A mulher do Diabo

A MULHER DO DIABO

Noite chuvosa de terça-feira, o relógio estava prestes a anunciar chegada da meia noite, não havia sono, foi quando convoquei o Sucatão e varamos a garagem para romper o asfalto molhado e nebuloso da Tijuca. Ruas vazias, uma garoa fina que insistia em ofuscar o para-brisa, nada indicava ser uma boa oportunidade para se buscar um momento de luxúria.

O horário avançado inviabilizava o sexo de cativeiro nas nossas conhecidas jaulinhas que chamamos de Termas, elas já estariam trancadas ou fechando naquela altura. Também não seria conveniente ligar para alguma das Mulheres-Pizza ou trepada delivery: as Frees, como nós conhecemos.

Para buscar o gozo quente naquela madrugada fria seria preciso me aventurar. Pense, leitor sem fé: o que é o sexo sem o tempero da aventura? O prazer repetitivo e sem emoção é quase como levarmos o pau para autenticar num Cartório.

Sim. Era melhor que aquela noite estivesse oculta sob a seda do imprevisível. Um Libertino escolhe ser libertino justamente por nutrir aversão ao tédio obeso e bolorento daquilo que já se conhece. Mas atente, meu devasso amigo, nem todo imprevisto significa ventura e nem toda empreitada nos rende um troféu.

Atravessamos a Presidente Vargas como num rali pelo deserto; ganhamos a Rio Branco, uma cidade fantasma; finalmente alcançamos a Ilha de Neon, penetramos na Lapa. Vila Mimosa, Lapa e Copacabana, os três únicos Reinos onde um Libertino pode encontrar páginas em branco para escrever suas letras épicas na alta madrugada.

Os faróis do Sucatão iam rasgando o negrume do piche correndo sob os pneus, meus olhos giravam em busca de alguma presa desgarrada pelas sarjetas. Cruzamos a Mem de Sá até a Rua do Senado, foi quando avistei a dupla: uma loira e uma mulata esboçando poses de me leva. Desacelerei o motor do meu combalido carro e aportei próximo à calçada, onde as duas vampes estavam estacionadas.

A mulata era fabulosa! Encaixada num vestido tubinho branco, bem justo; pernas grossas; cabelos alisados que despencavam pelas costas; a bunda em forma de colina; seios pequenos; barriguinha zero; lábios carnudos. A mulher pingava sexo quando andava.

A loira era apagada, sem que eu tenha necessidade de me estender mais na descrição.

— Gostei de você! Qual o seu nome? – Perguntei à mulata.

— Você vai foder com o nome, Gostoso? – Resposta à queima-roupa.

— É verdade, o nome não faz diferença. Mas você manda bem na cama?

— Você não perguntou meu nome? Sabe como me chamam? A Mulher do Diabo. Pergunta para ela? – Afirma ao mesmo tempo em que aponta para a amiga.

Responda-me, velho companheiro de tantas jornadas incrédulas, meu amigo leitor sem fé, do que mais eu precisaria para convidá-la a entrar no automóvel?

Partimos para a Glória, me decidi por um Motel na Rua Cândido Mendes, um antigo refúgio nas minhas fugas noturnas. Durante o percurso, a Mulher do Diabo ia apertando meu membro como se quisesse espremer um suco, não vou dizer que estava confortável, meu saco começava a ficar dolorido, mas aquele ímpeto de esmagar minhas bolas pelo menos revelava a empolgação da menina. Se os meus genitais sobrevivessem, o encontro prometia ser quente.

Segui suas instruções sobre o valor da doação que eu deveria oferecer, ficaríamos uma hora juntos, aceitei. Pedi um dos cubículos baratos do matadouro. Ao entrarmos no quarto somos recepcionados pelo cheiro festivo do mofo, algo comum nas alcovas do estabelecimento que escolhi.

A mulata não perde tempo, me imprensa no espelho da parede, me dá um nó de coxas e intimida:

— Gostoso, o pagamento é adiantado.

Concordo com a dedução do colega que me lê. Enviar mensagem de cobrança quando a febre começa a nos fazer superar a gravidade é algo brochante, mas era um direito dela. Não reclamei, paguei.

A menina ligou a TV, que deixou muda, depois ligou o rádio, colocando o volume nas alturas. Perguntei novamente pelo seu nome e ela respondeu que mesmo se dissesse um, seria falso. Portanto, não faria diferença dizer ou não dizer. Desisti. Fui para o banheiro, tranquei a porta, tirei a roupa e entrei no banho. Do lado de fora, o flashback de motel rolava solto e eu escutava uma voz esganiçada tentando acompanhar as músicas estrangeiras num idioleto desconhecido.

Terminei a ducha. Eu estava excitado com a ideia de abater aquela negra colossal. Enxugada rápida, enrolei a toalha no corpo e me precipitei para abrir a porta do banheiro. Não abriu. Rodei a chave outra vez. Nada. Forcei a maçaneta. Não abria. A ansiedade foi tomando conta. Sacudi novamente a maçaneta e dei umas pancadas na chave. Trancado por dentro! A claustrofobia começava a me fazer transpirar. Chamei a Mulher do Diabo e ela tentou me libertar por fora. A porta não se movia, era um tronco de madeira enraizado e fortificado entre mim e o orgasmo desejado.

Diante da frustração, sugeri que ela fosse pedir ajuda na recepção. Eu mal a escutei se vestindo, o som do rádio estava programado para aniquilar tímpanos. Só consegui ouvir a porta do quarto se fechando quando ela saiu para buscar auxílio. Fiquei de pé, escorado à porta, aguardando… Depois de vinte minutos de espera, desconfiei. Quarenta minutos se passaram e perdi a esperança. Soquei a porta. Gritei pelo basculante que eu estava preso no banheiro. Absolutamente nada! O quarto parecia envolvido num isolante acústico, a única coisa que se ouvia era o rádio estourando as paradas de sucesso do tempo do onça.

Sentei na privada e fiz um exercício de respiração para evitar o pânico. Minha certeza era imaginar que a piranha da Mulher do Diabo aproveitou-se da minha prisão involuntária para fugir com o cachê.

Talvez, por um nervosismo causado pela insólita situação, talvez pela falta do que fazer, eu senti vontade de defecar. Abri a tampa da latrina e caguei pensando nas pessoas das quais eu não gostava. Que passatempo maravilhoso! Limpei o intestino e a alma. Isso me ajudou a ficar mais calmo.

Um dos momentos mais comoventes da noite foi quando começou a tocar Sol de Primavera, do Beto Guedes. Lembrei das minhas paixões de outrora, da minha infância e até de alguns campeonatos de bolinha de gude que participei quando criança. O banheiro é realmente um lugar propício à meditação.

