Black Or White

BLACK OR WHITE

“Sou um organismo cibernético, tecido vivo expandido em um endo-esqueleto de metal. Ciborgue T-800, sistema Ciberdyne, modelo 1-0-1. Fui capturado e reprogramado para essa época no ano de 2029, com o objetivo de garantir a sobrevivência de John Connors, líder da resistência humana contra a Skynet. Venha comigo, se quiser viver.” (Terminator)

EXTERMINADOR DO FUTURO

Os pneus do automóvel, com marcas cruas de lanternagem, chiavam sobre o negrume do asfalto, o céu cor de chumbo respingava lágrimas sobre as paisagens esquecidas do Rio de Janeiro. Atravessar a Tijuca em direção ao bairro de Bonsucesso é semelhante a uma viagem de trem fantasma ou a um trailer do Exterminador do Futuro, cuja música não me saiu da cabeça durante o percurso. Um libertino não teme, mas também não perde a noção do perigo. Meu destino era a Black White, onde encontraria outros replicantes da minha mesma espécie.

A passagem pelo bairro do Rocha, Benfica, a travessia pela Avenida Leopoldo Bulhões, um cenário urbano que nos faz pensar que aquelas regiões sofreram alguma hecatombe recente. A penumbra de um semideserto, com velhos casarios em ruínas e prédios malcuidados, erguem-se em sombras de mistério e solidão. A única luz de vida que pude avistar no trajeto veio do bar Velho Adônis, local que ainda preciso conhecer de perto. Favela do Arara e Manguinhos tracejam diante dos meus olhos curiosos.

Chego ao destino. Entro em uma boate vazia, mas que rapidamente foi recheada por muitas mulheres, mas os clientes continuaram poucos. Bebo, misturo Brahma com Ice, o que me garantiu uma desagradável dor de cabeça no dia seguinte. Algumas garotas se apresentaram para mim, dispensei todas, não porque não fossem interessantes, mas pela minha preferência de ficar livre até escolher a fêmea para o abate. Abate talvez seja uma expressão forte, pois Pikachu, o breve, se mostrava indisposto naquela noite e provavelmente me renderia pouco sexo e um grande vexame.

A BW tem um clima simpático, algumas garotas realmente interessantes, perdidas na Zona da Leopoldina. O comandante da casa, muito educado, veio me cumprimentar, perguntou se estava tudo bem, sabia até que sou escritor. A fama corre. A princípio, fiquei em dúvida entre três moças, depois entre uma loira atraente chamada Lolita e uma morena extremamente sexy que usa o nome de Melissa. O papo com a Melissa fluiu, a menina se mostrou sem restrições, me deu um beijão de língua na pista e foi mais rápida para me convencer a escolhê-la. Alcova.

O período de uma hora na BW na suíte não é barato, mas considerei que Melissa merecia e subimos. No quarto pude vislumbrar seu corpo despido do minúsculo biquíne, um corpão de empolgar defunto cremado. Cintura finíssima, bundão esférico, barriguinha zero e um par de seios de adolescente que me fez salivar mais do que faz um sunday do McDonald’s.

Beijos fartos, roçadas perigosíssimas, chave de perna, gemidos estonteantes de Melissa e um boquete que faria inveja à despudorada Linda Lovelace. Entre gargantas profundas e esfregas de alta tensão, quase caí na armadilha da ejaculação precoce, mas para não sucumbir pedi que Melissa ficasse de quatro e tremi daquela paisagem que poderia ser confundida com a descoberta do novo mundo por um marujo desavisado. Ajoelho-me e penetro com respeito religioso naquele templo úmido e quente, a vagina. Estocadas leves que aumentam com o entusiasmo. Pikachu, o breve, se vê obrigado a atuar com disposição diante daquele monumento tropical que é Melissa. Gozei horrores, ejaculei a tabela periódica, a minha árvore genealógica e o tratado da evolução de Darwin. Despenco arfando no colchão que guarda com o silêncio de um monastério todas as fodas que sustentou e testemunhou naquela pequena suíte.

Encerrado o embate, ficamos abraçados, eu e Melissa, conversando sobre a vida. Ela ainda parecia estar cheia de fogo, enquanto eu não passava de um trapo tentando voltar a respirar no ritmo normal. Hora da despedida. Retorno à bucólica Tijuca pela Avenida Brasil, funil onde nossas vidas convergem. Ali, não existem belas paisagens, o que predomina é a realidade, feia como podem ser as realidades, retrato da nossa degradação. I’ll be back

Blue House e o existencialismo libertino

BLUE HOUSE E O EXISTENCIALISMO LIBERTINO

O rádio tocava Something In The Way, do Nirvana. O táxi escalava em marcha lenta, num quase sem fôlego que cobiçava o alto da estrada Grajaú – Jacarepaguá.

Something In The Way

Pela janela, eu contemplava a cidade, cemitério de vivos, se reduzir a pequenos pontos de luz, luzes brancas e amareladas, um pálido véu de estrelas falsas contemplando a imensidão enigmática do cosmos. Qual o sentido da vida que morre? Não conseguia evitar filosofices enquanto os pneus sofridos giravam em direção ao destino que escolhi. Viver sem buscar sentido, talvez seja a resposta. Meus olhos mergulhavam na mata árida, na favela que só encontra significado na miséria, na escuridão que me espreitava se misturando ao meu semblante interrogativo. As batidas da música me afogavam em mim mesmo.

Da Tijuca até a Blue House é um estirão. O taxista tagarelava reclamando dos passageiros, do trânsito, da vida. “Qual o sentido da sua vida?” — senti vontade de perguntar —, mas a resposta ele me oferecia com o seu papaguear interminável: é o caos que não aspira sentido algum.

Descendo a serra, minha mente submergia num Rio de Janeiro profundo, uma Gotham City sem Batman. Comungado com os pneus, com ritmo da canção estrangeira, eu corria em direção ao caos que me faz esquecer que não há sentido em nada, pois não pode haver sentido em vidas que morrem. Talvez, o único sentido da vida seja o orgasmo, a explosão de prazer que anseia germinar outras vidas sem sentido, num ciclo interminável de nascimento de natimortos.

A estrada de Jacarepaguá exibia bares luminosos, lotados de gente se alcoolizando, para esquecer, em busca do gozo que, numa duração de poucos segundos, nos eterniza neste planeta condenado.

— A boate está perto, é mais ali na frente — me avisava o taxista tagarela.

Eu vestia uma calça jeans, uma blusa escura e calçava as minhas botas inalienáveis. Ser libertino é o meu sentido, ser essa sombra que vaga pelos cabarés e pelos corpos mornos das prostitutas, sou a sombra que brilha. De súbito, o motorista diminui a velocidade. Chegamos. Pago os cinquenta reais da corrida e finco minhas botas na terra que circunda aquele território desconhecido.

Na recepção, sou recebido por um sujeito mal-encarado que pede o meu celular e mete pedaços de esparadrapos nas câmeras do aparelho.

— É por segurança. Já tivemos problemas — ele me explica por entre os dentes.

Recebo uma comanda, outra porta se abre e estou dentro da boate. Mesa de sinuca, pequenos sofás, bebidas espalhadas por bancadas redondas e triangulares. A luz tênue da boate projeta silhuetas com pouca roupa dançando, o espaço não é grande. Mulheres na pista, mulheres chegando, a atmosfera de flertes gananciosos e olhares lúbricos compõe o enredo do inferninho.

Uma loira altíssima, de corpo cavalar, me encara. Decido me aproximar. Ela me conta que também cumpre expediente na 65. Pergunto o nome, pergunto o que faz na cama. “Não beijo na boca” — a resposta me faz descartá-la imediatamente. “Uma mulher que custa 400 contos na 65 e não beija na boca” — murmurei com tom de indignação. Malandra, antes da resposta fatal, conseguiu me tirar um drink caríssimo como brinde.

Vaguei pelos cantos do lugar tentando encontrar uma presa, eu estava determinado a foder. Mulheres que não me interessam se aproximam, eu as descarto sem permitir que se demorem na abordagem. Ela veio caminhando em passos lentos, mulata de 1,70m, cabelos curtos, dotada de curvas vertiginosas e olhos que pingavam sensualidade a cada passo que ela dava. Vinha em direção ao bar, na minha rota de interceptação. Não hesitei, interrompi a rota da mulher.

— Preciso saber seu nome — perguntei.

— Bárbara. E o seu?

— Dante. Meu nome é Dante.

Perdoe-me pelo trocadilho infame, afeiçoado forista, mas a Bárbara é bárbara. Uma beleza sem exuberâncias nos traços do rosto, mas o corpo curvilíneo, a bunda empinada que poderia estampar capa de revista, os olhos de ressaca que causariam inveja à Capitu de Machado de Assis… Bárbara é o abismo do tesão. Conversou comigo sem pressa, bebemos juntos, ameaçamos beijos públicos e impudicos, ela esfregava sua pele na minha e roçava seu rabo irretocável no meu combalido pênis. Pedi uma alcova. Quarenta minutos por 180 reais, no cartão sai por 220 pilas.

Ela me conduz ao quarto, um quarto amplo, com box e chuveiro, poderia ser o aposento de algum motel barato e de boa qualidade. Gostei. Bárbara me avisa que irá pegar seus apetrechos, aguardo. Ela volta rapidamente, se despe do minúsculo biquine e me beija com a sede de uma mulher que atravessou a secura de um deserto. Nossas línguas se enroscam, Bárbara geme, me abraça com força, esfrega-se em mim, roça sua vagina em meu pau.

“Que porra de mulher maravilhosa” — eu pensava.

Acredite, forista sem fé, Bárbara é realmente maravilhosa. É daquelas que se entrega completamente, goza, chupa desejando sugar o nosso sémen. Alertou-me de que não fazia anal, mas no quarto conduziu meus dedos para o seu cuzinho macio e apertado. O altar é o cu — asseverava o Marquês de Sade com a propriedade do maior libertino que existiu. 

Bárbara cavalga em mim com o rosto virado para o meu, me beija, me lança seus seios duros e bicudos para que eu os lamba; me cavalga de costas, pede que eu enfie o dedo em sua bunda, geme alto, parece gozar; fica de quatro, eu ajoelho diante daquele templo sexual e o penetro rezando um Pai Nosso.

Bárbara pede que eu a chupe e caio em sua vagina como um mouro orando à Meca. Ela se contorce, grita, goza outra vez. Abre suas pernas e me convida para a mais básicas das posições, subo por cima do seu tronco, penetro novamente em sua boceta e meto enquanto nossas línguas se entrelaçam num nó cego. 

