Despropósitos do Acaso

Despropósitos do Acaso

Por engano, pedi ao taxista que parasse antes do local em que eu iria, desembarquei na Rua Washington Luiz, na Lapa. Percorri o estirão deserto de penumbras silenciosas até alcançar o Boteco Bacurau, que é a ressurreição do finado Bar das Quengas. Escolhi um lugar entre as mesas da calçada e me sentei, eu estava sozinho.

Admito, faz tempo que estou apaixonado, uma ligação inquebrantável e longeva, sou apaixonado pela minha própria companhia, acredito que seja um amor que só aprendemos no exercício da solidão. Não, não sou ególatra, é outra coisa, é uma conexão construída pelo tempo, pelas dores, pelo mergulho introspectivo e pelo reconhecimento da identidade pessoal. Não é um amor que se atinge facilmente, mas o caminho árduo para alcançá-lo nos recompensa com a maior nitidez dos sentidos e na melhor observação de tudo o que nos rodeia.

Pedi o meu uísque, um Black Label. O uísque é a única bebida que me eleva ao êxtase sem a consequência do mal-estar. Fiquei contemplando e sorvendo pequenos goles. O Boteco Bacurau fica em frente ao Botequim Beco da Noite, este último com muito mais aparência de botequim raiz. Eu estava me sentindo incrivelmente bem, quase feliz por estar ali, naufragado naquele ponto sereno da velha Lapa, sem compromissos ou obrigações com nada, apenas percebendo as luzes, as pessoas, a brisa morna e os aromas da noite. Longe das iscas da ansiedade, mergulhado na paz absoluta.

No ato da contemplação, avistei uma mulher a duas mesas à minha frente, também estava sozinha, bebia um drink que me pareceu ser uma taça de gim. De imediato, não tive a certeza de que estava sozinha, talvez esperasse alguém. Jovem, bonita, um rosto de beleza expressiva, olhos repuxados nos cantos lhe conferiam aparência felina, vestia uma calça jeans justa, uma camiseta branca cavada, os cabelos negros e compridos escorriam pelos ombros, pelas costas. Emanava uma aura atraente, transmitia algum charme. A mulher prendeu a minha atenção. A pergunta insistia em minha mente. Estaria sozinha? Esperava alguém? Por que uma mulher viria sozinha para um bar no extremo mais quieto da Lapa? O eco das dúvidas não trazia respostas.

Meus pensamentos se embaralharam, gosto de escrever sobre encontros, mesmo os de sexo pago, mas enjoei de escrever sobre o ato sexual e por isso me afastei dos sites que me permitiam falar sobre encontros com mulheres e garotas de programa, pois eles me obrigam a falar do coito. Quando meus cabelos ficaram brancos, compreendi que o sexo é a parte menos interessante de qualquer encontro, o melhor dessas histórias surge dos elementos que inflamam o nosso corpo. A curiosidade por aquela morena solitária na mesa de um bar serviu como o querosene que me inflamava a libido.

No terceiro copo de uísque, a boa euforia começou a me invadir, os brilhos das luzes se acentuaram, o meu sorriso quase escapava involuntário, o calor da noite carioca temperava o meu entusiasmo artificial. Veio-me uma ideia, uma intenção ousada. Peguei um guardanapo, puxei uma caneta que sempre levo no bolso e escrevi um recado.

“Estou sozinho, mas observando você aqui de longe, percebi que eu gostaria de uma boa companhia, uma boa conversa. Deixo o convite, pois você me pareceu uma boa companhia e uma boa conversa. Se puder aceitar, ficarei feliz. Estou a duas mesas atrás da sua.”

Quando o garçom se aproximou, pedi que entregasse o bilhete à bela morena solitária. Eu suava frio, quase arrependido do súbito gesto tão intrépido. Adoro a Lapa, a história da Lapa, os bordeis que a rodeavam, os nomes imortais que passaram por ali, os antigos bares povoados por garçonetes que não se negavam ao papel de provedoras de prazeres libidinosos, a repressão política e policial que fez a Lapa perder seus encantos por um tempo, a ressurreição iluminada que agora me abriga… É um dos lugares do Rio que mais carrega significados e memórias acumuladas pelos anos. É um porto de fantasmas.