Mais de três horas se passaram…. Eu quase adormecia sentado no vaso sanitário, foi quando escutei alguém entrando no aposento. Corri para bater na porta, usei minhas últimas energias para pedir socorro. Uma voz idosa identificou-se como arrumadeira e foi chamar o gerente.

Logo escutei a voz de dois homens que me pediram paciência, iriam dar um jeito.

Aproveitei para vestir a roupa. Meia hora depois a porta se abria. Abracei, emocionado, os meus salvadores. O gerente me disse para ficar à vontade, me cobraria apenas o período, se desculpou pelo ocorrido. Revelou que estranhou quando viu a Mulher do Diabo saiu sozinha do motel, mas não quis incomodar.

Antes de me despedir, ajeitei meus cabelos, conferi meus pertences e ainda pude ouvir vazar pelos alto-falantes da alcova um som do passado, que brotava junto com as primeiras luzes do dia. Era o Eduardo Dusek cantando Nostradamus.

A loira do Tinder

A LOIRA DO TINDER

Meu lábio superior começou a tremer involuntariamente, eu não conseguia controlá-lo enquanto via o vulto se aproximar de mim em passos lentos e firmes. Farei aqui uma pausa para contar a história desde o início.

Fevereiro foi um mês de decepções pessoais imensas para mim, nessas ocasiões sempre me sinto empurrado para o doce abismo da caça sexual. Como já contei, não gosto muito do sexo no esquema delivery, esta coisa de chamar pelo zap para agendar o sexo pago. Sempre necessitei do tempero da adrenalina, do mistério que envolve um encontro.

Tudo aconteceu a partir de um match no Tinder, ela me passou o whatsapp, eu chamei e começamos a nos falar. Laura é o seu nome, suas fotos não eram nítidas, mesmo aquelas que me enviou, não conseguia ver o rosto, mas o corpo me pareceu interessante. Conversamos durante uma semana inteira antes de finalmente marcarmos o encontro, senti a menina muito curiosa por me conhecer, repetia que apreciava homens inteligentes, tento não me envaidecer. Saímos das limitações do zap e nos falamos diretamente ao telefone, ela tinha uma voz envolvente, sexy. Toda essa situação nos excitava.

Como ela não revelou o rosto, a minha insegurança sobre a aparência de Laura se mantinha. Disse morar no Meier, na rua Dias da Cruz, mencionou trabalhar como modelo fotográfico (detalhe que atiçou ainda mais a minha curiosidade) e que não exibia o rosto para evitar exposição desnecessária, garantiu ser bonita. Acertamos nos encontrar à noite, num dia útil da semana. O local seria o próprio Meier, ficava melhor para ela, na esquina da Travessa Miracema.

Na década de 90, funcionava um bordel de luxo na tal Travessa, chamava-se Termas 2001, uma espécie de Centaurus da Zona Norte. A lembrança desse fato não me pareceu um bom sinal, mas eu estava motivado, a garota realmente me despertou o interesse. Apesar de estar evitando dirigir, minha visão à noite não é mais a mesma, sacudi o Sucatão da garagem, acionei o motor adormecido e mergulhei no negrume do asfalto.

Quando embico na 24 de maio, saindo da rua Barão do Bom Retiro, encaixo um CD no aparelho e o som de Radiohead toma a cabine do carro de assalto…

Aquela melodia teve o efeito de uma porrada no meu peito, lançou-me para trás no tempo de uma forma tão brusca que quase perdi o foco na direção do automóvel. Era perto das oito da noite, mas a pista fluía no ritmo suave de um rio descompromissado com o destino.

Sucatão seguia em velocidade de cruzeiro, ladeando as margens castigadas da linha do trem, até dobrarmos à esquerda na rua Dias da Cruz, a Travessa Miracema fica logo no começo, dobrei a direita e estacionei. Pisei com minhas botas naquele território que há tento tempo parei de frequentar, olhei para a direção onde ficava o antigo bordel e nada mais existe ali, fora as lembranças remotas e os fantasmas que emergem das boas memórias.

Posicionei-me na esquina combinada, enviei mensagem avisando sobre a minha chegada. Não demorou, logo avistei uma loira alta, vestida em um macacão branco, cabelos compridos, escorridos e soltos, uma mulher absurda de linda. É verdade, ela só podia ser modelo fotográfica, sua imagem tinha a força de uma explosão nuclear, de um abalo sísmico. Meu aparelho auditivo sincronizou com o meu celular e obrigou os meus ouvidos a vibrarem com uma das minhas músicas pré-programadas.

A música, aquele vulto de um dourado reluzente se aproximando, meu lábio superior começou a tremer involuntariamente, eu não conseguia controlar. Minhas pernas bambearam, não esperavam esbarrar com aquela fêmea descomunal, um match do Tinder… Fiquei ali, esperando que ela chegasse diante de mim, com a sensação de quem estava com a cabeça aguardando a queda da guilhotina. Velho, barrigudinho, imaginei que ela passaria direto, me ignorando. Sinceramente, eu teria ficado aliviado caso ela escolhesse essa opção.

— Você é o Dante? — ela questionou assim que quase colou o corpo no meu.

— Sou, sou, sou eu. Sou o Dante — por pouco, não gaguejei.

— Mesmo com a sua foto, eu te imaginava diferente.

— Eu também — retruquei.

— Melhor ou pior?

— Laura, você é um assombro de linda.

Sugeri que fôssemos dar uma volta de carro, perguntei se ela topava beber um chope na Urca. Aceitou. Entramos no Sucatão, virei a chave e os pneus deslizaram pelo asfalto morno do subúrbio. No meu som, INXS nos brindou com os acordes de Disappear.

Subitamente, quando engato a quarta marcha, Laura põe uma das mãos na minha perna direita. Acredite, forista sem fé, quase tive uma ejaculação precoce. Ela foi puxando assunto, perguntou sobre como tinha sido o meu dia, o meu trabalho, eu me sentia tão intimidado pela sua escandalosa beleza que respondia em monossílabos. Falou sobre o trabalho de modelo, das fotos que faz para anúncios e lojas, da faculdade de Biomedicina que está concluindo.

— Qual sua idade? — perguntei.

— Vinte e cinco e você?

— Sou velho. Não digo a minha idade, pois irei me sentir ainda mais velho se disser.