Gozei sentindo o infinito dos segundos em que os espermas saltam para a armadilha dos instintos. Desabei esgotado ao lado de Bárbara, semimorto. E naquele vazio depois do orgasmo, naquele breve momento em que deixamos de existir, lamentei por aqueles espermatozoides que jamais encontrarão um óvulo, senti a solidão ancestral de todos os libertinos, essas sombras que brilham. 

Bebel Sucuri

BEBEL SUCURI

Loucuras não se explicam, se cometem!

Foi numa sexta-feira, início da noite. Eu estava confortavelmente acomodado no escritório de casa assistindo umas fitas de um seriado antiquíssimo que um amigo da TV Globo conseguiu gravar: Xazan e Xerife. Alguns irão lembrar, era um programa com o Flávio Migliaccio e o Paulo José. Nostalgia braba. De repente, o telefone toca tão alto que chego a me assustar.

Teixeirinha do outro lado da linha.

– Dante?

– Fala, Teixe! O que manda?

– Preciso da sua ajuda hoje.

– Pô, mas hoje? Já estou até de pijama!

– Tem que ser hoje.

– Diz.

Eu havia tirado carteira de motorista há pouco tempo, me sentia inseguro ao volante. O Teixeirinha, com o pretexto de me ajudar a praticar mais a direção, me pediu para levá-lo até um

Motel na Av. Brasil, alegando que uma namorada insistia em conhecer o tal recanto. Ele, no entanto, queria ver primeiro onde ficava o prédio de alcovas.

– Mas Teixeirinha, por que você não vai com o seu Corcel e já leva logo a mulher?

– Cara, o Corcel está parado, quebrou a cruzeta!

– Quebrou o que, Teixe?

– A cruzeta!

– Cruzeta?!

– É, mas deixa para lá! Coisas do Corcel! Estou quase indo num Antiquário para poder consertá-lo. Mas vamos logo!

– Tudo bem. Vou me arrumar e passo na sua casa.

Bastou meia hora e eu estava na Av. Vinte Oito de Setembro pegando o Teixeirinha e depois ajustei o leme para a Av. Brasil.

O céu estava carregado. Chuva anunciada. Quando passamos em frente ao Caju, o Teixeirinha me informa que sua intenção era localizar o Motel Carbonara, ficava em Bangu.

-Pô, Teixeirinha! Você quer ir até Bangu só para saber onde fica um Motel?! Que isso?!

– Cara, preciso saber onde fica esse troço. Motel na Brasil eu não confio.

– Caramba! Mas a sua namorada não tem tara por um motel mais perto, não? Querer transar num motel de Bangu nem é mais tara, é perversidade sexual!

– O importante é que ela quer me dar, Dante! E se a fantasia dela é transar em Bangu, alugo até um barraquinho lá, o que não posso é perder a mulher.

Viajamos por quase quarenta minutos para aplacar a obsessão do Teixeirinha. O Carbonara ficava na altura do Conjunto da Marinha, a entrada era pela Brasil. A cena foi ridícula, identificamos o Motel aos gritos histéricos e fanhosos do meu amigo. Costumo descrever a voz do Teixeirinha dizendo que ela não está muito longe de uma dublagem do Pato Donald e é bem por aí mesmo.

– É o Carbonara! É o Carbonara, Dante!

– Beleza! E o que a gente faz? Entra e tira um cochilo?

– Perde o amigo, mas não perde a piada, né? Vamos voltar.

– Voltar? 

– Voltar. O retorno é ali na frente.

E voltamos. O Teixeirinha, cheio de sono, me orientou sobre o trajeto antes de começar a madornar do meu lado.

– Dante, não tem erro. É uma reta! Quando perceber que estamos saindo da Brasil, você me acorda. A gente pega a Francisco Bicalho e vamos sair na Praça da Bandeira. Molinho! Coisa de criança! Você me chama se ficar enrolado. E dormiu…

Na altura de Irajá, em direção ao Centro, uma tempestade desabou sem pedir licença. Eu mal podia enxergar meio metro à frente do carro. Fui prosseguindo devagar no caminho. Nisso, o Teixeirinha desperta por alguns segundos.

– Com essa chuva é que vou ficar constipado de vez! – Diz meu amigo.

– Constipado, Teixe?! Isso é o que?

– Estou ampliando meu vocabulário.

– Praticando o boiolês.

Com o meu copiloto novamente apagado, alcancei Manguinhos, onde a chuva havia perdido parte da força. Mantive-me na reta.

– Teixeirinha! Acorda! Estou subindo um viaduto. Faço o que depois?

– Viaduto?! Que viaduto?! – Fala o Teixe enquanto se espreguiça.

– Você é que tem que me dizer! – Respondo.

– Cara, que merda! Isto não é viaduto! É a Ponte Rio – Niterói!

– Putz! E vamos fazer o quê?

– Relaxar e aproveitar a paisagem. Não tem mais jeito.

– Pô! E onde a gente vai parar?

– Advinha? …

– Esquece! Já sei.

E, como nem eu e nem o Teixeirinha tínhamos um conhecimento profundo sobre a geografia de Niterói, fomos nos embrenhando pelo seu interior.

– Teixe, onde a gente está?

– Não sei, Dante. Vamos procurar alguma placa que nos tire daqui.

Placas eram ficção no lugar onde estávamos e, sem saber como, fomos desembocar em Charitas. Resolvemos parar o carro e tomar uma cerveja num bar próximo à praia.

– Vamos ter que comprar um mapa para sair daqui. – Digo.

– Cara, vamos seguir as placas!

Acontece que todo libertino sofre de um fenômeno conhecido como a Síndrome do Mercúrio. Ou seja, um libertino sempre atrai outro libertino e, juntos, são atraídos por um Bordel.

Não deu outra. Quando tentávamos encontrar a trilha de volta para o Rio, embicamos por uma Estrada sem nenhuma indicação que nos fornecesse seu nome. No meio do desvairado percurso, avistamos uma Casa toda iluminada, como se estivesse decorada para o Natal. Na fachada, uma placa:

“Não percam! Hoje tem Show da Mulher Serpente! Duas cervejas grátis! ”

– Dante, vamos entrar aí. A gente aproveita e pergunta como encontrar novamente a Ponte.

Estacionei e entramos.

Apesar da aparência faraônica, a casa por dentro era simples. Assemelhava-se a um bar de beira de estrada. Mesinhas de ferro espalhadas num salão espaçoso, sinuca, chão de cimento e, ao fundo, um tablado que serviria de palco para a grande apresentação da noite. A música do ambiente era vibrante, moderna e dançante. Mulheres circulavam por entre as mesas trajadas em shortinhos jeans e tops. A maioria era bagaceira, umas poucas atraentes. Serviam para acentuar o contraste no momento em que adentrava a Estrela da noite.

Uns quarenta minutos depois que chegamos, com o Teixeirinha chapado, um Mestre de Cerimônias anuncia a sensação da noite: A Mulher Serpente.

– E, com vocês, a nossa Feiticeira. Segurem seus corações porque ela os arranca com os olhos. Que entre a Rainha de todos os Sonhos, a Mulher Serpente!

Surge então uma mulher alvíssima, alta, cabelos negros cacheados escorrendo abaixo da cintura, um par de olhos azuis incandescentes. Lindíssima! Ao som de Erótica (Madonna), vestida numa justíssima roupa de couro acinzentada e atravessada por decotes ousados, ela começou a dançar sinuosamente fitando cada um dos presentes no salão. Era hipnótica.

– Cara, o que é isso?! – Meio que exclama o Teixeirinha.

– É a Mulher Serpente, Teixe.

– Dante, finalmente sei o que é o Amor.

– Segura a onda, Teixeirinha.

– Cara, eu estou apaixonado.

– Você está é mamado, Teixe.

– Cara, o meu coração está naquele palco, eu tenho que ir lá pegar.

– Pô, Teixeirinha, fica quieto aí.

Minhas objeções não o impediram. Logo ele estaria postado à beira do palco com um olhar babão para a dançarina. Ela não demorou a perceber e sinalizou para ele subir. Aqui, chegamos ao clímax, amigo leitor.

O alucinado Teixeirinha estava no palco. A beldade o fez deitar no tablado e começou a despi-lo. A cada peça arrancada dele, ela também deixava cair uma. E foi neste ritmo que os dois alcançaram a nudez absoluta. Ela em pé sobre o meu embevecido amigo deitado entre suas pernas. O Teixeirinha parecia um bebê no berço, maravilhado com um móbile suspenso diante dos seus olhos. Ria sem jeito cobrindo os genitais. A galera presente foi ao delírio, ria e zoava numa verdadeira farra.  Agora, o Teixeirinha era a Estrela.

A Mulher Serpente saca uma garrafa de vinha e olha para o Teixe como se pedisse seu consentimento para algo que está por vir. Inicia um banho de vinho sobre o corpo inerte do nosso herói. Depois, agacha-se por cima dele e começa a lambê-lo por onde o vinho corria. Aplausos, gritos, assobios e o Teixeirinha rindo, rindo sem parar.  O show termina, ela cochicha algo no ouvido do nosso protagonista e ele vem ao meu encontro na mesa com um sorriso largo e ar de vitorioso.

– Vou precisar que você me empreste R$ X,00.

– Como é? Mas para quê? – Questiono.

– É o aluguel da suíte aqui em cima. Ela me convidou para ficarmos juntos.

– E o convite custa R$ X,00?

– Custa R$ X,00. Preciso dos seus R$ X,00 para inteirar os meus R$ X,00.

– Teixeirinha, você aloprou de vez!

– Nem pense em me negar isso, cara!

– Mas e o Carbonara com a sua namoradinha?

– Dante, a minha Gordinha perdeu a prioridade para este monumento.

– E como o monumento se chama? Você perguntou o nome?

– Não sei se devo falar. Você vai querer sacanear.

– Quer o dinheiro? Vai falando.

– Bebel Sucuri. Foi como que ela se apresentou.

– Bebel Sucuri?! Perdi até o tesão, Teixeirinha.

– Não importa o nome, o importante é a qualidade do produto.

Emprestei o dinheiro e o Teixeirinha desapareceu pelas escadas que levavam ao andar de cima do sobrado. Esperei por uma hora até que o avistasse descendo os degraus com um semblante de poucos amigos.

– O que houve, Teixe? Desembucha! Como foi o desempenho da garota?

– Cara, não teve desempenho de ninguém!

– Xiihh! Não acredito! Qual foi a merda que deu?

– Vamos sair daqui. No carro eu conto.

Dentro do carro, retomando a nossa Odisseia em busca da Ponte Rio – Niterói, o Teixeirinha passou a narrar o drama.

– Vai, me conta o que aconteceu, Teixe!

– Você nem vai acreditar…. Uma tragédia!