Vi quando o garçom entregou o guardanapo à morena, senti a surpresa com que ela o recebeu, abriu e leu o que ele trazia escrito. Então, ela ergueu a cabeça procurando o autor e os seus olhos esbarraram nos meus, levantei o copo e acenei como quem brindasse a presença dela. Ela frisou os olhos, entortou um pouco a cabeça e sorriu. O sorriso… o sorriso foi como uma onda repentina me sequestrando nas areias da praia. Se o uísque me trouxe o êxtase, aquele sorriso me mostrou algum tipo de paraíso que eu ainda não conhecia.

A morena dobrou delicadamente o guardanapo, ficou estática, como se houvesse abstraído de tudo, fez um sinal discreto para o garçom, cochichou algo, levantou-se e veio na minha direção. Estremeci. Mesmo anestesiado pelas doses de uísque, a aparente aceitação dela ao meu convite me surpreendeu, me intimidou. Após a ousadia, a hesitação. E agora?

Agora ela estava sentada diante do meu olhar atônito, o rosto muito mais bonito e expressivo do que me sugeriu a distância. Dizer o quê? Eu não sabia o que falar, não acreditei no sucesso da minha imprudente empreitada.

— Boa noite. Prazer. Meu nome é Dante e vou te confessar que não esperava que você aceitasse o meu convite. Não sei bem o que falar, te faço uma pergunta cretina. Você é do Rio?

A menina me respondeu com um sotaque peculiar, disse que preferiu aceitar meu convite a ficar sozinha na mesa de um bar, a amiga que marcou com ela não viria. Contou-me ser filha de um coreano com uma brasileira, mora na Inglaterra e está passando férias no Brasil. Os olhos negros refletiam espelhavam as luzes de neon que nos cercavam.

— E qual seu nome? — emendei.

— Astrid.

Acertei, Astrid bebia gim e continuou a beber ao se instalar na minha mesa. Conversamos sobre Londres, sobre o Rio. É analista financeira, mas não falou muito sobre trabalho, estava como se fugisse das lembranças profissionais. Talvez por efeito da bebida, ela foi se soltando. Por duas vezes segurou meu pulso estendido na mesa quando falava da face solar das terras cariocas. Astrid idolatra o Sol, possivelmente o contraste mais marcante com o tom cinza da paisagem britânica.

Em determinado momento, sabendo que Astrid estava mais descontraída, ousei mover minha cadeira para mais perto, para o seu lado. Aleguei que seria melhor para ouvi-la, comentei que uso aparelho auditivo, ela se espantou.

— Você é tão jovem… — disse-me em um elogio obviamente falso.

Seus ombros tocavam os meus, sua perna roçava na minha em movimentos espontâneos. Seu perfume emanava suave, mas embriagante. Eu estava bêbado e me apaixonando. Astrid tinha uma voz firme e desembaraçada que soava doce aos ouvidos. Encarava-me quase ao ponto de me constranger enquanto falava. Os cabelos negros deslizavam por cima dos seios, um hiato no universo. Bêbado, apaixonado, inconsequente, avancei para beijá-la… Ela retribuiu.

Carinhosa, Astrid passou a segurar a minha mão com a força de quem segura a extremidade de um abismo. Em nenhum momento recusava-se a me beijar, sua língua bailava com a minha em perfeita sintonia, um balé de desejos reprimidos planejando uma insurreição. De repente, olhou o relógio e avisou-me que precisava ir.

— Não pode passar a noite comigo? — quase supliquei.

— Não posso. Preciso ir — respondeu-me com a força do sotaque inglês.

— Onde está hospedada?

— Copacabana.

Então, Astrid me fez entender que era melhor não. Foi um momento, um acidente emocional. Ela iria embora, eu ficaria, o futuro seria improvável e eram muitos os avisos para evitar o envolvimento. Incrível, em menos de duas horas eu havia vivido uma tórrida história de amor, a descoberta de uma alma gêmea, o encaixe perfeito de tudo na mesma proporção da impossibilidade de continuar. Fiz questão de pedir o táxi. Um último beijo.

— Deixa o destino decidir como decidiu hoje. É o despropósito do acaso — suas últimas palavras em um português contaminado por acentos britânicos.

Sumiu na madrugada. Fui caminhando em direção aos arcos da Lapa, mas no meio do trajeto parei e olhei para o céu, um ébrio procurando respostas entre as estrelas. Fiquei por alguns segundos me deixando tragar pelo cosmo, tentando entender o porquê de o eco das minhas perguntas nunca trazerem respostas.

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