Laura riu, um riso contido. A mulher, além de linda, possuía um charme espontâneo. Na Urca, sugeri que parássemos em frente a Praia Vermelha, ela gostou da ideia. Estaciono o Sucatão, giro o pescoço para admirá-la e nos beijamos. Foi um beijo faminto, enlevado por uma libido selvagem, nossos lábios disputavam para ver quem engolia quem.

Enquanto nossas línguas se enroscavam, ousei, passei mão sobre um dos seus seios, Laura emitiu um gemido baixinho, jogou a mão sobre o meu combalido pênis. Ousei mais, enfiei a mão sob o macacão e senti a textura da pele dos seus peitos duros, bicudinhos. Ela não fez menção de censurar. O carro queimava, nossos corpos quase em chamas, mas nos agarrávamos mais, nos sarrávamos mais. Eu estava próximo de outra ameaça de ejaculação precoce, lancei meus pensamentos para temas aleatórios, pensei no zoológico, na Quinta da Boa Vista, no incêndio do Museu Nacional. Resisti, mas resistir é inútil, já nos ensinavam os Borgs de Star Trek.

Minha playlist nos envolveu com One, do U2.

— Adoro U2 — ela interrompe o amasso para me confessar sua preferência.

Laura começou a tentar soltar meu cinto, forçar minha calça, ela queria me abocanhar. Transtornado e estabanado, quase tirei a calça pela cabeça. Libertei Pikachu e a garota o abocanhou como se fosse o último pênis do planeta Terra (que tragédia se fosse).

O escritor mais talentoso em qualquer língua não conseguira descrever o boquete de Laura. Ela passava a língua desde a raiz do saco até a cabeça do pênis. Lambia como se chupasse um sorvete. De repente, engolia o pau inteiro e apertava com delicadeza os meus testículos. Eu pressenti que a qualquer momento ia me autoejetar do carro de tanto tesão. Tentei inutilmente fazê-la interromper o boquete, a garota não chupava para agradar, ela gosta, gosta demais.

Com a boca no meu pênis, ela desbotoou a parte de cima do macacão e permitiu que seus seios escapassem. Duas esferas perfeitas com bicos rosados em que ela esfregou meu pau enquanto o devorava. Eu tentei, tentei, porém, não consegui mais. Gozei as entranhas na garganta da menina, ela engolia a minha seiva como quem executa um ritual diabólico. Os vidros do Sucatão embaçados, o oxigênio se esvaiu da cabine, eu precisava respirar.

Recompostos, fomos andar próximo à areia. Ela de mãos dadas comigo. Inebriado, enlouquecido, não conseguia parar de contemplar aquela beldade. O cheiro do mar, as palmeiras, a visão do oceano. Sim, eu poderia me apaixonar por aquela mulher. Infelizmente, no mundo libertino nada é perfeito e eu sempre costumo crer que o meu celibato não é uma opção, mas uma imposição do destino.

Laura me contou que tem namorado, mas que curte encontros casuais, que o parceiro sabe e que praticam o poliamor, um nome moderno para a poligamia. Gentil, afirmou que gostou de mim, que nos veríamos de novo, mas não acredito que aconteça. Retornamos ao Meier, ela desembarcou no ponto em que a encontrei, nos despedimos com um beijo feroz que arranhou nossas línguas.

Antes de nos despedirmos, perguntou se eu poderia dar um “presentinho”, para dar uma força. Eu hipotecaria o meu chalé na bucólica Tijuca por ela. Dei o que eu tinha na carteira e ela partiu.

Manobro o Sucatão, acelero, ligo o som e a cabine afoga-se na voz de Tina Turner com Golden Eye

Os pneus do Sucatão dançavam rasgando a penumbra das luzes de vapor de mercúrio no retorno à bucólica Tijuca. Meu nome? Dante, me chamo Dante. E a partir de agora, qualquer aventura é possível.

A garota da Urca

A GAROTA DA URCA

CASUALIDADE

Eu preferia estar escrevendo um relato tradicional, informando o telefone, o site e as fotos da protagonista, mas não será possível porque a garota prefere não se expor em espaços como os fóruns. Por isso, o que teremos aqui será um relato off. Caso se interessem pela personagem, sugiro que soltem os perdigueiros e tentem encontrá-la com as pistas que irei exibir.

BUSCA FRENÉTICA

Há cerca de três semanas, eu navegava no Tinder, onde frequento cada vez mais raramente. Naquele esquema tedioso do cara-crachá, marcava o coraçãozinho nas faces mais expressivas. Alguns matches aconteciam, enviava mensagem, mas sem resposta. Quando já estava para fechar o aplicativo, recebo um retorno.

— Olá — envia-me a mulher.

— Oi. Tudo bem? — Respondo.

— Tudo bem, sim.

— De onde você fala?

— Da Urca e você?

— Estou na Tijuca. Qual seu nome?

— Clara.

A conversa prosseguiu por mais algumas linhas até que sugeri que continuássemos o papo pelo WhatsApp. Clara aceitou.

Não posso dizer que fiquei surpreso quando Clara se revelou uma sugar baby, o eufemismo pós-moderno para garota de programa. Nas fotos do Tinder a moça é tão inacreditavelmente bonita que perguntei se poderia me enviar fotos pelo zap, ela atendeu o meu pedido sem cerimônias ou frescuras hipócritas de quem teme pela identidade. 

Clara é uma loira de olhos verdes, disse ter 1,70m, seios médios em forma de pera e com o biquinho dos mamilos apontados para o espaço sideral, pernas longas e grossas cobertas por uma penugem loira formada por pelos naturais, o rosto possui uma simetria invejável que denuncia ascendência europeia. Lindíssima. Decidi ser mais objetivo diante da revelação fotográfica daquela beldade.

— Quanto é para poder ficar com você? — Pergunto na lata.

— Docinho, não estipulo valor. Você me dá o que achar que mereço.

Estranhíssimo — pensei. Não confio nesses discursos de “você me dá o que mereço”. Fiquei desconfiado e temeroso. Uma loira portentosa, moradora da Urca, fazendo programas e não querendo garantias? Algo de podre no Reino da Dinamarca.

— Não pode nem sequer me dar uma ideia do valor? Fico inseguro desse jeito — joguei aberto.

— Docinho, confio no seu bom senso.

Havia um sotaque na pronúncia de Clara que eu não conseguia identificar.

— Você é do Rio?

— Não. Sou do Espírito Santo. Capixaba. Filha de brasileira com alemão.

