Eu não me entrego, não

Eu não me entrego, não

Com a noite do Rio reduzida à velha Lapa e outros poucos sítios, fui beber no Baixo Gávea e terminei entrando em um teatro. Esta crítica, surpreendentemente, foi compartilhada pela página da peça e por um veículo de imprensa.

Um ator baiano com sete décadas de uma carreira riquíssima, Othon Bastos testemunha sua consagração absoluta aos 91 anos de idade, com uma disposição que nos causa assombro. A peça “Não me entrego, não” está em cartaz no Teatro Vanucci, com previsão de se manter por lá até o final de junho. Acrescente-se que o espetáculo até aqui não possui nenhum patrocínio, algo que diz muito sobre a forma como tratam a nossa cultura e os nossos maiores nomes da arte.

Em um colégio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, após declamar um poema de Olavo Bilac, Othon teve o talento condenado por uma professora, que o fez prometer que nunca se dedicaria a qualquer carreira artística. A partir daí, ele tomou a decisão que dizia definitiva, se dedicaria à odontologia, seguiria a nobre profissão de dentista. O enredo se desenrola em uma vida marcada pelos imprevistos, Othon estava predestinado a outro caminho.

Convocado por Pachoal Carlos Magno, fez sua estreia num coro que funcionava como “eco” (termo usado por ele) do ator principal da peça. Depois, foi para Londres com a Companhia de Paschoal e por meses atuou no palco britânico como figuração muda de um soldado inglês, persistiu, repleto de esperança em uma oportunidade, até que se tornou inviável a sua permanência na Inglaterra.

A partir do filme de Glauber Rocha — Deus e o Diabo na Terra do Sol — não precisamos dizer mais nada. Othon germinou como ator de forma irreversível. No entanto, em uma profissão que foi inicialmente negada por ele, evidencia-se a força da vocação e o seu maior capital humano: a perseverança.

Transparecendo um vestígio de mágoa, Othon cita em uma de suas falas que por muito tempo ele funcionou como um “coadjuvante de luxo”. Agora, mesmo assim, lota uma sala de teatro nos três dias em que se apresenta e demonstra toda a sua potência ainda pulsante. É incrível assisti-lo na pele do seu próprio personagem.

Outro aspecto interessante, é possível observar o estarrecimento do público, não com o Othon, mas com a sua idade, com os seus 91 anos veementes e impetuosos sobre o tablado. Uma revelação sorrateira da moléstia não assumida do nosso etarismo, o único preconceito que contradiz a natureza do homem. Em uma sala com centenas de pessoas, é muito provável que Othon fosse a pessoa mais cheia de entusiasmo entre nós.

Saímos do teatro contagiados pela exuberância cênica de Othon, saímos impregnados da sua imortalidade, encharcados da sua expressão que transborda em nós. Despedimo-nos do teatro invejosos daqueles 91 anos mais joviais do que todas as nossas juventudes somadas. Viva o teatro. Viva Othon.

Cancun

CANCUN

Frequento a Cancun desde a inauguração, dividida entre boate e uisqueria, onde sempre preferi ficar. Foi e ainda é um ambiente agradável, agora restrito somente ao bar, pois a boate fechou. Peguei a época do simpático maître argentino, sempre me atendeu bem. Infelizmente, como todas as boates do Centro, a Cancun decaiu na qualidade ao mesmo tempo que ainda eleva os preços do seu cardápio de opções.

Sexta-feira, fim de tarde. Paro em um boteco raiz no Beco dos Barbeiros e dou uma calibrada antes de entrar na Cancun.

Recepção fria do porteiro, que se limita a entregar a comanda. Esse porteiro pouco simpático sempre me abisma por ainda estar por lá.

Olho a tabela, o programa mais barato, de 30 minutos, custa 300 reais. O programa de 1 hora está 380 reais.

Além disso, temos os 70 reais mínimos de consumo obrigatório.

Resultado, casa vazia em uma sexta-feira em um suposto horário de pico.

Pouquíssimas garotar realmente bonitas, destaque para a loira Mia.

Não tive coragem de gastar mais de 500 reais por uma bimbada na casa. Saí no zero a zero. Na saída, a caixa me questiona o porquê de eu não ter feito programa.

Até quando esse pessoal vai continuar tentando manter valores que não condizem com a realidade e com aquilo que oferecem? A 65 fechou porque a realidade se impôs, a 502 agoniza eternamente, a 44 vive ainda da fama e a Cancun parece se contentar com a mixaria que circula pelas mãos dos raros clientes que ainda a frequentam.

