A catraca

A CATRACA

Hoje, só sobrevivem do tal lupanar o trauma de ex-virgens acuados e as reminiscências dementes de idosos nostálgicos da distante e desbotada virilidade.

Aconteceu no meio de uma tarde ensolarada. Bateram à minha porta e avisaram que havia chegado a hora. Como se tudo já estivesse combinado, o pai empilhou uns tostões na minha mão, me colocaram num carro e parti para o desconhecido.

Quem visse o meu semblante tenso, poderia supor que me conduziam à força para o DOI-CODI, nunca imaginariam que aquela viagem tinha como destino o crepúsculo da minha insossa inocência pelo alvorecer temperado da luxúria. O trajeto, por caminhos tortuosos, embalou na subida de uma ladeira no Rio Comprido, mergulhou num túnel esquecido e desembocou na enigmática Rua Alice.

Como se não bastasse o pânico do novilho ameaçado pelo abate, incomodava-me a ideia de um randevu localizado numa via batizada com o mesmo nome da minha bisavó. Para um garoto recém-catequizado, a sugestão do pecado ganhava sons incestuosos e desestimulantes. Não demorou para que estacionássemos em frente àquela fastuosa mansão cravada às margens do nobre bairro de Laranjeiras. Que vista! Rodeada pela paz da paisagem bucólica, erguia-se a rosácea e imponente construção, cercada por um muro que lhe dava o aspecto de fortaleza. Se me afirmassem que era um convento, eu acreditaria. No centro da murada, um arco apresentava o portão destrancado, acesso que se abria para os mistérios da carne. Ignorando as minhas pernas trêmulas, a boca seca, a voz afogada, meus companheiros me empurraram para o interior da arena das leoas. Entrei em cena como um personagem inútil, jogado de última hora nas páginas do Decamerão.

Recordo, com certo pudor, que as minhas primeiras manifestações libidinosas ocorreram quando eu assistia ao seriado “Jeannie é um gênio”. A imagem erotizada daquela odalisca loira piscando os olhos me causava a precoce mágica incompreendida e constrangedora da ereção. Talvez, Barbara Eden tenha sido o símbolo sexual de uma geração de ingênuos.

Por dentro, o casarão de Laranjeiras lembrava um cabaré rústico de filmes do velho oeste americano. O piso de madeira, mesas espalhadas por um amplo salão de grandes janelas escancaradas que revelavam a curiosidade de árvores indiscretas. Sentamos e nos serviram uma cerveja. A alguns metros de nós, uma bela balzaquiana, de pele clara e longos cabelos lisos, fumava abstraída do ambiente. Um dos meus camaradas mais desembaraçados a selecionou como protagonista da minha temida estreia. Nunca me esqueci do nome da mulher: Selma.

Ela se aproximou, perguntou o meu nome e me estendeu a mão… num ato de submissão, não resisti. Caminhamos juntos até a beira de uma longa escadaria que levava aos aposentos superiores, Selma me soltou, seguiu por uma brecha lateral e apontou o local por onde eu deveria subir. Estaquei perplexo diante da visão: uma catraca, semelhante às roletas que reinavam nos ônibus antigos.

Com a mente perturbada por aquele momento crucial, ao qual me lançavam sem manual de instruções, me apaguei a imagem da catraca. Fiquei fascinado. Como poderia um puteiro alcançar tal inteligência? Freud sofreria orgasmos antes do sexo ao perceber que a catraca assumia o significado mais perfeito da prostituição. Como são cruéis as traduções exatas do universo. Um sujeito cruzou meus olhos e atravessou insensível os braços abertos da roleta, eles estalaram e imediatamente o contador em sua base fez girar os números que se assemelhavam a uma carreira de dominós caindo uns sobre os outros. Não havia romance, não transpirava amor, apenas a fria e exata sequência matemática. Aquele vislumbre mecânico aquietou meus sentidos e como a Selma me aguardava no topo da escada, entreguei-me ao abraço gélido da catraca. Fui mais um dígito intrépido acrescentado ao milhar. Subimos à alcova…

Um imenso quarto de teto alto, uma velha cama de casal, uma pia com sabão de coco e papel higiênico formavam o kit libertino. Selma perguntou se era a minha primeira vez, não sei se ela compreendeu a resposta, pois eu só conseguia balbuciar. Ela tirou a roupa e imitei a coreografia. Ela se deitou e eu me joguei ao seu lado olhando para o teto, que parecia estar a quilômetros de distância. Ela toca no meu segredo, na profunda intimidade do meu ser. Sinto uma forte descarga elétrica percorrer o corpo, um torpor de todas as sensações. Acabou. Não havia mais nada a fazer, a não ser pagar.