Estava explicada a aparência escandalosamente nórdica da moça. É interessante perceber o quanto o sangue nórdico fascina as nossas veias de brasilidade mestiça. Clara possui um sotaque mixado entre mineira e falante do interior de São Paulo. É melódico, gostoso de ouvir, acaba servindo como mais uma ferramenta de sedução da menina, como se já não bastasse a sua beleza estonteante. Continuamos conversando, percebi que estava falando com uma mulher inteligente, foi quando ela me revelou ser formada em Letras pela PUC e lecionar como professora em escolas particulares. Por que fazer programa?

— Porque eu gosto e me gera uma renda a mais para as minhas futilidades.

Eu estava com muitas dúvidas sobre arriscar conhecê-la. Em um momento em que conversávamos sobre livros, ela me revelou possuir mais de um exemplar de um título raro que procurei por metade da minha vida sem encontrar. Perguntei se ela me venderia o livro, ela respondeu que sim. As minhas dúvidas se dissiparam, decidi conhecer Clara.

A BELA DA URCA

Ela me passa o endereço, um prédio na Urca, em uma rua próxima a uma praça no miolo do bairro. Acionei os motores de Herbie, meu fusca, e partimos rumo ao desconhecido. Nunca cultivei o costume de me aventurar em encontros sexuais sob a luz do Sol, mas o advento da pandemia obrigou-me a alterar hábitos seculares em mim. 

Marcamos após o almoço, o dia estava belíssimo, com um céu azul tão impecável que se afigurava opressor. Qualquer beleza excessiva intimida o homem comum. Para uma sexta-feira, o trânsito estava tranquilo e Herbie deslizava sereno sobre o asfalto, ostentando a sabedoria milenar dos fuscas. Atravessamos Botafogo, entramos na avenida da Urca que margeia a Baía de Guanabara e nos abismamos com aquela paisagem eletrizante do melhor Rio de Janeiro. Parei o carro e tirei fotos como um turista inebriado. Não tive dificuldades para estacionar. Envio mensagem pelo celular perguntando o número do apartamento, conforme instruções de Clara, ela informa e prossigo na operação.

Um prédio baixo, discreto, com porteiro eletrônico. Toco no apartamento e a voz feminina com sotaque me recebe.

— Bem-vindo, querido.

A descarga elétrica libera a porta. Sem elevador, subo pelas escadas envoltas em penumbras e alcanço o segundo andar. A porta estava semiaberta, mas toco a campainha. A porta se escancara subitamente e o meu coração quase interrompe o fluxo delicado da vida. Acredite, afeiçoado forista, que mulher absurda. 

Clara é a mulher elevada a raiz quadrada de algum teorema supremo e divino. Atendeu-me à porta com um top e um shortinho que revelavam toda a sua dourada exuberância feminina. Foi como se meus pulmões entrassem em modo de suspensão, creio que parei de respirar por uns vinte segundos. As batidas dos meus bolorentos músculos cardíacos dispararam como se estivessem em uma crise de ansiedade. Clara percebeu meu nervosismo e riu.

— Entra, guri — ordenou-me com um sorriso que escandalizava seus dentes perfeitos, pérolas esculpidas entre seus lábios carnudos.

LAR DOCE LAR

Sei que alguns dos afeiçoados foristas duvidarão desta história. No mínimo, se perguntarão na intimidade dos pensamentos: “será que é verdade?” — Eu sou capaz de compreender o ceticismo desses amigos, é difícil enxergar outras possibilidades quando estamos totalmente acostumados ao sexo delivery. No entanto, creia estimado parceiro de aventuras, é verdade o que narro aqui. Tento preservar todos os detalhes dos quais me recordo para que a história transmita a veracidade do que vivenciei. Não nego, fiquei tenso durante o tempo em que estive com Clara. Passei por uma outra experiência semelhante no Tinder, mas não com a profundidade da que relato agora para vocês.

O interior do apartamento mostrava simplicidade. As paredes em tom bege refletiam a minha palidez diante da Vênus radiante. Uma estante de madeira escura guardava livros e revistas em pilhas aparentemente desordenadas. A luz natural invadia todos os cômodos, tudo muito solar, o que não deixava dúvidas sobre a extrema beleza de Clara. Aqueles pelinhos dourados das pernas brilhando a cada toque da claridade começou a me causar um tesão quase incontrolável. É uma confidência, mas adoro mulheres com pelos loiros nas pernas, considero um elemento excitante. Além disso, a garota ia à minha frente com o short minúsculo deixando escapar a polpa de sua bunda digna de capa de revista.

— Vem conhecer a casa — ela me diz.

Pega a minha mão e me leva a cada canto do apê. A cozinha pequena quase fazia parte da sala; dois quartos também de dimensões modestas, um deles abrigava uma cama de casal e o outro estava repleto de bagulhos e com uma gaiola habitada. A menina criava um furão. Sim, meus amigos, um furão como bicho doméstico. Quando o animal me viu, pulou nervosíssimo, como se fosse arrebentar as grades da gaiola. Ele me encarava e emitia uns grunhidos assustadores. Fiquei com a sensação de que se ele escapasse da cela sobraria pouco de mim. Clara me puxa do quarto selvagem e fecha a porta.

Entra comigo no seu recanto mais íntimo, o quarto em que dorme. Havia duas prateleiras com uma coleção de pênis de borracha, desde o tamanho Terra de Gigantes ao diminuto modelo Tatoo, da Ilha da Fantasia. Na parede atrás da cama, algemas prateadas estavam penduradas como se fossem objetos decorativos. Num mural lateral, vi chicotes expostos. Em frente à cama, um retrato da Sharon Stone segurando o picador de gelo do filme Instinto Selvagem. Parecia o set de filmagem de “Cinquenta Tons de Cinza”. Tudo era estranho.

De volta à sala e Clara me pergunta se aceito um suco de laranja.

— Aceito.

Ela sai e retorna com um copo suando de gelado, bebo quase que em um só gole para irrigar a minha boca seca pela ansiedade. De repente, ela coloca a mão na minha perna e fica friccionando as unhas numa região muito próxima ao Pikachu, que nesta altura já não sabia se queria fugir ou ficar. Calor. Clara sugere que fiquemos no seu quarto, ela ligaria o ar-condicionado e colocaria música. Segui a líder.

Clara é calma, gestos lentos, voz serena. Conversar com ela é quase como se estivéssemos em uma sessão de Tai Chi Chuan. Os olhos emitem um tom verde faiscante, capaz de hipnotizar a serpente bíblica. Conta-me um pouco da sua vida, fez parte da Marinha por um período como enfermeira, mas depois decidiu seguir o magistério. Jovem, morando bem, deve ter se esforçado para compor a trajetória. Perguntei de novo: por que fazer programas?

— Fantasia e vontade de ter mais dinheiro — ela responde.