– Conta! Deixa de melodrama e conta.

– Vou resumir.

– Resuma.

– Chegamos à suíte, bonitinha até, tomei meu banho e deixei a Bebel no chuveiro. Voltei pra cama. Em cima de uma cômoda vi um potinho de creme, abri, cheirei, achei o aroma gostoso e resolvi esfregar um pouco no pau e no saco. Quis dar uma moral, deixar tudo cheirosinho pra gata.

– Mas e aí?

– Aí é que são elas. Assim que terminei de passar o creme comecei a sentir uma sensação estranha, uma dormência no saco.

– Peguei o pote novamente para ler o rótulo.

– E que creme era esse, Teixeirinha?

– Cara, era xilocaína. Meu pau não subiu nem com guindaste. Morreu! Morreu tudo!

– O que é isso, Teixeirinha? E como se resolveu com a Sucuri?

– Lá vem você querendo me sacanear. Não estou para isso! Falei que estava me sentindo mal, fiquei deitado por uma hora e saí fora.

– E o dinheiro?

Nem quis saber. Cara, eu estou inválido até agora por causa da merda da xilocaína e você vem me falar de dinheiro, porra! -O tom do depoimento era dramático, mas tive um acesso de risos que só terminou quando cheguei ao meu ansiado lar. Findava a Odisseia. Deitei exausto na cama e antes de fechar os olhos ainda pensei: o mundo é surreal!

Ariel

ARIEL

Insone crônico. Já perdi a conta do número de anos que padeço da dificuldade para dormir à noite, não é uma das experiências mais agradáveis perceber que o dia amanhece sabendo que ainda não cerrei os olhos. Não é fácil se acostumar a condição de vigília involuntária, já fiz tratamentos, consultei neurologista, até psiquiatra, mas nenhuma solução oferecida foi mais poderosa do que a minha resistência ao restaurador sono noturno. Nesta última sexta-feira, eu estava assim, desperto, inquieto, precisando atender à convocação das ruas, do céu cinza, da ameaça opressora da chuva. Esperei o temporal estiar, embarquei em um táxi e comuniquei o destino ao motorneiro.

— Camarada, me deixa na Rua Ceará.

Os pneus cortavam os bolsões d’água chiando como lobos no cio, enfrentaram os obstáculos aquáticos da Praça da Bandeira como bravos bandeirantes desbravando um território hostil. Quando alcançamos a esquina da rua Hilário Ribeiro com a Ceará, desembarquei. As nuvens voltaram a chorar com o volume de um temporal. Abri o guarda-chuva e fui atravessando os fluxos de correnteza que se formavam em direção à entrada da Vila Mimosa. Minhas botas encharcaram, as meias cuspiam a água de procedência suspeita, mas segui impávido, marchando firme sob os paralelepípedos do colosso da vida mundana.

Dezenas de copos de plástico boiavam sobre as sarjetas, camisinhas flutuantes giravam no desesperado balé das vidas sem sentido, rios artificiais se formavam com força do dilúvio, homens e mulheres de corpo ensopado passavam por mim procurando abrigo. Eu seguia indiferente, não buscava o sexo, mas caçava a exaustão que me trouxesse os sonhos do adormecer. O guarda-chuva não me protegia muito dos pingos graúdos que o vento lançava contra o meu rosto.

— Caralho. O que estou fazendo aqui? — um lampejo de juízo esbofeteou meu cérebro.

Penetrei no primeiro corredor da Zona, o chão alagado, um cheiro de fossa transpirava do piso, mulheres se amontoavam como se evitassem o contato com o ambiente insalubre. As adversidades enfrentadas até aquele momento não prometiam um desfecho promissor. Digo com sinceridade, afeiçoado leitor que me acompanha neste passeio, eu não fui ali para gozar, estava em fuga, talvez de mim mesmo. Rodei pelos dois corredores principais umas cinco vezes, não via nada que me interessasse. Minha libido estava pálida, apática. Se avaliarmos com honestidade, todos os relatos de fóruns são iguais, uma profusão de tédios que terminam no gozo ou na ausência dele. Somos máquinas narrando a produção industrial de espermas inúteis.

Uma voz de mulher me puxa do meu redemoinho mental.

— Vamos brincar hoje, tesão?

O convite saltava da boca carregada de batom de uma coroa loira que me soou familiar de outras eras da Vila. Os seios espremidos pela compressão de um decote precário alertavam que poderiam explodir a qualquer momento; com um brilho diabólico de quem conhecia a alma de todos os homens, os olhos verdes me encaravam aguardando resposta; os cabelos ruços da marafona estavam arrepiados como que desfeitos por uma ventania.

— Hoje não estou disposto para brincar, estou mais para um bater papo. Qual seu nome?

— Tá no lugar errado, né, tesão? Procura um padre — terminou o deboche com uma dessas gargalhadas de puta velha que devem ter ouvido na Central do Brasil — meu nome é Ariel.

A aparência carcomida pelo tempo não me despertava atração pela mulher, mas aceitei subir a uma alcova para receber o matador boquete sem camisinha que me prometeu. Ela pediu setenta reais, ofereci cem mangos para conversarmos um pouco e quebrar o gelo antes do ato. Aceitou e subimos a estreita escada em caracol da casa 21. A coroa me contou que mora em Santa Cruz, tem três filhos e um está preso em Bangu por roubo, que começou na vida com dezoito anos (tem 55) e ficará até quando der, que ainda faz um bom dinheiro. Parou de falar de repente, me olhou fixo e disse que eu tenho os olhos tristes. Desamarrou meu cinto, arriou a minha calça, sentou-me sobre o lençol puído da cama e abocanhou meu pau como se quisesse arrancá-lo pela raiz. Com movimentos de quem conhece a arte dos orgasmos, me fez gozar em dois minutos. Gozei forte, de olhos fechados, minha respiração transmitia o tufão pulmonar que me assolou. Quando abri os olhos, não havia mais ninguém na cabine, a coroa saiu em silêncio e me deixou só. Vesti a roupa, desci a escada tortuosa e ganhei a rua. Continuava a chover, não abri o guarda-chuva dessa vez, a água corria pelo meu rosto, invadia meu corpo, gelada, fria como a coroa que me chupou. Caminhei com as roupas alagadas até um ponto de táxi próximo à Mosaico.

— Me deixa na Praça Xavier de Brito, motorista.

Encostei a cabeça no vidro da janela e, por um instante, adormeci.

Anhinhanha

ANHINHANHA

Disse-me um amigo, após saber deste relato, que eu deveria procurar uma benzedeira. Talvez, seja um bom conselho.

Tarde quente, o suor inevitável molhava meu rosto, estaciono o Sucatão e decido conhecer o tal Paraíso das Panteras, conforme denominava o painel exposto acima de uma casa. Para amenizar a sensação térmica, decidi tomar três doses cerveja antes de entrar, quis buscar inspiração. Meus poros ficaram sobrecarregados diante da quantidade de água que eu expelia pelo corpo. Mais um pouco e eu me tornaria a nascente de algum rio caudaloso.

Entrei na Termas. Ao passar pela recepção, disseram que eu não precisaria pagar entrada. Penetrei no salão penumbroso, era fim de tarde, não havia muitas meninas. Pelo que me informaram, o movimento forte começaria a partir das 19h30. Sentei-me, pedi um Red Bull para debelar a sede e uns petiscos para alimentar a fome. Fiquei observando o salão quase vazio e avistei uma loira ajeitada que me chamou a atenção. Consegui contato visual, mantive o flerte por uns cinco minutos e então ela se aproximou…

Cerca de 1,60m; falsa magra; pernas grossas; bundinha arrebitada; lábios carnudos; cabelos abaixo dos ombros; rostinho de anjo. Graciosa!

Oim – Ela me cumprimenta.

Sim, leitor sem fé! Como você, eu também senti uma leve entonação do M no final do OI, mas não dei importância. Afinal, o que é um minúsculo M diante de um tamanho Tesão?

– Tudo bem? – Respondo.

– Tundo! – Agora, foi um N que surgiu, talvez seguindo a regra do “antes de P e B.”

– Qual seu nome? – Emendo com outra pergunta.

– Anhinhanha – Foi isso que ela pronunciou.

– Qual?! – Peço um replay para tentar entender.

– ANHINHANHA! – Ela eleva o tom de voz.

O que fazer num momento desses? Qual manual ensina a nos livramos desse tipo de embaraço? Eu ainda não havia compreendido o nome da menina, no entanto, não tinha coragem de perguntar novamente.

– Diferente seu nome! Bonito! É de origem indígena? – Ah, hipocrisia! Doce hipocrisia, como a vida seria mais amarga sem as suas sábias intervenções.

– Oncên anchã? Que nhada! Tão comum nheu nhome!

Era o início do meu pânico, eu não conseguia compreender o estranho dialeto nasalado que brotava daqueles lábios tão delicados. Porém, meu cavalheirismo e minha esmerada educação me obrigavam a agir como se tudo aquilo fosse a manifestação mais límpida da língua portuguesa.

– In o seun? – Ela desejava saber meu nome.

– Dante. Prazer!

– Jã conhenhia a cãsan?

– Como? – Tive que perguntar de novo.

– Jã conhenhia a cãsan?

Refleti por uns segundos para decodificar…. Ela me perguntava se eu já conhecia a casa! Era quase uma emoção traduzi-la.

-Não. Primeira vez!

-Tã gostanho?

O que seria gostanho? Gostando! É isso!

– É legal! Gostei! – Respondo para agradar.

Não precisei de muito mais para saber que a loira, além de gostosa, era fanha. Sim, incrédulo leitor, a loira era fanha! Nem no paraíso encontramos a perfeição, esbarrei com uma pantera fanha dentro do Paraíso das Panteras.

Prosseguir naquele diálogo estava me causando náuseas, era como manter o cérebro ligado a um tradutor simultâneo. Preferi encurtar o caminho e avisei que gostaria de ficar com ela. A menina abriu um sorriso que me fez perdoar todos os tiles (~), emes e enes que recheavam sua linguagem quase incompreensível. Fomos para o quarto. As dimensões eram pequenas, mas havia o conforto básico. Minha cabeça girava pelo efeito da bebida. Sem a roupa, o corpo da garota me impressionou ainda mais. Seios firmes, chana completamente depilada, bumbum emoldurado numa marquinha de biquíni minúscula. Beijos, boquete, bolinação. A menina era quente! Fica de quatro e tenta me provocar.

-Menhe na sua canchõrra! – Tradução: Mete na sua cachorra.

Aquele idioleto nasal estava me enlouquecendo, decidi precipitar o fim do encontro: meti!

– Aim, aim! Isso, come nhua canchõrra! Aim! Aim!

