CARNE FRIA

CARNE FRIA

1

Descerrou os olhos devagar, contraíram-se dolorosamente com a sensação da luz. Um gosto amargo subia do estômago para a sua boca. Levantou-se lentamente, desequilibrado, apalpava cada mínimo apoio que encontrava para sustentá-lo. Não havia pensamentos, seu cérebro era uma nebulosa em formação. Existia só o mal-estar…

Sobre sua camisa pendia a gravata frouxa enlaçada ao colarinho e um paletó amarrotado. Estava sem as calças, mas continuava com os sapatos. Encontrou suas calças em cima da cama, ele havia dormido no chão. Fez questão de compor-se e arrastou-se até o banheiro.

Escorou-se na pia e se deparou com o espelho. Olhou, olhou, olhou… Não conseguia se reconhecer, não lembrava sequer do seu nome. A face contorceu-se numa expressão involuntária de angústia.

Jogou água ao rosto, aos lábios… Tentava livrar-se do gosto amargo da boca.

Suas mãos estavam sujas, as unhas encardidas por um vermelho vinho… Ele encarava o espelho, investigava os seus próprios olhos, mas o reflexo não lhe contava nada. Naquele instante, tudo era um grande segredo.

Cambaleante, retornou ao quarto.

Surpreendeu-se com a presença de um corpo na cama. Era uma mulher, ele reconhecia, era o corpo de uma mulher. Uma mancha rubra e viscosa tomava metade do lençol. Ele não entendia.

Achegou-se à cama.

Olhou, olhou, olhou… O corpo nada lhe dizia.

Tocou na carne alva sobre o colchão, sentiu um estranho choque. Assustou-se!

Carne fria!

Lembrou-se! Lembrou-se de um gosto de ferro, do gosto de sangue, do sabor amargo em sua boca. Era uma mulher, estava deitada sobre uma mancha rubra, entre os seus seios havia um corte que ainda fazia vazar a fonte do vermelho vivo incrustado em suas unhas.

Velou o corpo por horas, mergulhado naqueles olhos estáticos e abertos. Só havia o vazio. A Morte não lhe dizia nada.

Seu rosto modificou-se em frustração. Entediou-se.

Sentindo-se mais revigorado, saiu por uma porta que estava entreaberta, desceu alguns lances de escada, rompeu uma portaria deserta e viu-se tragado por um brilho fortíssimo e quente. O sol.

Sua pele parecia tomada por chamas. Tudo era intenso, ardia. Ele caminhou muito, sem rumo. Ouvia sons, música, vozes… Ele compreendia as palavras, mas não atinava o sentido. A cada passo, ficava mais firme, mais forte. Porém, aquela imensa claridade abrasava sua pele, consumia seus olhos.

Ele estava em frente ao mar e uma brisa morna enxugava o suor do seu rosto. Não suportava toda aquela luz, buscava uma sombra. Sentou-se defronte ao oceano. Olhou, olhou, olhou… O infinito é um confessionário inexpugnável e não lhe revelava nada.

O gosto acre em sua boca começava a se dissipar, mas ele não sentia alívio.

Voltou a caminhar, não havia mais sol. Todos os seus membros pareciam exalar um frescor que renovava o seu ânimo. Era noite… estava exausto das luzes, procurava abrigar-se nas sombras noturnas que acobertavam as esquinas.

O gosto amargo havia sumido e ele tinha sede.

Sua mente era uma cortina negra, não havia memória, mas ele sabia para onde estava indo. Penetrou numa rua decorada pela penumbra, mulheres seminuas o observavam da porta de casebres. Dentre todas, avistou uma bem jovem, ele a queria. Aproximou-se sem dizer nada e ela assentiu com um olhar.

Combinados no silêncio, foram para um pequeno quarto de hotel, perto de onde estavam. Não havia palavras. Quando a porta se fechou, ela despiu-se revelando a nudez promíscua. Ele sentiu o toque suave das mãos pequeninas em seu tórax. Ela fitou seus olhos e o instinto o fez saber como agir. Deitou-a na cama e beijou-lhe o vinco entre os seios.

Sua boca estava seca, a garganta doía. Ele tinha sede.

O semblante dela transfigurou-se numa imagem de terror. Descobriram, ambos, os motivos pelo qual estavam ali.

2

A claridade da manhã fez seus olhos abrirem e os castigou com o flagelo da luz. Ele esticou-se e girou os olhos em torno de si mesmo. Não havia memória. Tudo era como sempre foi, um hermético mistério…

Havia um gosto azedo em sua boca, um gosto de ferro, um gosto de sangue…

Viu um corpo ao seu lado e uma mancha rubra no lençol. Era uma mulher. Ele a tocou e saltou para trás num ato de repulsa.

Velou o corpo por horas.

Carne fria!

Deixe uma resposta