É preciso mudar o modelo.

RUA DA LAMA

RUA DA LAMA — NOVA IGUAÇU

NO TÁXI

Adormeci com a cabeça recostada no banco de trás de um táxi que atravessava a Avenida Presidente Dutra em alta velocidade. Sonhei com um passado remoto, no seio da juventude, quando um primo endinheirado me levou em uma viagem para Saint-Tropez, na Riviera Francesa. Foi um marco na minha existência, as festas, as boates, as mulheres inacreditáveis que pareciam importadas do Olimpo. Despertei subitamente com o motorista batendo em minha perna.

— Chegamos, amigo — ele me avisa.

Eu me senti como Neo recebendo a pílula vermelha de Morpheus. Da paradisíaca Saint-Tropez envolta em perfumes afrodisíacos, acordei entre a fumaça e o cheiro de churrasco de botequim num lugar chamado Rua da Lama, em Nova Iguaçu. Não foi a minha primeira escolha, eu pretendia conhecer o bordel Top Night, também em Nova Iguaçu, mas por sugestão do próprio taxista alterei a rota. Só pode ter sido sacanagem do sujeito.

RUA DA LAMA

Já se fazia noite alta, a região exibia bares cheios e movimento heterogêneo de pessoas andando de lá para cá. O som de pagode misturado à gritaria do funk açoitavam os tímpanos. Sem saber aonde ir, procurei um pouso provisório e aterrizei em um bar de esquina. Peço uma dose de uísque e o garçom me chega com uma garrafa de Teacher’s

— Não tem Black? — pergunto.

— Black?! — ele me devolve a pergunta.

— Deixa pra lá… — desisti.

Encheu o copo sem gelo e saiu.

Fiquei contemplando aquela paisagem de destroços de guerra, tentava me situar, buscar o objetivo da missão. Um casal jovem ao meu lado parecia simpático, perguntei se havia alguma boate boa na área.

— Tem a Site — me respondeu a mocinha com uma surpreendente voz de tenor do Teatro Municipal. Estranhei…

Bebi mais uma dose de uísque e fui procurar a tal boate Site. Segundo me informaram, ficava numa rua vizinha ao ponto em que parei. Tudo soava como se eu estivesse em uma aldeia nos confins da Amazonia. Não precisei andar muito, logo avistei uma construção carcomida pelo tempo, tijolos sem embolso, um pessoal excessivamente eufórico na entrada e uma recepção que me trouxe a mente a imagem do Trem Fantasma do antigo Tivoli Parque.

— Onde eu compro ingresso? — perguntei.

— Aqui — informou-me uma mocinha com expressão de quem planejava um assassinato.

A SITE

Paguei e fui conduzido para dentro da boate. O ambiente escuro, um palco enorme ao fundo da arena, uma pequena entrada ao meu lado esquerdo camuflada por uma cortina gasta. Do meu lado direito, outra entrada de onde brotava o som de um funk proibidão tão ensurdecedor que ameaçava o que me resta de audição. Girei até encontrar o bar interno em que comprei uma cerveja, me posicionei em um canto e contemplei o cenário.

A realidade se impôs, eu estava em uma boate LGTBA mista, muitos travestis circulavam felizes. Também havia mulheres, todas jovens. Na verdade, a frequência era predominantemente jovem, o que me fez desconfiar de que eu seria o personagem mais velho presente. Não tenho problemas com boates alternativas, já passei da idade de autoafirmar a minha masculinidade. Vivo. E gostar de viver implica em conhecer e descobrir todos os temperos da vida.

A Site, diferente do Palácio de Cristal (Lapa), só realiza shows com as divas divinas travestis. Não há strippers mulheres como a bela Gisele. Estagnado por muito tempo no mesmo canto, decidi me mover e entrar na pista do funk. Foi um erro, eu mal conseguia atravessar a multidão comprimida que dançava em saltos coletivos, pois qualquer iniciativa individual se mostrava inviável. Um pulava, todos eram obrigados a pular, inclusive este velho e deslocado escriba. Quando dei por mim, estava em saltos ao som de Beat do Pica Pau. Tipo baile de favela.

Com esforço hercúleo, empurrando e sendo empurrado, consegui retornar à pista maior. Voltei a respirar. Não suportando mais o som ambiente, preferi emparelhar o meu aparelho auditivo com o celular em alguma música aleatória que me resgatasse daquelas batidas caóticas.