Sim, colega leitor! Eu concordo! Isto é incrível! A puta era fanha até para gemer! O gemido da mulher parecia grito de cachorro espancado, aquelas onomatopeias que vemos nas revistas de quadrinhos: caim, caim…. Eu me senti sodomizando o Bidu, o personagem canino da Turma da Mônica.

A tragédia se fez, não consegui gozar! A cada “aim” que a moça proferia, emergia a imagem do Bidu em minha lembrança. Joguei a toalha!

– Não vaim gonza? Gonzaaaan, gostonso! – Insistiu a fanha.

– Não estou bem…. Bebi muito! Estou cansado. – As velhas desculpas de quem só ansiava por fugir.
Paguei a conta, mas continuava intrigado. Não conseguia traduzir o nome da menina. Arrisquei perguntar mais uma vez.

– Desculpa, me repete seu nome? Esqueci…

– Ponxã! Jã esqueceum! É Anhinhanha!

– Ah! Ta! Não esqueço mais! – Eu não poderia esquecer o que continuava sem entender.

Mas de que vale um nome? Resgatei o Sucatão e voltamos a sobrevoar o negrume do asfalto da Av. Suburbana.

Amor de Pinóquio

AMOR DE PINÓQUIO

Para mim, a experiência do amor romântico sempre foi uma porta para a humilhação. Talvez, por ter demorado a intuir que o impulso da paixão é uma espécie de loucura momentânea, eu enfrentava problemas para controlá-lo e, principalmente, para lidar com episódios de rejeição sentimental. Tonar-se libertino, como eu gosto de definir, é uma metamorfose que nasce do simulado sofrimento das relações românticas. Não existe amor romântico, existe a química que dá ao desejo sexual uma aura de fascinação que não existe de fato. É uma armadilha, afirmava Schopenhauer.

Se atravessei muitos desses amores românticos? Sim, atravessei e atravessei mal. Viver a ilusão do romance com a convicção de manter o celibato e a regra de não procriação é um conflito interno sangrento. Devido a isso, provavelmente, o que encontrei nessas relações sentimentais não foi o lado onírico, mas a realidade concreta da traição, da deslealdade e, não poucas vezes, da rejeição e do aviltamento voluntário. A dor emocional mata ou liberta, no meu caso encontrei a libertação. 

Não posso contestar indivíduos que acreditam no casamento, mesmo quando eles atuam para demonstrar que o casamento é uma farsa burocrática. O indivíduo quer acreditar no matrimônio, quer crer que a procriação e a ideia de família completam a existência, mas ele busca prostitutas e desvia o dinheiro que deveria servir para consolidar sua fé em todas essas crenças.

Os cônjuges são criaturas que se agarram na mentira e fazem de si mesmos personagens hipócritas dissimulando a idiotice. Tudo isso resume uma doença psicológica derivada da insistente fé no amor romântico. O amor é uma mentira que a mente impõe para atingir objetivos vulgares, o homem vulgar a adota como valor absoluto, ignora a confirmação da mentira que ele demonstra em todos as ocasiões em que se desvia dos princípios que poderiam justificar seus fundamentos.

Atingindo a meia-idade, afirmo que nunca casei e não tenho filhos, essa sentença faz de mim um homem livre, não um homem triste; essa sentença comprova que escapei do destino ordinário de grande parte da humanidade, revela um sucesso, não um fracasso. O fracasso estaria na cena patética que revelasse um personagem se esgueirando por bordéis e salas penumbrosas do meretrício, consultando o relógio, desligando o celular, buscando prostitutas e enganando uma companheira que também se enganou ao acreditar na veracidade da união romântica. Repito, não existe amor. A parte mais divertida da ideia do romance é premeditar a traição. O amor só é capaz de conceber bebês e grandes canalhas.

Alegria do Catete

ALEGRIA DO CATETE

Existem noites que são perpétuas, um libertino é forjado nessas noites intermináveis, atravessando a cidade, farejando feromônios, desejando o roçar de peles. Há uma fase da vida em que o Sol é um incômodo frio e a Lua uma carícia que arde. Foi uma dessas noites dos meados da década de 80 que descobri um lugar que me proporcionaria incontáveis encontros sexuais, descobri por ouvir falar, peguei o metrô, desembarquei no Largo do Machado, fui caminhando incerto pela Rua do Catete, perguntei num boteco se conheciam um forró naquelas redondezas, engoli um fogo paulista e encontrei o templo onde uma parte das minhas melhores noites se perpetuariam na memória.

Alegria do Catete, que nome poderia ser melhor para um forró, para um bate coxa, como chamavam na época. Instalado em um prédio baixo, onde até pouco tempo funcionava uma loja do Ponto Frio, na esquina da Rua do Catete com Buarque de Macedo. Quando entrei pela primeira vez, me deparei com uma multidão dançando ao som do triângulo e da sanfona, um mar de mulheres predominantemente nordestinas, homens que não negavam a origem simples. Atravessei o salão vestido de príncipe, denunciando para os olhos desconfiavam que me seguiam que aquele não era o meu habitat natural. No início senti algum desconforto, depois não mais me importei, percebi que a minha pompa no vestir e na postura é que me abriria um o harém onde eu me tornaria sultão por um bom período.

Eu não tinha carro, minha grana podia ser contada em poucas notas heroicas na carteira surrada, mas eu sabia me vestir, estava no auge da energia de um universitário bem nutrido, sabia me expressar com classe, começava a aprender a arte de seduzir e aquele forró seria a minha primeira grande escola, de sexo e de vida. Saía de casa, pegava o metrô empolgado, a testosterona explodia pelo meu corpo e eu não abandonava a arena sem antes conquistar uma fêmea qualquer do lugar. A volta se mostrava mais complicada, saía do forró com o céu refletindo os primeiros raios de luz, andava até a Praia do Flamengo e esperava algum ônibus que me levasse de volta à bucólica Tijuca. Muitas vezes enfrentei a solidão da madrugada esperando a condução, os perigos da cidade eram menores, mas a melancolia da dureza que me impedia de pegar um táxi sempre foi igual.

Sim, eu fui um tímido e os forrós me ajudaram a superar um pouco a trava do acanhamento. Às vezes eu intercalava a frequência nos forrós com idas a boate Circus no Leblon, dois mundos paralelos e heterogêneos. Na Circus, eu não pegava ninguém; no forró, me tornei rei. Havia ocasiões em que eu entrava no Alegria do Catete e mulheres colocavam bilhetinhos no meu bolso, me encaravam despudoradamente, ofereciam-se exibindo a libido devassa. Precisei eleger motéis próximos que coubessem no meu orçamento, encontrei o Alameda (na rua Cândido Mendes) e outro muito precário que havia na rua Bento Lisboa. Quando a minha carteira estava mais recheada, eu lambia os beiços no Hotel Único que ficava praticamente ao lado do forró.

No princípio, eu contava o número de mulheres que comia, foi quando iniciei minha coleção de coitos até perder a conta. Não demorei para conhecer mais dois forrós que fariam das minhas noites de fim de semana um campo de caça farto de lebres. Os forrós me fizeram homem, já que eu não recebia grandes patrocínios da família, sempre precisei apelar para a minha criatividade, meu espírito de aventura e minha ausência de preconceitos. Jovem, eu possuía uma disposição inabalável, varava madrugadas seguidas, chegava em casa com o sol no rosto, me viciei na arte de amar.

Outros tempos… Fui uma espécie de Indiana Jones libertino, durante o dia eu explorava sebos atrás de toda espécie de livros; à noite, rompia becos e penumbras atrás de qualquer tipo de mulher que eu pudesse tentar conquistar e levar para a cama. Na década de 90 surgiu o forró do Asa Branca, na Lapa, minha existência ainda se equilibrava com pouco dinheiro, não era incomum me postar na porta do local para pegar um dos ingressos gratuitos que eles distribuíram, eu precisava economizar de todas as maneiras para conseguir consumar o sexo com alguma mulher que eu conhecesse. 

Que infinidade de mulheres eu provei numa época em que as putas não me eram acessíveis. A dureza me fez desenvolver a criatividade que me permitiu curtir a vida mesmo diante das limitações de grana. Aprendi a ser simples sentindo minhas pernas cansarem no meio-fio enquanto aguardava a esperança de uma condução, sacudindo em ônibus pelas madrugadas, comendo empregadas domésticas e me apaixonando por elas, percebendo que ter dinheiro é bom, mas não ter estimula o cérebro. De lá para cá, envelheci, mas não é tão ruim envelhecer, o ruim é testemunhar um mundo que envelhece mal, mas ao mesmo tempo constatar que os fóruns permanecem com a mesma infantilidade desde os primórdios em que escrevi a primeira frase no primeiro

A Praça Mauá e a gentrificação do meretrício

A PRAÇA MAUÁ E A GENTRIFICAÇÃO DO MERETRÍCIO

Final dos anos 80 e início da década de 90, fui trabalhar na Praça Mauá, primeiro como funcionário de uma grande empresa privada e depois como concursado em uma estatal. Um tempo em que a região borbulhava de gente, de botecos e boates dedicadas à prostituição. Escandinávia, Flórida, Cabaré Kalesa, MV 30, as noites de amor no Hotel São Bento, no Villa Régia, tudo aos pés do Mosteiro de São Bento. 

A Pedra do Sal era apenas a Pedra do Sal, onde eu pedia um pingado com pão na chapa, nada tinha a ver com o feudo que se tornou, mas é o feudo que ainda mantém algum vestígio de vida naquela área. Vendo a Praça Mauá dos dias atuais, que decaiu muito mais rápido do que o resto do Centro, sou tomado por uma tristeza nostálgica e por uma conclusão irrefutável, o que sustentou a vida na Praça Mauá foi a prostituição.

Durante o dia e à noite, tudo fervilhava no porto. Lembro-me de um boteco horroroso que exibia o nome de “Tubarão 2” e eu ficava imaginando onde seria o “Tubarão 1”. Muitas vezes, dirigi o carro, na madrugada, estacionava no entorno da praça e entrava na Flórida repleta de marujos e gringos aportados.

A Flórida tinha a pista de dança envidraçada, o que lançava os nossos olhos sobre a paisagem magnética da Baía de Guanabara. Os cafetas estendiam bandeiras na porta dos bordéis fazendo referência ao país de cada navio que chegava. Fico imaginando o que deve ser a Praça Mauá durante as atuais madrugadas. Tudo passa, tudo acaba, mas o que observo é que as áreas de prostituição são exterminadas pela gentrificação que se utiliza de supostos motivos nobres.