Ao sair, não precisei passar pela catraca. Dígitos descartados não contam. Os amigos perguntavam como tinha sido a experiência, continuei balbuciando. Não perdi a virgindade naquele dia, mas descobri a ejaculação precoce. Estive na Casa Rosa e a catraca não me deixa mentir. Jurei sobre o sêmen que escreveria este capítulo. A catraca é o mundo.

Brisa

BRISA

A Help, saudoso e difamado inferninho, um épico de Copacabana. Cravada na Av. Atlântica, a boate confrontava orgulhosa o oceano, sem esconder a sua vocação libertina. Templo preferido das garotas de programa e dos gringos peregrinando em busca de aventuras sexuais.

Em muitas ocasiões, me serviu como refúgio, abrigando meus solos pelas madrugadas. Por dentro, uma festa psicodélica, guardava as dimensões de um coliseu, com paredes revestidas de lantejoulas azuis e a pista iluminada por estroboscópios refletidos em enormes globos espelhados. Sobreviveu à virada para o século 21 como um cenário imutável dos anos 80. Hoje, demolida, está perto de virar o Museu da Imagem e do Som. Ali jaz a luxúria, fossilizada e morna sob o mausoléu de concreto.

Foi entre amazonas, caçadores e forasteiros que ela despontou da arena erótica e me pediu uma cerveja. Morena e bonita, não neguei a gentileza. Bebemos e conversamos por algum tempo, até que a jovem me disse que não queria trabalhar naquela noite e me convidou para sentar à beira da praia e esperar o Sol nascer. Estranhei o chamado, mas aceitei. Acomodados na areia, me ocorreu que eu não havia perguntado o nome da mulher.

“Brisa” — ela me responde. Imaginando que fosse apelido de guerra, perguntei pelo nome real.

“É Brisa” — confirma mostrando a carteira de identidade com registro na Bahia.

Que força milagrosa carrega a natureza. Cultiva flores em desertos e sopra brisas poéticas na penumbra árida dos porões humanos. Consegue inspirar uma prostituta a abdicar da grana, apenas para assistir os primeiros raios do dia ao lado de um homem qualquer. Então, com um beijo delicado, a alvorada banhou-se no mar.

Ser Libertino

SER LIBERTINO

Em sua concepção moderna, o termo libertino refere-se aos pensadores e literatos europeus que se abstraíam dos princípios morais do seu período, como aqueles relacionados à moral sexual, sendo caracterizado também como um hedonismo extremo.

O libertino é um lobo desgarrado, renunciou à matilha. É filho do destino, não de uma escolha voluntária. É consequência das desilusões, do longo celibato, da ausência de filhos. Em quase todos os casos, o libertino é o último da sua linhagem, sem descendentes reconhecidos ou conhecidos, “não deixa a ninguém o legado da nossa miséria”. Para um libertino, a vida é uma experiência que ele realiza através das viagens boemias e da luxúria intensa. Viver é ousar, o lema dos libertinos. O sexo como última fronteira, a noite como habitat, o amor como armadilha, a solidão como fé.

Para um libertino, não há nada de melancólico em estar só, a solidão é a alma absoluta da sua liberdade, uma liberdade tão pujante que pode ser perigosa, que ele mal sabe como usar. O libertino nasce do seu próprio acaso, como quase nunca se reproduz está sempre à beira da extinção. É espécie rara e noturna. O sexo para um libertino é como a jugular pulsando sangue diante de um vampiro, é fome ancestral e insaciável. A cada orgasmo, ele se vê diante de um corpo morto, é preciso outro, mais outro e mais outro.

A marca Os Libertinos surgiu em 2018, criada para um grupo de WhatsApp que tinha como membros indivíduos que se conheceram em fóruns sobre erotismo e encontros sexuais, majoritariamente homens que buscavam prazer como mulheres liberais. O grupo do WhatsApp acabou, mas a ideia permaneceu. Tentaram clonar o nome, porém nunca alcançaram o seu espírito. Ideias podem ser roubadas, mas o sucesso é intransferível. Aqui renasce um blog que irá registrar as jornadas boemias e libertinas com histórias surpreendentes e baseadas em casos reais, por mais que possam parecer incomuns. Existem muitas pretensas cópias de Os Libertinos por aí, mais eis aqui o original.

Não se imita um libertino, não se copia. Um libertino é aquele que se torna libertino, não aquele que apenas escolhe ser. Liberte-se.