— Não tem medo de trazer estranhos na sua casa?

— Nem todos vêm aqui, sou muito criteriosa nas escolhas. Sinta-se um privilegiado.

Articuladíssima, a garota sabe seduzir. Talvez, nem precisasse saber, pois com aquela estampa europeia ela seduz até estátua do século 19 cagada por pombos.

Realmente, eu gostaria de poder colocar aqui os dados de contato da loira. Quando perguntei sobre fóruns, ela disse que conhecia; quando a questionei novamente se me permitiria escrever sobre nosso encontro, ela explicou que preferia clientes aleatórios que a encontrassem pelo aplicativo. Não me restam opções além de respeitar a vontade da mulher.

A campainha toca, meu coração quase sai pela boca e Pikachu quase comete um salto suicida pela janela. Quem seria?

— Gato, dá um minutinho que eu vou atender. Você se importa?

Não sei se balancei a cabeça aprovando a intenção de Clara ou se a minha cabeça apenas tremeu histérica motivada por lembranças de cenas de filme de terror. Ela se levantou e foi abrir a porta.

— Gal? Tava por onde, mona?

— Ai Barbie, nem te conto…

Quando dou por mim, irrompe pela sala uma travesti esbaforida, de cabelos compridos com mexas claras de reflexo, usava uma bermuda de causar hemorroidas e falava com uma voz dotada de um inconfundível tom de malemolência da goiabada. Apalpei minha calça e não localizei Pikachu, temi pelo pior. Eu só pensava em correr e entrar no Herbie, numa simulação de fuga espetacular de Alcatraz.

— Dante, essa é a Gal. Gal, esse é o Dante.

— Dante é seu nome?

— É, sim.

— Huhuhuhuhahahaha…

A risada estridente da Gal causou interferência no meu aparelho auditivo. Tarde demais para fugir…

A dança da enguia

A DANÇA DA ENGUIA

Era uma sexta-feira do mês de dezembro, um fim de tarde muito quente no Rio e a sensação de calor convidava para uma noite de novas aventuras. Como de hábito, eu e meu sócio da night, o Teixeirinha, marcamos o nosso tradicional chope de final de ano. Era uma data ímpar: iríamos comemorar 15 anos de uma sólida amizade e, por isso, haveria também uma esticada a um dos nossos points prediletos onde pretendíamos romper a madrugada.

Marcamos de nos encontrar pelas 19h30 próximo ao Mourisco, em Botafogo. Uma das marcantes características do Teixeirinha é a impontualidade, portanto, ele só chegou às 20h, mas eu já estava lá, pacientemente, esperando. Apareceu todo eufórico, segurando uma embalagem numa das mãos. Quando se aproximou, vi que se tratava de um LP. O Teixeirinha tinha dessas coisas, virou colecionador de LPs somente quando pararam de fabricar LPs. Foi logo anunciando com a voz grave de tom meio nasalado:

— Encontrei, cara! Encontrei! O LP do Michael Jackson. Thriller! Mais um pra coleção!

Ele estava bastante empolgado com o novo item para aquela o seu acervo jurássico.

Estávamos os dois sem carro nesse dia e sugeri que pegássemos um táxi para fazermos uma boquinha no Rio Sul, perto dali. O Teixeirinha topou de imediato, mas achou que estava cedo e pediu para irmos caminhando, atravessando a pé o Túnel do Pasmado. Não entendi muito bem o objetivo da caminhada, mas lá fomos nós…

Quando alcançamos, mais ou menos, o meio do túnel, o Teixeirinha pisou em falso numa das lajotas do piso, que quebrou na hora e criou uma fenda onde ele caiu em pé, cravando as duas pernas no buraco. Começou a afundar lentamente, como se estivesse em areia movediça. Quando vi, a cabeça dele já estava na altura do meu joelho.

Imediatamente, tentei segurar o braço do meu amigo para tentar resgatá-lo daquele atoleiro, mas o Teixeirinha é daquele tipo que quando fica nervoso quase beira o histerismo. Quando agarrei seu braço, ele passou a agitar convulsivamente sobre a cabeça o LP que tinha nas mãos e, ao mesmo tempo, gritava:

— Salva o Michael Salva o Michael Primeiro salva o Michael!

Fez-se a ocorrência surrealista, no meio do Pasmado, onde eu decidia se deveria salvar primeiro o Michael Jackson ou o Teixeirinha. No final, consegui resgatar os dois e poupá-los de serem tragados pelo Túnel movediço.

Conseguimos chegar ao Rio Sul, jantamos e partimos para Copacabana, onde tomaríamos nosso chope.

Paramos num pé-sujo ali na Miguel Lemos e começamos nosso ritual de chapar. Lá pelas 23h30 traçamos que iríamos entrar na Help, o local mais próximo de onde estávamos.

Fim de ano, a Help estava abarrotada. Muitas mulheres e uma grande diversidade de gringos. O Teixeirinha, que já estava para lá de Marrakesh, era só felicidade. Ficava o tempo todo falando em inglês, tentando se passar por americano, achando que assim teria mais atenção. Eu, que às sextas-feiras, me fantasiava de executivo, num terno e gravata, porque julgava que me conferia mais moral sair assim, não havia mais poros para suar, o calor me massacrava.

Pelas 2h da madruga, outro acontecimento. Estávamos bebendo numa das extremidades do salão, quando surge do meio da pista de dança uma morena exuberante: cabelos compridos, um vestido preto justo, alta e bem charmosa. Ela mirou direto o Teixeirinha e parecia estar vindo lentamente em sua direção, vinha dançando e não desviava os olhos dele. Quando me virei para o rosto do Teixeirinha, querendo saber se ele tinha percebido, o sujeito estava apoplético e sem reação. De repente, se manifestou com a frase que ficaria registrada para sempre em nossos arquivos:

— Que isso, cara! Olha a mulher que tá vindo aí fazendo a dança da enguia! – Exclamou. 

E era verdade, a menina vinha num tal contorcionismo que faria inveja a muita Odalisca profissional. Como eu já estava explodindo em risos, resolvi me afastar e acompanhar o episódio a uma distância segura. O Teixeirinha começar a dançar, indo ao encontro da garota e imitando a mesma coreografia erótica que havia batizado como dança da enguia.

O meu parceiro se torcia em movimentos sofríveis de um corpo bêbado que já năo respondia pela integridade da sua coordenação motora. Mas o Teixeirinha se esforçava, num heroísmo suicida, tentando impressionar a garota que também continuava a se lançar insinuante.

