A gênese do libertino

Cada libertino tem o seu ponto de virada, um marco único para cada um, gatilhos distintos que dissolvem o casto e fazem nascer o promíscuo. Fui um adolescente e um jovem adulto extremamente romântico, contaminado pelos nefastos filmes hollywoodianos da Sessão da Tarde. Quando isso se quebrou? Quando a inocência se esfacelou contra a parede da realidade que a vida, em algum ponto, nos impõe? Creio que ocorreu em um processo gradativo, que culminou no rompimento súbito e brutal entre o jovem ingênuo que fui e o homem desconectado dos amores idílicos que me tornei.

As fêmeas costumam acusar os machos de infiéis, posso concordar com isso, mas não é possível aceitar a restrição somente ao gênero masculino. Eu, por exemplo, sempre fui fidelíssimo nas minhas antigas relações românticas, me portei como um homem dedicado e carinhoso, mas atravessei o karma de conhecer uma sequência de mulheres dissimuladas e desleais. Chamam esse fenômeno de “dedo podre”. Meu dedo, de tão podre, gangrenou e já não aponta para mais nada. Se eu fui tão habitualmente enganado, alguém poderia dizer que devo ser um amante fraco, sem gravidade suficiente para manter qualquer mulher em minha órbita. É possível que essa explicação esclareça o desvio, mas não o justifica.

Nas primeiras experiências em que fui traído e depois rejeitado, não reagi de maneira sã, pois eu insistia em retomar os laços, ia às raias da humilhação para tentar me reaproximar da infiel. Carência? Provavelmente. As lembranças que guardo desses meus momentos de rastejo me envergonham, mas todos nós temos uma via crucis a percorrer e percorri a minha, uma estrada que me fez experimentar a indignidade, a tristeza massacrante e o desprezo absoluto. É impossível não sair transformado de travessias assim. Um libertino é uma alma órfã, com cicatrizes abissais.

Não há um padrão para quem assimila a infelicidade. No meu caso, me recolhi em mim mesmo, como lagarta tecendo o casulo, mergulhei nas minhas trevas, na minha solidão, desenvolvi uma nostalgia insalubre por alguns períodos do passado em que me ancorei. Todos os libertinos possuem uma árvore genealógica, têm pai e mãe. Os meus progenitores são o desterro e a melancolia. A figura do libertino, que parece solar e livre, é consequência das feridas emocionais provocadas pelos estilhaços de muita ilusões destroçadas. Renasci da minha própria implosão.

O amor não é um sentimento, nem sequer é uma perturbação. O amor é a cilada dos instintos, um condicionamento psicológico e biológico que nos bombardeia por toda uma existência. Não é fácil arrebentar as correntes, não é simples despertar de Matrix. Quando é inevitável acordar, o que vemos é um mundo árido, habitado por delirantes que reverenciam uma trilha de mitos inexistentes.

— Você é pessimista, Dante — diria o leitor incomodado com o desengano deste texto.

A realidade jamais será otimista, afeiçoado leitor. Há os dias de sol e de frescor primaveril, que nos fazem sentir como sementes que desabrocham eufóricas com o mundo, mas também há os tantos dias que avançam cada vez mais cinzas, em que lutamos contra os cadáveres acumulados que nos assombram. O libertino é aquele que começa a enxergar a fugacidade do existir, os riscos das constantes intempéries, a dissolução do universo que o rodeia, por isso adere ao celibato e não procria. Ciente da finitude de tudo, o libertino aperta os grãos de areia fina nas mãos e explora todo o prazer de senti-los escorrer por entre os dedos.

Ninguém nasce libertino, torna-se. Nenhum libertino brota da felicidade, mas do desencanto. O libertino não é filho das manhãs ensolaradas, ele germina nas noites mais escuras. Podemos dizer que todo libertino é como um anjo decaído; é um Adão trapaceado por Eva e expulso do falso paraíso, paraíso que era, na verdade, uma prisão moralista. O libertino, apesar do desgosto que carrega, compreende a revelação suprema: a alegria do resistir são os picos dos orgasmos aleatórios, o desfalecimento após o coito, o fastio da carne que separa os corpos e o retorno irrevogável à solidão original que nos habita. O libertino veio do pó e termina em pedra.

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