A Praça Mauá sepultou as prostitutas sob o Museu do Amanhã, do MAR e do VLT; a Help, na avenida Atlântica, se tornou o jazigo dos libertinos, enterrados debaixo de um Museu da Imagem e do Som que nunca foi concluído; a Vila Mimosa foi expulsa do seu berço para dar lugar ao Teleporto, às estações do Metrô; hoje, após a abertura da rua Ceará, a Vila Mimosa definha e volta a correr risco de ser empurrada para outro ponto do Rio, vítima da especulação imobiliária ou dos interesses políticos; a Lapa, que foi um dos nascedouros da prostituição carioca, antes reprimida pelo Estado Novo, agora foi transformada em polo de bares da juventude de classe média, espremendo garotas e travestis que tinham ali um local de trabalho. A verdade é que sempre, de uma forma ou de outra, arrumam um jeito para jogarem as prostitutas para debaixo do tapete da hipocrisia.

Temos hoje um prostíbulo vertical, que é o conhecido prédio da Álvaro Alvim, ao lado da Câmara dos Vereadores. Até quando irão permitir? Há muitos anos, havia um prédio semelhante na Senador Dantas, acabaram com a farra ali. O preconceito que expulsa a prostituição de tantos locais da cidade vem acompanhado de motivos que parecem justificarem-se, mas que não passam de ferramentas para impedir o trabalho das mulheres, fazendo com que elas retornem ao domínio dos cafetões ou resvalem para opções que oferecem pouca segurança.

A Help, que além de ser uma boate onde homens buscavam o sexo pago, também alcançou o perfil de ponto turístico da cidade, mas então criam o termo “turismo sexual” e imaginam que restringindo lugares desse tipo estão “limpando” a cidade. Garotas de programa exercem uma função social, se avaliarmos com profundidade.

Copacabana, a antiga cidadela do pecado, perdeu grande parte de suas boates. Inventaram um programa de “higienização social” chamado “Copacabana Legal” e hoje o bairro está pior do que nunca no aspecto social. A prostituição não faz mal a nenhuma cidade, o que faz mal a qualquer cidade é esconder a sensualidade, os pontos de prazer, as fugas do estresse urbano. Com o Brasil se tornando, cada vez mais rápido, um talibã tropical, a diversão de homens e mulheres estão ameaçadas por uma possível repressão crescente e puritana.   

A garota da Urca

A GAROTA DA URCA

CASUALIDADE

Eu preferia estar escrevendo um relato tradicional, informando o telefone, o site e as fotos da protagonista, mas não será possível porque a garota prefere não se expor em espaços como os fóruns. Por isso, o que teremos aqui será um relato off. Caso se interessem pela personagem, sugiro que soltem os perdigueiros e tentem encontrá-la com as pistas que irei exibir.

BUSCA FRENÉTICA

Há cerca de três semanas, eu navegava no Tinder, onde frequento cada vez mais raramente. Naquele esquema tedioso do cara-crachá, marcava o coraçãozinho nas faces mais expressivas. Alguns matches aconteciam, enviava mensagem, mas sem resposta. Quando já estava para fechar o aplicativo, recebo um retorno.

— Olá — envia-me a mulher.

— Oi. Tudo bem? — Respondo.

— Tudo bem, sim.

— De onde você fala?

— Da Urca e você?

— Estou na Tijuca. Qual seu nome?

— Clara.

A conversa prosseguiu por mais algumas linhas até que sugeri que continuássemos o papo pelo WhatsApp. Clara aceitou.

Não posso dizer que fiquei surpreso quando Clara se revelou uma sugar baby, o eufemismo pós-moderno para garota de programa. Nas fotos do Tinder a moça é tão inacreditavelmente bonita que perguntei se poderia me enviar fotos pelo zap, ela atendeu o meu pedido sem cerimônias ou frescuras hipócritas de quem teme pela identidade. 

Clara é uma loira de olhos verdes, disse ter 1,70m, seios médios em forma de pera e com o biquinho dos mamilos apontados para o espaço sideral, pernas longas e grossas cobertas por uma penugem loira formada por pelos naturais, o rosto possui uma simetria invejável que denuncia ascendência europeia. Lindíssima. Decidi ser mais objetivo diante da revelação fotográfica daquela beldade.

— Quanto é para poder ficar com você? — Pergunto na lata.

— Docinho, não estipulo valor. Você me dá o que achar que mereço.

Estranhíssimo — pensei. Não confio nesses discursos de “você me dá o que mereço”. Fiquei desconfiado e temeroso. Uma loira portentosa, moradora da Urca, fazendo programas e não querendo garantias? Algo de podre no Reino da Dinamarca.

— Não pode nem sequer me dar uma ideia do valor? Fico inseguro desse jeito — joguei aberto.

— Docinho, confio no seu bom senso.

Havia um sotaque na pronúncia de Clara que eu não conseguia identificar.

— Você é do Rio?

— Não. Sou do Espírito Santo. Capixaba. Filha de brasileira com alemão.

Estava explicada a aparência escandalosamente nórdica da moça. É interessante perceber o quanto o sangue nórdico fascina as nossas veias de brasilidade mestiça. Clara possui um sotaque mixado entre mineira e falante do interior de São Paulo. É melódico, gostoso de ouvir, acaba servindo como mais uma ferramenta de sedução da menina, como se já não bastasse a sua beleza estonteante. Continuamos conversando, percebi que estava falando com uma mulher inteligente, foi quando ela me revelou ser formada em Letras pela PUC e lecionar como professora em escolas particulares. Por que fazer programa?

— Porque eu gosto e me gera uma renda a mais para as minhas futilidades.

Eu estava com muitas dúvidas sobre arriscar conhecê-la. Em um momento em que conversávamos sobre livros, ela me revelou possuir mais de um exemplar de um título raro que procurei por metade da minha vida sem encontrar. Perguntei se ela me venderia o livro, ela respondeu que sim. As minhas dúvidas se dissiparam, decidi conhecer Clara.

A BELA DA URCA

Ela me passa o endereço, um prédio na Urca, em uma rua próxima a uma praça no miolo do bairro. Acionei os motores de Herbie, meu fusca, e partimos rumo ao desconhecido. Nunca cultivei o costume de me aventurar em encontros sexuais sob a luz do Sol, mas o advento da pandemia obrigou-me a alterar hábitos seculares em mim. 

Marcamos após o almoço, o dia estava belíssimo, com um céu azul tão impecável que se afigurava opressor. Qualquer beleza excessiva intimida o homem comum. Para uma sexta-feira, o trânsito estava tranquilo e Herbie deslizava sereno sobre o asfalto, ostentando a sabedoria milenar dos fuscas. Atravessamos Botafogo, entramos na avenida da Urca que margeia a Baía de Guanabara e nos abismamos com aquela paisagem eletrizante do melhor Rio de Janeiro. Parei o carro e tirei fotos como um turista inebriado. Não tive dificuldades para estacionar. Envio mensagem pelo celular perguntando o número do apartamento, conforme instruções de Clara, ela informa e prossigo na operação.

Um prédio baixo, discreto, com porteiro eletrônico. Toco no apartamento e a voz feminina com sotaque me recebe.

— Bem-vindo, querido.

A descarga elétrica libera a porta. Sem elevador, subo pelas escadas envoltas em penumbras e alcanço o segundo andar. A porta estava semiaberta, mas toco a campainha. A porta se escancara subitamente e o meu coração quase interrompe o fluxo delicado da vida. Acredite, afeiçoado forista, que mulher absurda. 

Clara é a mulher elevada a raiz quadrada de algum teorema supremo e divino. Atendeu-me à porta com um top e um shortinho que revelavam toda a sua dourada exuberância feminina. Foi como se meus pulmões entrassem em modo de suspensão, creio que parei de respirar por uns vinte segundos. As batidas dos meus bolorentos músculos cardíacos dispararam como se estivessem em uma crise de ansiedade. Clara percebeu meu nervosismo e riu.

— Entra, guri — ordenou-me com um sorriso que escandalizava seus dentes perfeitos, pérolas esculpidas entre seus lábios carnudos.

LAR DOCE LAR

Sei que alguns dos afeiçoados foristas duvidarão desta história. No mínimo, se perguntarão na intimidade dos pensamentos: “será que é verdade?” — Eu sou capaz de compreender o ceticismo desses amigos, é difícil enxergar outras possibilidades quando estamos totalmente acostumados ao sexo delivery. No entanto, creia estimado parceiro de aventuras, é verdade o que narro aqui. Tento preservar todos os detalhes dos quais me recordo para que a história transmita a veracidade do que vivenciei. Não nego, fiquei tenso durante o tempo em que estive com Clara. Passei por uma outra experiência semelhante no Tinder, mas não com a profundidade da que relato agora para vocês.

O interior do apartamento mostrava simplicidade. As paredes em tom bege refletiam a minha palidez diante da Vênus radiante. Uma estante de madeira escura guardava livros e revistas em pilhas aparentemente desordenadas. A luz natural invadia todos os cômodos, tudo muito solar, o que não deixava dúvidas sobre a extrema beleza de Clara. Aqueles pelinhos dourados das pernas brilhando a cada toque da claridade começou a me causar um tesão quase incontrolável. É uma confidência, mas adoro mulheres com pelos loiros nas pernas, considero um elemento excitante. Além disso, a garota ia à minha frente com o short minúsculo deixando escapar a polpa de sua bunda digna de capa de revista.

— Vem conhecer a casa — ela me diz.

Pega a minha mão e me leva a cada canto do apê. A cozinha pequena quase fazia parte da sala; dois quartos também de dimensões modestas, um deles abrigava uma cama de casal e o outro estava repleto de bagulhos e com uma gaiola habitada. A menina criava um furão. Sim, meus amigos, um furão como bicho doméstico. Quando o animal me viu, pulou nervosíssimo, como se fosse arrebentar as grades da gaiola. Ele me encarava e emitia uns grunhidos assustadores. Fiquei com a sensação de que se ele escapasse da cela sobraria pouco de mim. Clara me puxa do quarto selvagem e fecha a porta.

Entra comigo no seu recanto mais íntimo, o quarto em que dorme. Havia duas prateleiras com uma coleção de pênis de borracha, desde o tamanho Terra de Gigantes ao diminuto modelo Tatoo, da Ilha da Fantasia. Na parede atrás da cama, algemas prateadas estavam penduradas como se fossem objetos decorativos. Num mural lateral, vi chicotes expostos. Em frente à cama, um retrato da Sharon Stone segurando o picador de gelo do filme Instinto Selvagem. Parecia o set de filmagem de “Cinquenta Tons de Cinza”. Tudo era estranho.

De volta à sala e Clara me pergunta se aceito um suco de laranja.

— Aceito.