MANIETER

Acredite, forista sem fé. Não duvide, florista de sapatilha. Não tema, florista de pantufas. Foi este o momento em que ocorreu o primeiro clímax, uma morena alta cruzou a pista da boate, cabelos negros e compridos, ostentando um corpo de Miss Universo, encaixada em um macacão sensualíssimo e decotado até a alma. Salivando, acompanhei a sua passagem.

Eu estava com aquele desprendimento que só o álcool é capaz de proporcionar. Inebriado pela presença descomunal daquela fêmea, movido por um ímpeto ébrio irrefreável, executei a abordagem.

— Boa noite. Posso te pagar uma bebida? — entrei de sola.

A mulher me olhou de cima abaixo, reparei que ela me superava levemente na altura, deu um sorriso xoxo e respondeu.

— Só se for um guaraná. Eu não bebo.

O tom da voz me soou peculiar. Por algum desses mistérios inexplicáveis, o timbre me fez lembrar da Goiabada Cascão. Creio que a moça percebeu o meu semblante confuso e complementou a resposta.

— Você sabe que sou uma Lady Boy, né?

Lady Boy”… meus neurônios precisaram de mais alguns segundos além do tempo regulamentar para processar a informação. A expressão era nova e inédita no meu dicionário mental, mas compreendi a mensagem.

— Sem problemas — respondi tentando aparentar total naturalidade — vou pegar e já volto.

Sou educado e tento ser um homem moderno. Voltei, entreguei o guaraná antártica à sincera Lady Boy e avisei que ia dar uma circulada.

Retornei ao meu posto inicial. Sem que eu percebesse a aproximação, uma mulher se colocou na outra ponta da minha mesa e me mostrou um copo como quem insinuasse desejar beber comigo. Compartilhei a minha Original. A menina tinha uns olhos verdes que faiscavam no breu da boate, cabelos Chanel, usava uma bermuda branca que não escondia as coxas grossas, um top anunciava o abdômen sarado e os seios firmes. Ela bebia, me olhava e sorria. Fiquei bolado, mas puxei conversa.

— Qual seu nome? — iniciei.

— Paula.

Meus pensamentos buscavam traduzir a possibilidade de ser outra Lady Boy, pois naquela escuridão nada era definitivamente identificável.

— Você é gay? — a moça me perguntou sem cerimônia.

Como responder que não se é gay no centro de uma boate prioritariamente gay? Melhor ser honesto.

— Não, não… sou curioso — a resposta foi meticulosamente calculada para amenizar o impacto.

— Aham… — devolve Paula.

Paula contou-me que foi encontrar uma amiga que não apareceu, é moradora de Miguel Couto, se surpreendeu quando soube que vim da bucólica Tijuca. A menina demonstrava os efeitos do álcool, estava visivelmente embriagada, alegre demais. De repente, esticou o braço, apontou o dedo e me perguntou…

— Vamos ali?

A direção do dedo apontava para a cortina surrada que vi quando cheguei na boate.

— Ali? O que é ali? — perguntei.

— Vamos que você vai ver.

A CORTINA

Atrás da cortina a escuridão ficou mais intensa. O que se escondia ali só pode ser comparado a uma suruba improvisada. Vultos embolados, bocas agachadas, gemidos pairando como neblina, um calor de corpos que me fazia suar.

— Você pode me emprestar 50 reais? — solicitou Paula ao pé do meu ouvido surdo.

Puxei a carteira sem enxergar absolutamente nada, acendi a lanterna do celular e fui saudado por uma vaia.

“ÔOOOOooooooo… Desliga essa porra!”

Saquei a nota de cinquenta, enfiei na mão de Paula e apaguei a lanterna. Por segurança, coloquei a carteira debaixo do sovaco e segurei o celular entre os dentes. Senti a garota desafivelar minha calça, puxá-la ao chão, arriar minha cueca e me abocanhar sem piedade num boquete com a boca em brasa. Um mata-leão que me nocauteou rápido, lancei meus espermas às trevas e alguns outros na boca de Paula. Com o corpo ainda trêmulo pelo orgasmo, esforcei-me para puxar a cueca e a calça para a posição correta, pedi ajuda à Paula, mas ninguém respondeu.

Movimentei as mãos a procura do corpo da menina, mas só esbarrei no vácuo. Chamei-a novamente e nada. Eu não enxergava um palmo além do meu nariz, queria encontrar a saída, a única opção foi ligar novamente a lanterna do celular…

“ÔOOOOOOOoooooo…. Desliga essa merda!”

Foi como escapar de um dos círculos do Inferno. Paula desapareceu. A madrugada aproximava-se da fronteira do amanhecer. Deixei a boate e pedi um Uber que demorou quase meia hora para chegar.