De repente, perdi o Teixeirinha de vista! Ele desapareceu! Forcei a vista na procura e nada… A garota continuava dançando, mas cadê o Teixeirinha? Comecei a notar que se abria uma clareira na pista de dança e pensei logo: “Deu merda! ”

Corri em à pista e encontrei o Teixeirinha, estatelado no chão, cercado de gringos que tentavam ajudá-lo, ele gemia alto e ainda tentava explicar:

— Porra! É cãibra! Cãibra! Eu não sei falar essa porra em inglês, mas é căaaaibra! – Lastimava-se o meu camarada. 

Tive que chamar um dos seguranças para me ajudar a erguer o Teixeirinha, ele não se levantar de jeito nenhum, alegava que a gravidade era mais forte do que ele.

Terminamos numa mesinha do Bob’s, devorando saborosos sanduíches e sorrindo para o borbulhar das ondas que acariciavam as areias da praia.

Cest La vie!

A pombagira

A POMBAJIRA

A POMBAJIRA

Para ser livre é preciso fracassar! Não me tome como insano, pois se lhe revelo uma das minhas maiores iluminações, o faço por ter sido eu próprio a cobaia de onde brotou essa sentença.

Qualquer êxito, por mínimo que seja, transforma o bem-sucedido em servo de uma prepotente implacável: a vaidade. Conquistar o sucesso é iniciar um ciclo de escravidão.

Aos 48 anos, eu não tinha problemas por ter trabalhado pouco, não me envergonhava por não haver construído nada com o suor do meu rosto; não me incomodava viver confortavelmente, graças a uma gorda parcela da pensão de minha mãe, viúva generosa de um militar falecido; menos ainda me constrangia o fato de me abrigar sob a asa materna, num amplo apartamento em Santa Teresa, próximo ao Largo das Neves. A despreocupação da cigarra é sempre muito mais saborosa do que a rotina gananciosa das formigas.

Em certa altura, para disfarçar minha sina de desocupado, convenci minha genitora a me comprar um táxi. Eu deixava de ser um vagabundo oficial para me tornar um malandro com álibi. A vizinhança ficou satisfeita, minha mãe mostrou-se orgulhosa e eu podia desfilar num carrão amarelo, mais afeito a transportar libertinas à passageiros que me remunerassem.

Com o fluir dos dias e a verdade inevitável que emerge de cada alvorecer, a vizinhança alcoviteira apercebeu-se de que eu não me tornara um regenerado da esbórnia ou um ex-boêmio catequizado. Continuava, mais do que nunca, o mesmo hedonista que afrontava o moralismo dos hábitos pequeno-burgueses. Por se sentirem ludibriados, passaram a maldizer meu táxi divulgando que ele possuía dois bigorrilhos, um que ficava sobre o teto do carro e outro que se postava atrás do volante. Infames! Mas eu desprezava essas pequenas vilezas, o que realmente me importava era abraçar os prazeres que nos proporcionam sorver as delícias do tempo presente.

Fiz-me um notívago. O Sol embalava meu sono e a Lua era a musa da minha adoração. Eu apreciava ver o dia apagar da janela do meu apartamento, o prédio se debruçava sobre um abismo que abria a vista para o Centro e parte da zona norte. As sombras começavam a exibir pequenos diamantes, pontos de luz que se derramavam por vales e montanhas. O anoitecer é uma metamorfose. Eu acendia um cigarro e o consumia em breves tragos enquanto contemplava o desabrochar daquela imensa mariposa: a Noite.

A felicidade não é um momento esparso, tampouco é uma busca interminável que devemos trilhar. A felicidade é apenas uma frequência captada quando nos sintonizamos ao que nos rodeia.

Debaixo de um céu estrelado, entro no carro, ligo o rádio, seleciono uma estação para encontrar a música que me servirá como anfetamina e alimentará o meu entusiasmo. Uma batida sexy invade a cabine do automóvel. Acelero, antes de engatar a marcha, ouço o motor vibrando, recolho a âncora e começo a navegar pelo negrume do asfalto.

Conheci Selene no baixo meretrício, a Vila Mimosa, uma menina de 21 anos, menos da metade da minha idade. Ela guardava uma eletricidade que me fascinava, além de ser uma negra bonita, de porte vistoso. Já no primeiro encontro, tivemos aquela afinidade que é fatal para os instintos, a simpatia da pele.

Eu, que era acostumado ao clima claustrofóbico dos bordéis do Centro da Cidade, fui esbarrar com a Vila Mimosa somente durante o ofício de taxista, ao levar dois nordestinos que me indicaram o caminho da Zona boêmia. Confesso que a primeira impressão que tive, ao atravessar um pequeno arco sob os trilhos da linha de trem que margeia a Praça da Bandeira, foi a de estar penetrando num lugar macabro. 

As ruas são penumbrosas e a paisagem é devastada até alcançarmos o miolo, onde tudo se parece com uma grande festa junina, é a jubilação da luxúria. Constatei que não fui eu quem conduziu os nordestinos, eles é que me arrancaram do tédio arrogante dos que não acreditam haver mais nada para descobrir. Havia a Vila Mimosa e o meu amor por ela foi brutal, desmedido!

Selene senta-se no banco do carona e não espera que eu respire para me dizer que desejava conhecer uma boate de swing naquela noite. O Rio, como toda metrópole decadente, abriga suas alcovas de devassidão. O swing, que é a prática da troca de casais, se transformou em febre entre os libertinos. Eu, que nunca me neguei à lascívia, aceitei o convite.

— Então vamos logo que hoje estou com a Pombagira! — a afirmação de Selene antecipava uma transfiguração quase literal. Durante a madrugada, eu enfrentaria a Pombagira.

Estamos em 2008, percorrer o Rio nas altas horas noturnas era navegar por uma cidade deserta, escura, os burburinhos de vida se manifestavam em ilhas esparsas e raras. A atmosfera era composta por ares que comungavam selvageria e medo. A Cidade Maravilhosa se tornara sinônimo de uma aventura perigosa e opressora.

A boate escolhida por Selene localizava-se no Centro, perto ao desamparado Campo de Santana, em frente à casa onde nasceu o Barão do Rio Branco.

Ao chegar, atravessamos uma pequena recepção, recebi uma cartela para registrar nosso consumo e a chave de um armário onde guardamos nossos pertences. Subimos uma longa escada e desembocamos num salão espaçoso. Um telão suspenso exibia clipes musicais. Em torno da pista de dança, estendia-se um prolongado sofá onde as pessoas sentadas entreolhavam-se como quem avalia a qualidade das carnes na vitrine de um açougue.

Talvez, tenha sido a bebida a responsável pela transformação. Ao final da noite, eu e ela havíamos, cada um, alcançado cinco doses de vodca com Red Bull.