Ela sai e retorna com um copo suando de gelado, bebo quase que em um só gole para irrigar a minha boca seca pela ansiedade. De repente, ela coloca a mão na minha perna e fica friccionando as unhas numa região muito próxima ao Pikachu, que nesta altura já não sabia se queria fugir ou ficar. Calor. Clara sugere que fiquemos no seu quarto, ela ligaria o ar-condicionado e colocaria música. Segui a líder.

Clara é calma, gestos lentos, voz serena. Conversar com ela é quase como se estivéssemos em uma sessão de Tai Chi Chuan. Os olhos emitem um tom verde faiscante, capaz de hipnotizar a serpente bíblica. Conta-me um pouco da sua vida, fez parte da Marinha por um período como enfermeira, mas depois decidiu seguir o magistério. Jovem, morando bem, deve ter se esforçado para compor a trajetória. Perguntei de novo: por que fazer programas?

— Fantasia e vontade de ter mais dinheiro — ela responde.

— Não tem medo de trazer estranhos na sua casa?

— Nem todos vêm aqui, sou muito criteriosa nas escolhas. Sinta-se um privilegiado.

Articuladíssima, a garota sabe seduzir. Talvez, nem precisasse saber, pois com aquela estampa europeia ela seduz até estátua do século 19 cagada por pombos.

Realmente, eu gostaria de poder colocar aqui os dados de contato da loira. Quando perguntei sobre fóruns, ela disse que conhecia; quando a questionei novamente se me permitiria escrever sobre nosso encontro, ela explicou que preferia clientes aleatórios que a encontrassem pelo aplicativo. Não me restam opções além de respeitar a vontade da mulher.

A campainha toca, meu coração quase sai pela boca e Pikachu quase comete um salto suicida pela janela. Quem seria?

— Gato, dá um minutinho que eu vou atender. Você se importa?

Não sei se balancei a cabeça aprovando a intenção de Clara ou se a minha cabeça apenas tremeu histérica motivada por lembranças de cenas de filme de terror. Ela se levantou e foi abrir a porta.

— Gal? Tava por onde, mona?

— Ai Barbie, nem te conto…

Quando dou por mim, irrompe pela sala uma travesti esbaforida, de cabelos compridos com mexas claras de reflexo, usava uma bermuda de causar hemorroidas e falava com uma voz dotada de um inconfundível tom de malemolência da goiabada. Apalpei minha calça e não localizei Pikachu, temi pelo pior. Eu só pensava em correr e entrar no Herbie, numa simulação de fuga espetacular de Alcatraz.

— Dante, essa é a Gal. Gal, esse é o Dante.

— Dante é seu nome?

— É, sim.

— Huhuhuhuhahahaha…

A risada estridente da Gal causou interferência no meu aparelho auditivo. Tarde demais para fugir…

A pombagira

A POMBAJIRA

A POMBAJIRA

Para ser livre é preciso fracassar! Não me tome como insano, pois se lhe revelo uma das minhas maiores iluminações, o faço por ter sido eu próprio a cobaia de onde brotou essa sentença.

Qualquer êxito, por mínimo que seja, transforma o bem-sucedido em servo de uma prepotente implacável: a vaidade. Conquistar o sucesso é iniciar um ciclo de escravidão.

Aos 48 anos, eu não tinha problemas por ter trabalhado pouco, não me envergonhava por não haver construído nada com o suor do meu rosto; não me incomodava viver confortavelmente, graças a uma gorda parcela da pensão de minha mãe, viúva generosa de um militar falecido; menos ainda me constrangia o fato de me abrigar sob a asa materna, num amplo apartamento em Santa Teresa, próximo ao Largo das Neves. A despreocupação da cigarra é sempre muito mais saborosa do que a rotina gananciosa das formigas.

Em certa altura, para disfarçar minha sina de desocupado, convenci minha genitora a me comprar um táxi. Eu deixava de ser um vagabundo oficial para me tornar um malandro com álibi. A vizinhança ficou satisfeita, minha mãe mostrou-se orgulhosa e eu podia desfilar num carrão amarelo, mais afeito a transportar libertinas à passageiros que me remunerassem.

Com o fluir dos dias e a verdade inevitável que emerge de cada alvorecer, a vizinhança alcoviteira apercebeu-se de que eu não me tornara um regenerado da esbórnia ou um ex-boêmio catequizado. Continuava, mais do que nunca, o mesmo hedonista que afrontava o moralismo dos hábitos pequeno-burgueses. Por se sentirem ludibriados, passaram a maldizer meu táxi divulgando que ele possuía dois bigorrilhos, um que ficava sobre o teto do carro e outro que se postava atrás do volante. Infames! Mas eu desprezava essas pequenas vilezas, o que realmente me importava era abraçar os prazeres que nos proporcionam sorver as delícias do tempo presente.

Fiz-me um notívago. O Sol embalava meu sono e a Lua era a musa da minha adoração. Eu apreciava ver o dia apagar da janela do meu apartamento, o prédio se debruçava sobre um abismo que abria a vista para o Centro e parte da zona norte. As sombras começavam a exibir pequenos diamantes, pontos de luz que se derramavam por vales e montanhas. O anoitecer é uma metamorfose. Eu acendia um cigarro e o consumia em breves tragos enquanto contemplava o desabrochar daquela imensa mariposa: a Noite.

A felicidade não é um momento esparso, tampouco é uma busca interminável que devemos trilhar. A felicidade é apenas uma frequência captada quando nos sintonizamos ao que nos rodeia.

Debaixo de um céu estrelado, entro no carro, ligo o rádio, seleciono uma estação para encontrar a música que me servirá como anfetamina e alimentará o meu entusiasmo. Uma batida sexy invade a cabine do automóvel. Acelero, antes de engatar a marcha, ouço o motor vibrando, recolho a âncora e começo a navegar pelo negrume do asfalto.

Conheci Selene no baixo meretrício, a Vila Mimosa, uma menina de 21 anos, menos da metade da minha idade. Ela guardava uma eletricidade que me fascinava, além de ser uma negra bonita, de porte vistoso. Já no primeiro encontro, tivemos aquela afinidade que é fatal para os instintos, a simpatia da pele.

Eu, que era acostumado ao clima claustrofóbico dos bordéis do Centro da Cidade, fui esbarrar com a Vila Mimosa somente durante o ofício de taxista, ao levar dois nordestinos que me indicaram o caminho da Zona boêmia. Confesso que a primeira impressão que tive, ao atravessar um pequeno arco sob os trilhos da linha de trem que margeia a Praça da Bandeira, foi a de estar penetrando num lugar macabro. 

As ruas são penumbrosas e a paisagem é devastada até alcançarmos o miolo, onde tudo se parece com uma grande festa junina, é a jubilação da luxúria. Constatei que não fui eu quem conduziu os nordestinos, eles é que me arrancaram do tédio arrogante dos que não acreditam haver mais nada para descobrir. Havia a Vila Mimosa e o meu amor por ela foi brutal, desmedido!

Selene senta-se no banco do carona e não espera que eu respire para me dizer que desejava conhecer uma boate de swing naquela noite. O Rio, como toda metrópole decadente, abriga suas alcovas de devassidão. O swing, que é a prática da troca de casais, se transformou em febre entre os libertinos. Eu, que nunca me neguei à lascívia, aceitei o convite.

— Então vamos logo que hoje estou com a Pombagira! — a afirmação de Selene antecipava uma transfiguração quase literal. Durante a madrugada, eu enfrentaria a Pombagira.

Estamos em 2008, percorrer o Rio nas altas horas noturnas era navegar por uma cidade deserta, escura, os burburinhos de vida se manifestavam em ilhas esparsas e raras. A atmosfera era composta por ares que comungavam selvageria e medo. A Cidade Maravilhosa se tornara sinônimo de uma aventura perigosa e opressora.

A boate escolhida por Selene localizava-se no Centro, perto ao desamparado Campo de Santana, em frente à casa onde nasceu o Barão do Rio Branco.

Ao chegar, atravessamos uma pequena recepção, recebi uma cartela para registrar nosso consumo e a chave de um armário onde guardamos nossos pertences. Subimos uma longa escada e desembocamos num salão espaçoso. Um telão suspenso exibia clipes musicais. Em torno da pista de dança, estendia-se um prolongado sofá onde as pessoas sentadas entreolhavam-se como quem avalia a qualidade das carnes na vitrine de um açougue.

Talvez, tenha sido a bebida a responsável pela transformação. Ao final da noite, eu e ela havíamos, cada um, alcançado cinco doses de vodca com Red Bull.

Selene levanta-se e me puxa pela mão na direção a uma pequena fenda, entramos. Não havia luz, era um complexo de corredores confusos, penumbrosos, um labirinto. Pelo caminho, era possível perceber a presença de casais embolados num nó cego de braços e pernas, entregues ao mais absoluto bacanal.

Ela me viu e me chamou. Estava cercada por um cinturão de homens e mulheres, totalmente nua, possuída pela Pombajira e pela loucura da orgia. Uma serial killer do sexo! Aquela visão me intimidou, me acanhou. Eu, que sempre me considerei um desregrado sem fronteiras, me senti afrontado diante daquela volúpia coletiva. Bastaram poucos segundos para que eu abandonasse a máscara do libertino e me assumisse um pudico.

Como não me movi, ela me apontou e gritou para a turba orgíaca que eu era o seu namorado, foi o que bastou para que a embolada humana começasse a se arrastar em minha direção num alvoroço de mãos e braços formando os tentáculos de uma gigantesca Medusa erótica. Aos trancos e barrancos, driblei o polvo pervertido e resgatei Selene daquele estupro voluntário, ela cedeu a contragosto.

Voltamos para a pista e um funk embalava os corpos, todos tomados por um espírito desregrado. Selene, tal qual uma serpente encantada pela flauta indiana, iniciou uma dança em que se agachava e se empinava, simulando ondulações provocantes. Eu me mantive estático, impassível, apático. O clima devasso não me contagiou. Aborrecida com a minha frieza, ela pediu para ir embora.

Tento explicar a Selene que cada um possui seus limites, mas percebi que eu tentava era justificar para mim mesmo a minha fuga. As novas gerações já nascem com o vírus da depravação inoculado nos genes.

Entro no carro, giro a chave na ignição, piso no acelerador sem engatar a marcha, ouço o grito feroz do motor, ligo o rádio e deixo a música inundar a cabine. Provo a boca da mulata ninfomaníaca que serpenteia ao embalo do som.

O refrão estrangeiro se repetia através dos alto-falantes: “Set me free”.

Uma gargalhada estridente vaza do automóvel, deve ter reverberado como eco na Central do Brasil, era a Pombagira se despedindo. Eu havia sobrevivido! Mas a noite nunca tem fim. Solto as amarras e os pneus ganham o asfalto, meu oceano.