Recostei a cabeça no banco do carro. Dessa vez, os sonhos não me levaram de volta à efervescente Saint-Tropez de um passado distante. Apenas apaguei, mergulhando na minha própria escuridão enquanto o Sol lançava os primeiros raios que fazem a Terra brilhar diante do imenso vazio obscuro do universo.

Termas Continental — Série museu libertino

Termas Continental — Série museu libertino

A Termas Continental era um templo glorioso que existiu na Tijuca entre o final da década de 80 e a década de 90. Tive a sorte de viver o alvorecer da minha juventude nos anos 80, mesmo o princípio dos anos 90 também guardaram um encanto e um charme que este novo século não possui. Quase vizinho do lendário Aldir Blanc, eu pegava meu carro ou ia caminhando até a mansão da luxúria em frente à estátua do Bellini.

Lembro-me de certa noite inesquecível em que entrei na boate e tocava “Vogue”, na voz de Madonna. Senti uma euforia, um prazer de viver absurdo.

VOGUE

As mulheres dançavam, se alisavam, flertavam com clientes e me senti em um raro e absoluto estado de graça. Hoje tenho mais consciência de como são rarefeitos esses momentos em que somos tocados pelo momento, pela consciência do presente e pela exuberância do existir. Foi nessa mesma noite que comi uma mulata com um dos rabos mais perfeitos que vi em toda a minha vida, grande, redondo, arrebitado, sem qualquer traço de celulites ou estrias. O melhor de tudo, ela fazia anal. Eu caminhava pelo início do meu aprendizado sexual e foi na boca da mulata que gozei a primeira vez com um sexo oral. Eu queria comer a mulata para o resto da vida, mas a perdi de vista. Para não dizer que nunca mais a encontrei, uma vez cruzei com ela na linha 415 (Usina-Leblon), de madrugada, quando eu retornava do Forró de Copacabana, mas, sabendo que ela não me reconheceria, evitei o contato.

A Termas Continental não foi o meu primeiro bordel, mas foi o que eu adotei por muitos anos, até que acabasse. Na recepção, ficava uma senhora mal-humorada que, apesar disso, nunca roubou na conta. Essa Termas poderia ser comparada a uma Centaurus da Tijuca, ressaltando que as instalações eram simples e a degradação do ambiente avançou rápido. Sempre cheia, era o point do Tijucano promíscuo. É inacreditável não existir mais uma casa de grande porte na Tijuca, um dos bairros com mais putanheiros por metro quadrado.

A casa da Termas Continental ainda está lá, diante da estátua do Bellini, morta, sendo devorada pelo tempo, consumindo-se em ruínas. Ainda é possível ler no alto da fachada as marcas da inscrição do seu nome. O tempo passou e resta pouco do que conheci quando tudo era apogeu. 

BOATE FLÓRIDA

BOATE FLÓRIDA

Somos fantasmas colonizando o tempo, os lugares pelos quais passamos, as lembranças daqueles com quem cruzamos, os amores que vivemos. Somos fantasmas pairando pelo nosso próprio rastro de vida.

Há poucas semanas atravessei a Praça Mauá, foi como se eu ultrapassasse um portal e me visse, através dos olhos do meu espectro, o cenário dos meados da década de 1990. As luzes, os sons, os bares abarrotados de homens famintos por sexo e mulheres de programa, as boates nos convidando à luxúria, foi como assistir a região portuária ressuscitar de um passado morto e sepultado por museus e novas camadas de concreto.

Reencarnado no meu fantasma de outras eras, estacionei o meu carro nos arredores da Avenida Rio branco e me preparei para subir os degraus estreitos da Boate Flórida. A nostalgia é uma arapuca perigosa, um labirinto difícil de se escapar, mas me deixei tragar pelo passado, retomei os resquícios da juventude desperdiçada na boemia improdutiva, revi o sombrio viaduto da perimetral, tomei um chope no antigo pé-sujo embaixo do inferninho, observei o porteiro da Scandinávia tentando pescar clientes, respirei o aroma libertário da maresia ancestral e decrépita que emergia do mar.

Tudo no mundo é frágil, tudo passa, quando me dizem isso toda a graça de uma boca divina fala em mim” — estes versos da poetiza Florbela Espanca ganharam mais vulto à medida em que envelheci. As árvores das calçadas resistem, os sobrados centenários e carcomidos se mantêm de pé, talvez a peça mais frágil da existência sejamos nós, que transpomos os anos inundados por uma torrente incessante de perdas que nos descaracterizam e corroem a nossa identidade.