Selene levanta-se e me puxa pela mão na direção a uma pequena fenda, entramos. Não havia luz, era um complexo de corredores confusos, penumbrosos, um labirinto. Pelo caminho, era possível perceber a presença de casais embolados num nó cego de braços e pernas, entregues ao mais absoluto bacanal.

Ela me viu e me chamou. Estava cercada por um cinturão de homens e mulheres, totalmente nua, possuída pela Pombajira e pela loucura da orgia. Uma serial killer do sexo! Aquela visão me intimidou, me acanhou. Eu, que sempre me considerei um desregrado sem fronteiras, me senti afrontado diante daquela volúpia coletiva. Bastaram poucos segundos para que eu abandonasse a máscara do libertino e me assumisse um pudico.

Como não me movi, ela me apontou e gritou para a turba orgíaca que eu era o seu namorado, foi o que bastou para que a embolada humana começasse a se arrastar em minha direção num alvoroço de mãos e braços formando os tentáculos de uma gigantesca Medusa erótica. Aos trancos e barrancos, driblei o polvo pervertido e resgatei Selene daquele estupro voluntário, ela cedeu a contragosto.

Voltamos para a pista e um funk embalava os corpos, todos tomados por um espírito desregrado. Selene, tal qual uma serpente encantada pela flauta indiana, iniciou uma dança em que se agachava e se empinava, simulando ondulações provocantes. Eu me mantive estático, impassível, apático. O clima devasso não me contagiou. Aborrecida com a minha frieza, ela pediu para ir embora.

Tento explicar a Selene que cada um possui seus limites, mas percebi que eu tentava era justificar para mim mesmo a minha fuga. As novas gerações já nascem com o vírus da depravação inoculado nos genes.

Entro no carro, giro a chave na ignição, piso no acelerador sem engatar a marcha, ouço o grito feroz do motor, ligo o rádio e deixo a música inundar a cabine. Provo a boca da mulata ninfomaníaca que serpenteia ao embalo do som.

O refrão estrangeiro se repetia através dos alto-falantes: “Set me free”.

Uma gargalhada estridente vaza do automóvel, deve ter reverberado como eco na Central do Brasil, era a Pombagira se despedindo. Eu havia sobrevivido! Mas a noite nunca tem fim. Solto as amarras e os pneus ganham o asfalto, meu oceano.

Meu nome? Podem me chamar de Dante.

A despedida

Anoitecia em Copacabana, fim de tarde de céu avermelhado e límpido. O trânsito estava intenso naquele início de dezembro de 1994, eu desfrutava das férias ao lado de Karin, apaixonado. Esperávamos o táxi que a levaria ao aeroporto, ela decidira voltar à velha Europa, primeiro para a Espanha e em seguida para a Inglaterra, de onde ela tinha sido deportada anos antes. Prometia voltar, mas a minha paixão intensa por ela dilacerava qualquer inocente esperança. O táxi aportou, ela embarcou carregando a única mala que levava e eu a acompanhei.

Já escrevi sobre Karin, uma gaúcha bonita ao seu modo, inteligentíssima, que conheci por um anúncio nos classificados do finado Jornal do Brasil, uma mulher que hoje eu poderia classificar como acompanhante de luxo. Morava na rua Tonelero quando a conheci pelo telefone, o nosso primeiro encontro também foi a nossa primeira noite juntos. Talvez, ela tenha gostado de mim, fomos ficando, dormíamos juntos, ela não me cobrava, não me exigia nada e cultivava a minha presença. Os quase três meses que passei ao seu lado, me envolvendo visceralmente com ela, resultou na inevitável paixão febril que me tomou o corpo e a alma.  

Karin tinha uns 25 anos, sofisticada, classuda, um corpo irretocável, cabelos loiros, olhos verdes e um sotaque do Sul ainda forte. Falava inglês fluentemente, fluência que conquistou nos seus anos morando em Londres. A garota foi um sonho, décadas se passaram e a memória dela ainda exala frescor em minha mente.

Ousei, apresentei-a a minha família, levei-a em minha casa e planejava, secretamente, uma vida com ela. Entre nós, havia a Europa e a profunda rejeição de Karim pelo Brasil. Convidou-me para ir com ela e eu, num gesto que me arrependerei até o fim dos meus dias, recusei-me a ir, aleguei que preferia esperá-la e preparar uma estrutura para quando ela retornasse. Nunca retornou, casou-se com um inglês, teve dois filhos e mora no interior de Londres.

Karin uniu em mim o amor romântico e o desejo da carne. Eu agonizava de uma atração abissal por ela. Nossa despedia foi um jantar triste, em um restaurante extinto de Copacabana, que se localizava em frente à Praça Serzedelo Correia. Quando cruzo por ali, não vejo mais a praça, não vejo a rua, não vejo os carros nem os pedestres, só vejo o jazigo de uma parte de mim. Existem pessoas e lugares que se tornam buracos negros da nossa existência.

A paisagem até o antigo aeroporto do Galeão ia se desfazendo em sombras diante dos meus olhos, tudo se desconstruía conforme o automóvel avançava. Eu ia de mãos dadas com ela, em silêncio, como lançado em uma oração inútil perdida entre todas as orações inúteis. Se um dia amei alguma mulher, essa mulher foi Karin, uma garota de programa que amava mais os próprios projetos, a própria ambição e a futilidade de querer ser uma inglesa que jamais será inglesa de fato.

Feito o check-in, ela precisava ir para a área de embarque. Seus olhos verdes, seus cabelos loiros, seu corpo impecável, no fundo eu sabia que aquela seria a última oportunidade para contemplar a sua presença. Um abraço, um beijo amargo na boca e ela começou a caminhar enquanto o abismo se abria entre nós. Antes que desaparecesse, olhou para trás, olhou para mim e sumiu na névoa labiríntica dos desencontros. Cartas, alguns telefonemas, uma ausência que me esmagava. Nunca mais, nunca mais — me gritava o corvo de Edgar Alan Poe.

Nunca mais. Ficou-me a cicatriz, um desses poucos ferimentos capazes de dizimar um libertino. Por sorte, em mim foi um ferimento que sangrou, sangrou de morte, mas fortaleceu a carcaça das minhas emoções. Não demorou para que a minha natureza mundana imperasse sobre o sofrimento poético. Mesmo assim, todas as vezes que atravesso Copacabana, que passo pela rua Tonelero, ouço o corvo me amaldiçoar…

— Nunca mais, nunca mais…

A fera camuflada

A FERA CAMUFLADA

Aos quarenta e cinco anos, ele ganhara a aparência de um homem distinto. Fazia uma década que havia constituído família, esposa e uma filha que amava imensamente. 