Meu nome? Podem me chamar de Dante.

A despedida

Anoitecia em Copacabana, fim de tarde de céu avermelhado e límpido. O trânsito estava intenso naquele início de dezembro de 1994, eu desfrutava das férias ao lado de Karin, apaixonado. Esperávamos o táxi que a levaria ao aeroporto, ela decidira voltar à velha Europa, primeiro para a Espanha e em seguida para a Inglaterra, de onde ela tinha sido deportada anos antes. Prometia voltar, mas a minha paixão intensa por ela dilacerava qualquer inocente esperança. O táxi aportou, ela embarcou carregando a única mala que levava e eu a acompanhei.

Já escrevi sobre Karin, uma gaúcha bonita ao seu modo, inteligentíssima, que conheci por um anúncio nos classificados do finado Jornal do Brasil, uma mulher que hoje eu poderia classificar como acompanhante de luxo. Morava na rua Tonelero quando a conheci pelo telefone, o nosso primeiro encontro também foi a nossa primeira noite juntos. Talvez, ela tenha gostado de mim, fomos ficando, dormíamos juntos, ela não me cobrava, não me exigia nada e cultivava a minha presença. Os quase três meses que passei ao seu lado, me envolvendo visceralmente com ela, resultou na inevitável paixão febril que me tomou o corpo e a alma.  

Karin tinha uns 25 anos, sofisticada, classuda, um corpo irretocável, cabelos loiros, olhos verdes e um sotaque do Sul ainda forte. Falava inglês fluentemente, fluência que conquistou nos seus anos morando em Londres. A garota foi um sonho, décadas se passaram e a memória dela ainda exala frescor em minha mente.

Ousei, apresentei-a a minha família, levei-a em minha casa e planejava, secretamente, uma vida com ela. Entre nós, havia a Europa e a profunda rejeição de Karim pelo Brasil. Convidou-me para ir com ela e eu, num gesto que me arrependerei até o fim dos meus dias, recusei-me a ir, aleguei que preferia esperá-la e preparar uma estrutura para quando ela retornasse. Nunca retornou, casou-se com um inglês, teve dois filhos e mora no interior de Londres.

Karin uniu em mim o amor romântico e o desejo da carne. Eu agonizava de uma atração abissal por ela. Nossa despedia foi um jantar triste, em um restaurante extinto de Copacabana, que se localizava em frente à Praça Serzedelo Correia. Quando cruzo por ali, não vejo mais a praça, não vejo a rua, não vejo os carros nem os pedestres, só vejo o jazigo de uma parte de mim. Existem pessoas e lugares que se tornam buracos negros da nossa existência.

A paisagem até o antigo aeroporto do Galeão ia se desfazendo em sombras diante dos meus olhos, tudo se desconstruía conforme o automóvel avançava. Eu ia de mãos dadas com ela, em silêncio, como lançado em uma oração inútil perdida entre todas as orações inúteis. Se um dia amei alguma mulher, essa mulher foi Karin, uma garota de programa que amava mais os próprios projetos, a própria ambição e a futilidade de querer ser uma inglesa que jamais será inglesa de fato.

Feito o check-in, ela precisava ir para a área de embarque. Seus olhos verdes, seus cabelos loiros, seu corpo impecável, no fundo eu sabia que aquela seria a última oportunidade para contemplar a sua presença. Um abraço, um beijo amargo na boca e ela começou a caminhar enquanto o abismo se abria entre nós. Antes que desaparecesse, olhou para trás, olhou para mim e sumiu na névoa labiríntica dos desencontros. Cartas, alguns telefonemas, uma ausência que me esmagava. Nunca mais, nunca mais — me gritava o corvo de Edgar Alan Poe.

Nunca mais. Ficou-me a cicatriz, um desses poucos ferimentos capazes de dizimar um libertino. Por sorte, em mim foi um ferimento que sangrou, sangrou de morte, mas fortaleceu a carcaça das minhas emoções. Não demorou para que a minha natureza mundana imperasse sobre o sofrimento poético. Mesmo assim, todas as vezes que atravesso Copacabana, que passo pela rua Tonelero, ouço o corvo me amaldiçoar…

— Nunca mais, nunca mais…

A fera camuflada

A FERA CAMUFLADA

Aos quarenta e cinco anos, ele ganhara a aparência de um homem distinto. Fazia uma década que havia constituído família, esposa e uma filha que amava imensamente. 

Mantinha uma rota rigorosa entre o escritório de advocacia, no Centro da cidade, e sua residência no Largo do Machado. Recusava os constantes convites de colegas e clientes para beber e confraternizar nos animados bares da Praça XV. Foi seguindo uma disciplina austera, mantida por muitas regras e mandamentos, que conseguiu escapar da Fera que o perseguia desde os primórdios da sua adolescência. Preferia nunca negligenciar a vigilância. Tinha medo do Animal e o pressentia espreitando em cada esquina sombria. 

Ao descer do prédio onde trabalhava, na Rua México, firmava os passos em direção ao Metrô. Evitava olhar os painéis de néon porque eles representavam perigo. Luzes noturnas encantavam a Fera.

Não ouvia música, não ingeria bebidas alcoólicas, repudiava conversas informais com mulheres. Na missa dos domingos, agradecia a concessão da sua apática existência. Entretanto, sabia que o Animal o estudava e tramava com cruel paciência, numa tocaia incansável. Mas ele não descuidava, não esquecia da Fera camuflada.

Entrava em casa, abraçava sua mulher, afagava a filha, respirava a atmosfera segura do seu apartamento, orgulhava-se por continuar ludibriando o monstro. Tomava o banho frio de todos os dias, jantava, assistia o noticiário da TV, beijava fraternalmente a esposa, deitava-se e dormia.

Havia noites em que a Fera dominava seus sonhos, manipulava seus pensamentos. Ele acordava suado, possuído por uma incontida ansiedade. Erguia-se, tomava outro banho, sua esposa tentava acalmá-lo, o acariciava, lembrava-lhe que era somente um pesadelo. Por solidariedade, faziam o sexo contaminado pelo mofo do hábito. Sua inquietude aplacava-se, ele adormecia.

Às sete horas da manhã o despertador tocava, mas ele permanecia preguiçoso na cama. Sua companheira apressava-se para preparar o café. Lentamente, ele realizava seu asseio matinal. Depois, sentava-se à mesa, ligava a televisão para saber das primeiras notícias, trocava umas poucas palavras com a mulher, comia seu pão aquecido, refletia entre os goles do café misturado ao leite e saía para o trabalho.

A parte da manhã era o período em que relaxava, não existia a suspeita da Fera, ele não a sentia nas primeiras horas da sua rotina. O animal não gostava do alvorecer.

Um expediente agitado, era o que ele rogava antes de chegar ao escritório. O corre-corre espantava o chacal, o guardava a uma segura distância. Burocracias, protocolos e a adrenalina de um dia produtivo eram a alvenaria que constituíam a sua fortaleza. 

Seu cotidiano cinza eram movimentos de uma sinfonia monótona e monofônica, mantinha entorpecida a Fera que o rondava. Mas a fome engendra o ataque e o instinto trapaceia a razão.

Naquela noite, ao sair do escritório, seu roteiro narcotizante seria corrompido por um vírus letal a qualquer mecanicismo: o imprevisível. 

Marchava reto em direção ao Metrô, concentrando-se na própria respiração, mas o seu silêncio interior foi rachado por uma voz grave e rouca chamando seu nome. Era um senhor que prestava serviços de contínuo no escritório e que o tratava com paternal simpatia. O idoso o agarrou pelo braço, contou que aniversariava e, com um sorriso suplicante, o convidou para se sentarem juntos por alguns minutos num botequim próximo. Ele tentou recusar, mas o senhor insistiu explicando que morava só e não desejava passar em branco aquela data. Contrariado, porém, tocado pela solidão do velho, aceitou o convite. 

Quando deu por si, brindava constrangido aos 65 anos daquele homem. Cada tulipa que era colocada à mesa fazia escorrer pela garganta o chope gelado que rompia, como foice, a teia secular que abafava a sua fala. De repente, o mundo tomou cor como um ressuscitado, as luzes brilharam quase ofuscantes e ele escutou a própria voz. Todo o seu corpo estalava, como se voltasse de uma letargia involuntária. Riu de si mesmo.

Abraçados, deixaram o bar, ele e o velho. Juntos, entraram num táxi e foram até a Praça Mauá. Conduziu o idoso até um sobrado da Rua do Acre, onde o mesmo morava. Num caminhar tortuoso e incerto, prosseguiu a jornada, até subir os degraus de um inferninho que avistou no trajeto.

Música alta, fumaça de cigarro, mulheres seminuas, cheiro de lascívia. 

Uma ruiva bonita se aproximou com as curvas expostas por um minúsculo biquíni. Ela pergunta seu nome, apoia-se em seu corpo, beija sua boca. Ele sente uma fisgada, foi como se afrouxassem, subitamente, um torniquete. O sangue represado voltou a circular por todas as suas veias esclerosadas pelo tédio. Ele a abraça com ânsia, sente uma sede diferente, uma sede ancestral.

Ela o guia a um pequeno quarto, deixa cair o biquíni, ele a beija afoito, necessita da sua saliva. A sede aumenta, os membros se entrelaçam, a carne se funde. Ela se coloca de quatro, submissa, implora que ele a possua. Ele obedece. Uma brasa, que parecia consumi-lo de dentro para fora, faz com que se sinta febril. Transpirava com todos os poros.

Por um grande espelho, preso ao seu lado, ele vê sua imagem. Seus olhos irradiavam uma vibração oca. Não era ele, era a Fera, ela o havia devorado pelas vísceras e o tomado para si novamente. Dele, só restava uma tênue fagulha de consciência. O Animal nunca o rodeou, esteve sempre dentro da trincheira protetora que ergueu ao seu redor. Não havia mais alma, só havia a sede do orgasmo. Ele era a Fera!

Entra em casa, respira a atmosfera morna do seu apartamento. Explica, mentindo, o atraso e o bafo de álcool à esposa: foi pego de surpresa pelo aniversário do chefe. Afaga a filha, toma um banho morno (como há muito tempo não fazia) e janta assistindo a TV. Recolhe-se ao quarto, beija fraternalmente a companheira, deita-se, lembra da ruiva e dissolve-se no prazer de sentir a gradual falência da mente. Ri de si mesmo. Adormece e não sonha.

A catraca

A CATRACA

Hoje, só sobrevivem do tal lupanar o trauma de ex-virgens acuados e as reminiscências dementes de idosos nostálgicos da distante e desbotada virilidade.

