em uma homenagem subliminar. Quem sabe?

O documentário é sobre o personagem que sobreviveu ao tempo, que continua moderno em sua postura, mas deslocado nesta nova realidade de um purgatório onde restou muito caos e pouco da beleza, bem menos libertária do que as noites dos anos 80. A narrativa nos seduz. Vale assistir.

Paulo Francis: o iconoclasta

Paulo Francis: o iconoclasta

“Por que persistirmos nessa ilusão? Literatura no Brasil, como de resto quase tudo, é feita para a classe média e desta para cima. Essa gente admira Jorge Amado porque acha divertidas as suas histórias, porque partilha a generosa visão do autor sobre os fracos e oprimidos ou, o que é mais provável, as duas coisas. O povo cava o seu suado que pague a geral nos estádios ou vê televisão, comprada a prestações”

—Paulo Francis

Costumo dizer que se eu fosse uma ovelha, seria a ovelha negra. Por isso, Paulo Francis me inspira, não pelas posições política e sociais, não concordo com muitas, mas pela fluidez do texto, pela capacidade de mexer com pensamentos acomodados, pelas reações passionais que desperta quando emitia opiniões. O que seria do mundo se não houvesse os que caminham na contramão.

Como Francis, às vezes recebo uns conselhos meio chinfrins, de gente que não me conhece e me nivela pelo clichê. Estou longe de ser um clichê emocional. Por isso também aprecio ler a obra que Paulo Francis deixou. Para quem consegue assimilar o seu estilo, estará agregando muito à própria escrita.

Sabendo que o personagem é controverso, que na reta final se tornou um arauto da direita política, mesmo assim não posso negar, nesta leitura tardia que faço de “Diário da Corte”, um incontido prazer ao ler os seus textos, ao percorrer as linhas em que ele descreve generosamente o Brizola e em outros que discorre sobre diversos temas e personalidades. Um iconoclasta com carisma e que sabia produzir conteúdo. Goste dele ou não, na paisagem árida e paupérrima do jornalismo atual, Paulo Francis faz falta.

Eu não me entrego, não

Eu não me entrego, não

Com a noite do Rio reduzida à velha Lapa e outros poucos sítios, fui beber no Baixo Gávea e terminei entrando em um teatro. Esta crítica, surpreendentemente, foi compartilhada pela página da peça e por um veículo de imprensa.

Um ator baiano com sete décadas de uma carreira riquíssima, Othon Bastos testemunha sua consagração absoluta aos 91 anos de idade, com uma disposição que nos causa assombro. A peça “Não me entrego, não” está em cartaz no Teatro Vanucci, com previsão de se manter por lá até o final de junho. Acrescente-se que o espetáculo até aqui não possui nenhum patrocínio, algo que diz muito sobre a forma como tratam a nossa cultura e os nossos maiores nomes da arte.

Em um colégio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, após declamar um poema de Olavo Bilac, Othon teve o talento condenado por uma professora, que o fez prometer que nunca se dedicaria a qualquer carreira artística. A partir daí, ele tomou a decisão que dizia definitiva, se dedicaria à odontologia, seguiria a nobre profissão de dentista. O enredo se desenrola em uma vida marcada pelos imprevistos, Othon estava predestinado a outro caminho.

Convocado por Pachoal Carlos Magno, fez sua estreia num coro que funcionava como “eco” (termo usado por ele) do ator principal da peça. Depois, foi para Londres com a Companhia de Paschoal e por meses atuou no palco britânico como figuração muda de um soldado inglês, persistiu, repleto de esperança em uma oportunidade, até que se tornou inviável a sua permanência na Inglaterra.

A partir do filme de Glauber Rocha — Deus e o Diabo na Terra do Sol — não precisamos dizer mais nada. Othon germinou como ator de forma irreversível. No entanto, em uma profissão que foi inicialmente negada por ele, evidencia-se a força da vocação e o seu maior capital humano: a perseverança.

Transparecendo um vestígio de mágoa, Othon cita em uma de suas falas que por muito tempo ele funcionou como um “coadjuvante de luxo”. Agora, mesmo assim, lota uma sala de teatro nos três dias em que se apresenta e demonstra toda a sua potência ainda pulsante. É incrível assisti-lo na pele do seu próprio personagem.

Outro aspecto interessante, é possível observar o estarrecimento do público, não com o Othon, mas com a sua idade, com os seus 91 anos veementes e impetuosos sobre o tablado. Uma revelação sorrateira da moléstia não assumida do nosso etarismo, o único preconceito que contradiz a natureza do homem. Em uma sala com centenas de pessoas, é muito provável que Othon fosse a pessoa mais cheia de entusiasmo entre nós.

Saímos do teatro contagiados pela exuberância cênica de Othon, saímos impregnados da sua imortalidade, encharcados da sua expressão que transborda em nós. Despedimo-nos do teatro invejosos daqueles 91 anos mais joviais do que todas as nossas juventudes somadas. Viva o teatro. Viva Othon.