Quando entrei na Flórida da minha memória e contemplei a pista da boate, revivi a emoção, a adrenalina dos dias remotos, mas jamais esquecidos. Pouca luz, mulheres dançando nos queijos que circundavam o ambiente, o DJ em sua cabine tocando os sucessos da época, os garçons incansáveis, gringos e brasileiros unidos pelo desejo em uma arena apinhada de garotas dispostas a nos conceder o orgasmo. Todos esses elementos formavam uma pequena maquete da felicidade para o pândego errante que não pensava no amanhã. Uma convenção de cigarras reunidas enquanto as formigas dormiam.

Na minha jornada proustiana, Be my lover vibrava nas caixas de som, o álcool, misturado às batidas da música, despertava a euforia coletiva. Pelas grandes janelas panorâmicas da Flórida, eu conseguia ver as águas mansas de uma Baía de Guanabara pontuada por pequenos brilhos distantes e misteriosos.

BE MY LOVER

Uma stripper gaúcha se apresenta no palco, alta, longos cabelos negros, um corpo irretocável e sinuoso. Desnuda-se, sabe do poder que enfeitiça os olhos que a esmiúçam em cada pedaço de sua pele. Eu a aprecio fascinado, ela se ondula no ritmo da melodia que transborda à sua volta. Sento-me em um canto, peço um martini, a bebida doce e rascante aquece a minha garganta, as pupilas se dilatam, os brilhos intensificam-se, as mulheres se tornam hipnóticas. Foi quando me deparei com uma loira colossal requebrando-se em um dos queijos, o corpo esguio, as pernas torneadas, os cabelos cacheados desabando sobre os ombros, os olhos ardiam verdes em contraste com as luzes de neon, ela sorria e despia-se impudica. Sensual como se fosse a manifestação física da luxúria, não consegui parar de encará-la, até que ela percebeu a minha presença. Sinalizei e convidei-a para se sentar ao meu lado, ela veio após terminar seu show.

Michele o seu nome, de perto ainda mais linda, paranaense em temporada no Rio, veio atrás do dinheiro e dos gringos ancorados no porto. Alta, devia atingir 1,70m, olhos verdes, lábios carnudos, pernas longilíneas e bem torneadas, barriga chapada, uma perfeição perdida naquele caldeirão de promiscuidade. Paguei algumas bebidas e perguntei se podíamos ficar juntos (não existiam quartos na Flórida nesta época). Ela aceitou, me informou o valor do cachê e me disse que poderíamos ir para o seu quarto no Hotel São Bento, localizado na esquina da Rua São Bento com Av. Rio Branco, naquele tempo restringia-se a um pulgueiro que abrigava prostitutas e clientes. Concordei e saímos juntos da boate.

No quarto do hotel, ela se despe lentamente, me encarando, como se quisesse me provocar, liga o rádio, dança ao som de Zombie, música que marcou aquele ano…

ZOMBIE

Pediu que eu me deitasse, veio por cima de mim como uma felina em chamas, lambeu meu rosto, meu tórax, minha barriga, deslizou sua língua até a minha virilha e abocanhou meu jovem pênis com o prazer de uma mulher que gosta de chupar um homem. Estremeci, mas lutei contra a ejaculação precoce, ela sobe novamente sobre o meu corpo, monta meu tronco como uma amazona e cavalga como a Sharon Stone em “Instinto Selvagem”. Leva a boca até a minha boca, sem interromper a cavalgada, me beija, lambe meus lábios, rebola mais intensamente. Resistir seria inútil, gozei meus infantes espermas ainda cheios da energia da flor da minha idade.

Voltei outras noites à boate Flórida, voltei outras noites ao Hotel São Bento, voltei mais e mais noites aos braços e abraços de Michele. Não me lembro quando deixamos de nos encontrar, quando parei de vê-la. O tempo é um rio caudaloso que vai erodindo tudo a nossa volta, deixando um vazio onde antes reconhecíamos nossas referências, até nos arrastar em seu fluxo para um mistério que desconhecemos.

Quando despertei de mim mesmo e retornei ao hoje, o Sol afogava-se colorindo o mar com o reflexo laranja de suas chamas, me senti sozinho naquele cenário agora irreconhecível para os meus olhos, não havia mais Michele, não havia mais Flórida ou Scandinávia, o pé-sujo se sofisticou e o jovem que eu abandonei no tempo nunca quis me acompanhar no meu envelhecer. O rio segue e eu ainda tento nadar contra a corrente.