Aconteceu no meio de uma tarde ensolarada. Bateram à minha porta e avisaram que havia chegado a hora. Como se tudo já estivesse combinado, o pai empilhou uns tostões na minha mão, me colocaram num carro e parti para o desconhecido.

Quem visse o meu semblante tenso, poderia supor que me conduziam à força para o DOI-CODI, nunca imaginariam que aquela viagem tinha como destino o crepúsculo da minha insossa inocência pelo alvorecer temperado da luxúria. O trajeto, por caminhos tortuosos, embalou na subida de uma ladeira no Rio Comprido, mergulhou num túnel esquecido e desembocou na enigmática Rua Alice.

Como se não bastasse o pânico do novilho ameaçado pelo abate, incomodava-me a ideia de um randevu localizado numa via batizada com o mesmo nome da minha bisavó. Para um garoto recém-catequizado, a sugestão do pecado ganhava sons incestuosos e desestimulantes. Não demorou para que estacionássemos em frente àquela fastuosa mansão cravada às margens do nobre bairro de Laranjeiras. Que vista! Rodeada pela paz da paisagem bucólica, erguia-se a rosácea e imponente construção, cercada por um muro que lhe dava o aspecto de fortaleza. Se me afirmassem que era um convento, eu acreditaria. No centro da murada, um arco apresentava o portão destrancado, acesso que se abria para os mistérios da carne. Ignorando as minhas pernas trêmulas, a boca seca, a voz afogada, meus companheiros me empurraram para o interior da arena das leoas. Entrei em cena como um personagem inútil, jogado de última hora nas páginas do Decamerão.

Recordo, com certo pudor, que as minhas primeiras manifestações libidinosas ocorreram quando eu assistia ao seriado “Jeannie é um gênio”. A imagem erotizada daquela odalisca loira piscando os olhos me causava a precoce mágica incompreendida e constrangedora da ereção. Talvez, Barbara Eden tenha sido o símbolo sexual de uma geração de ingênuos.

Por dentro, o casarão de Laranjeiras lembrava um cabaré rústico de filmes do velho oeste americano. O piso de madeira, mesas espalhadas por um amplo salão de grandes janelas escancaradas que revelavam a curiosidade de árvores indiscretas. Sentamos e nos serviram uma cerveja. A alguns metros de nós, uma bela balzaquiana, de pele clara e longos cabelos lisos, fumava abstraída do ambiente. Um dos meus camaradas mais desembaraçados a selecionou como protagonista da minha temida estreia. Nunca me esqueci do nome da mulher: Selma.

Ela se aproximou, perguntou o meu nome e me estendeu a mão… num ato de submissão, não resisti. Caminhamos juntos até a beira de uma longa escadaria que levava aos aposentos superiores, Selma me soltou, seguiu por uma brecha lateral e apontou o local por onde eu deveria subir. Estaquei perplexo diante da visão: uma catraca, semelhante às roletas que reinavam nos ônibus antigos.

Com a mente perturbada por aquele momento crucial, ao qual me lançavam sem manual de instruções, me apaguei a imagem da catraca. Fiquei fascinado. Como poderia um puteiro alcançar tal inteligência? Freud sofreria orgasmos antes do sexo ao perceber que a catraca assumia o significado mais perfeito da prostituição. Como são cruéis as traduções exatas do universo. Um sujeito cruzou meus olhos e atravessou insensível os braços abertos da roleta, eles estalaram e imediatamente o contador em sua base fez girar os números que se assemelhavam a uma carreira de dominós caindo uns sobre os outros. Não havia romance, não transpirava amor, apenas a fria e exata sequência matemática. Aquele vislumbre mecânico aquietou meus sentidos e como a Selma me aguardava no topo da escada, entreguei-me ao abraço gélido da catraca. Fui mais um dígito intrépido acrescentado ao milhar. Subimos à alcova…

Um imenso quarto de teto alto, uma velha cama de casal, uma pia com sabão de coco e papel higiênico formavam o kit libertino. Selma perguntou se era a minha primeira vez, não sei se ela compreendeu a resposta, pois eu só conseguia balbuciar. Ela tirou a roupa e imitei a coreografia. Ela se deitou e eu me joguei ao seu lado olhando para o teto, que parecia estar a quilômetros de distância. Ela toca no meu segredo, na profunda intimidade do meu ser. Sinto uma forte descarga elétrica percorrer o corpo, um torpor de todas as sensações. Acabou. Não havia mais nada a fazer, a não ser pagar.

Ao sair, não precisei passar pela catraca. Dígitos descartados não contam. Os amigos perguntavam como tinha sido a experiência, continuei balbuciando. Não perdi a virgindade naquele dia, mas descobri a ejaculação precoce. Estive na Casa Rosa e a catraca não me deixa mentir. Jurei sobre o sêmen que escreveria este capítulo. A catraca é o mundo.

Brisa

BRISA

A Help, saudoso e difamado inferninho, um épico de Copacabana. Cravada na Av. Atlântica, a boate confrontava orgulhosa o oceano, sem esconder a sua vocação libertina. Templo preferido das garotas de programa e dos gringos peregrinando em busca de aventuras sexuais.

Em muitas ocasiões, me serviu como refúgio, abrigando meus solos pelas madrugadas. Por dentro, uma festa psicodélica, guardava as dimensões de um coliseu, com paredes revestidas de lantejoulas azuis e a pista iluminada por estroboscópios refletidos em enormes globos espelhados. Sobreviveu à virada para o século 21 como um cenário imutável dos anos 80. Hoje, demolida, está perto de virar o Museu da Imagem e do Som. Ali jaz a luxúria, fossilizada e morna sob o mausoléu de concreto.

Foi entre amazonas, caçadores e forasteiros que ela despontou da arena erótica e me pediu uma cerveja. Morena e bonita, não neguei a gentileza. Bebemos e conversamos por algum tempo, até que a jovem me disse que não queria trabalhar naquela noite e me convidou para sentar à beira da praia e esperar o Sol nascer. Estranhei o chamado, mas aceitei. Acomodados na areia, me ocorreu que eu não havia perguntado o nome da mulher.

“Brisa” — ela me responde. Imaginando que fosse apelido de guerra, perguntei pelo nome real.

“É Brisa” — confirma mostrando a carteira de identidade com registro na Bahia.

Que força milagrosa carrega a natureza. Cultiva flores em desertos e sopra brisas poéticas na penumbra árida dos porões humanos. Consegue inspirar uma prostituta a abdicar da grana, apenas para assistir os primeiros raios do dia ao lado de um homem qualquer. Então, com um beijo delicado, a alvorada banhou-se no mar.

Dante Versus Sade

DANTE VERSUS SADE

Dante é o alter ego do autor deste blog, Sade é o ícone de uma pornografia que camuflava o ideário político e libertário do escritor. O que poderia haver em comum entre dois autores separados pelas areias do tempo?

Sade nasceu no século XVIII, presenciou o alvorecer do século XIX e integrou fatos que mudaram o rumo da história da França e do Mundo: a queda da Bastilha, a Revolução Francesa e a ascensão de Napoleão Bonaparte. Nesse ínterim, ele escreveu suas obras. Repletas de pornografia, perversões e crimes que servem para contrabandear uma filosofia insubordinada. A literatura de Sade marcaria espaço além de sua época.

Dante nasce no século XX e observa as primeiras luzes do século XXI. Vive a Revolução digital, o surgimento estrondoso da Internet, testemunha o atentado terrorista que abalou o coração da maior potência do Ocidente (EUA) e convive com as incertezas climáticas de um planeta que começa a se ressentir da presença do homem. E é pela Internet que o nosso autor descobre que a libertinagem idolatrada por Sade continua sendo uma face incendiária da humanidade.

Navegando pelo universo virtual, Dante descobre os fóruns de sexo e decide conhecer de perto a prostituição. A voz da narrativa se faz através do protagonista, é dele que surgem os relatos verídicos dessa viagem libertina.

Dois autores, dois mundos. Em comum, a presença da pornografia em suas literaturas, a afirmação do erótico. O vulgar ornamentado com joias de valor; o libertino como um herói que desafia os costumes.

Sade foi um valente indomável que jamais desistiu de suas letras, mesmo encarcerado a maior parte da vida. Talvez, o Dante também traga em si uma dose de heroísmo: torna-se fanático por uma liberdade ilusória que o mantém acorrentado aos próprios instintos. Ambos corrompem a ideia que se espera de um cidadão convencional e nos fazem desconfiar que, na verdade, todos os heróis legítimos são subversivos.

Ser Libertino

SER LIBERTINO

Em sua concepção moderna, o termo libertino refere-se aos pensadores e literatos europeus que se abstraíam dos princípios morais do seu período, como aqueles relacionados à moral sexual, sendo caracterizado também como um hedonismo extremo.

O libertino é um lobo desgarrado, renunciou à matilha. É filho do destino, não de uma escolha voluntária. É consequência das desilusões, do longo celibato, da ausência de filhos. Em quase todos os casos, o libertino é o último da sua linhagem, sem descendentes reconhecidos ou conhecidos, “não deixa a ninguém o legado da nossa miséria”. Para um libertino, a vida é uma experiência que ele realiza através das viagens boemias e da luxúria intensa. Viver é ousar, o lema dos libertinos. O sexo como última fronteira, a noite como habitat, o amor como armadilha, a solidão como fé.

Para um libertino, não há nada de melancólico em estar só, a solidão é a alma absoluta da sua liberdade, uma liberdade tão pujante que pode ser perigosa, que ele mal sabe como usar. O libertino nasce do seu próprio acaso, como quase nunca se reproduz está sempre à beira da extinção. É espécie rara e noturna. O sexo para um libertino é como a jugular pulsando sangue diante de um vampiro, é fome ancestral e insaciável. A cada orgasmo, ele se vê diante de um corpo morto, é preciso outro, mais outro e mais outro.

A marca Os Libertinos surgiu em 2018, criada para um grupo de WhatsApp que tinha como membros indivíduos que se conheceram em fóruns sobre erotismo e encontros sexuais, majoritariamente homens que buscavam prazer como mulheres liberais. O grupo do WhatsApp acabou, mas a ideia permaneceu. Tentaram clonar o nome, porém nunca alcançaram o seu espírito. Ideias podem ser roubadas, mas o sucesso é intransferível. Aqui renasce um blog que irá registrar as jornadas boemias e libertinas com histórias surpreendentes e baseadas em casos reais, por mais que possam parecer incomuns. Existem muitas pretensas cópias de Os Libertinos por aí, mais eis aqui o original.

Não se imita um libertino, não se copia. Um libertino é aquele que se torna libertino, não aquele que apenas escolhe ser. Liberte-se.