Mantinha uma rota rigorosa entre o escritório de advocacia, no Centro da cidade, e sua residência no Largo do Machado. Recusava os constantes convites de colegas e clientes para beber e confraternizar nos animados bares da Praça XV. Foi seguindo uma disciplina austera, mantida por muitas regras e mandamentos, que conseguiu escapar da Fera que o perseguia desde os primórdios da sua adolescência. Preferia nunca negligenciar a vigilância. Tinha medo do Animal e o pressentia espreitando em cada esquina sombria. 

Ao descer do prédio onde trabalhava, na Rua México, firmava os passos em direção ao Metrô. Evitava olhar os painéis de néon porque eles representavam perigo. Luzes noturnas encantavam a Fera.

Não ouvia música, não ingeria bebidas alcoólicas, repudiava conversas informais com mulheres. Na missa dos domingos, agradecia a concessão da sua apática existência. Entretanto, sabia que o Animal o estudava e tramava com cruel paciência, numa tocaia incansável. Mas ele não descuidava, não esquecia da Fera camuflada.

Entrava em casa, abraçava sua mulher, afagava a filha, respirava a atmosfera segura do seu apartamento, orgulhava-se por continuar ludibriando o monstro. Tomava o banho frio de todos os dias, jantava, assistia o noticiário da TV, beijava fraternalmente a esposa, deitava-se e dormia.

Havia noites em que a Fera dominava seus sonhos, manipulava seus pensamentos. Ele acordava suado, possuído por uma incontida ansiedade. Erguia-se, tomava outro banho, sua esposa tentava acalmá-lo, o acariciava, lembrava-lhe que era somente um pesadelo. Por solidariedade, faziam o sexo contaminado pelo mofo do hábito. Sua inquietude aplacava-se, ele adormecia.

Às sete horas da manhã o despertador tocava, mas ele permanecia preguiçoso na cama. Sua companheira apressava-se para preparar o café. Lentamente, ele realizava seu asseio matinal. Depois, sentava-se à mesa, ligava a televisão para saber das primeiras notícias, trocava umas poucas palavras com a mulher, comia seu pão aquecido, refletia entre os goles do café misturado ao leite e saía para o trabalho.

A parte da manhã era o período em que relaxava, não existia a suspeita da Fera, ele não a sentia nas primeiras horas da sua rotina. O animal não gostava do alvorecer.

Um expediente agitado, era o que ele rogava antes de chegar ao escritório. O corre-corre espantava o chacal, o guardava a uma segura distância. Burocracias, protocolos e a adrenalina de um dia produtivo eram a alvenaria que constituíam a sua fortaleza. 

Seu cotidiano cinza eram movimentos de uma sinfonia monótona e monofônica, mantinha entorpecida a Fera que o rondava. Mas a fome engendra o ataque e o instinto trapaceia a razão.

Naquela noite, ao sair do escritório, seu roteiro narcotizante seria corrompido por um vírus letal a qualquer mecanicismo: o imprevisível. 

Marchava reto em direção ao Metrô, concentrando-se na própria respiração, mas o seu silêncio interior foi rachado por uma voz grave e rouca chamando seu nome. Era um senhor que prestava serviços de contínuo no escritório e que o tratava com paternal simpatia. O idoso o agarrou pelo braço, contou que aniversariava e, com um sorriso suplicante, o convidou para se sentarem juntos por alguns minutos num botequim próximo. Ele tentou recusar, mas o senhor insistiu explicando que morava só e não desejava passar em branco aquela data. Contrariado, porém, tocado pela solidão do velho, aceitou o convite. 

Quando deu por si, brindava constrangido aos 65 anos daquele homem. Cada tulipa que era colocada à mesa fazia escorrer pela garganta o chope gelado que rompia, como foice, a teia secular que abafava a sua fala. De repente, o mundo tomou cor como um ressuscitado, as luzes brilharam quase ofuscantes e ele escutou a própria voz. Todo o seu corpo estalava, como se voltasse de uma letargia involuntária. Riu de si mesmo.

Abraçados, deixaram o bar, ele e o velho. Juntos, entraram num táxi e foram até a Praça Mauá. Conduziu o idoso até um sobrado da Rua do Acre, onde o mesmo morava. Num caminhar tortuoso e incerto, prosseguiu a jornada, até subir os degraus de um inferninho que avistou no trajeto.

Música alta, fumaça de cigarro, mulheres seminuas, cheiro de lascívia. 

Uma ruiva bonita se aproximou com as curvas expostas por um minúsculo biquíni. Ela pergunta seu nome, apoia-se em seu corpo, beija sua boca. Ele sente uma fisgada, foi como se afrouxassem, subitamente, um torniquete. O sangue represado voltou a circular por todas as suas veias esclerosadas pelo tédio. Ele a abraça com ânsia, sente uma sede diferente, uma sede ancestral.

Ela o guia a um pequeno quarto, deixa cair o biquíni, ele a beija afoito, necessita da sua saliva. A sede aumenta, os membros se entrelaçam, a carne se funde. Ela se coloca de quatro, submissa, implora que ele a possua. Ele obedece. Uma brasa, que parecia consumi-lo de dentro para fora, faz com que se sinta febril. Transpirava com todos os poros.

Por um grande espelho, preso ao seu lado, ele vê sua imagem. Seus olhos irradiavam uma vibração oca. Não era ele, era a Fera, ela o havia devorado pelas vísceras e o tomado para si novamente. Dele, só restava uma tênue fagulha de consciência. O Animal nunca o rodeou, esteve sempre dentro da trincheira protetora que ergueu ao seu redor. Não havia mais alma, só havia a sede do orgasmo. Ele era a Fera!

Entra em casa, respira a atmosfera morna do seu apartamento. Explica, mentindo, o atraso e o bafo de álcool à esposa: foi pego de surpresa pelo aniversário do chefe. Afaga a filha, toma um banho morno (como há muito tempo não fazia) e janta assistindo a TV. Recolhe-se ao quarto, beija fraternalmente a companheira, deita-se, lembra da ruiva e dissolve-se no prazer de sentir a gradual falência da mente. Ri de si mesmo. Adormece e não sonha.

A catraca

A CATRACA

Hoje, só sobrevivem do tal lupanar o trauma de ex-virgens acuados e as reminiscências dementes de idosos nostálgicos da distante e desbotada virilidade.

Aconteceu no meio de uma tarde ensolarada. Bateram à minha porta e avisaram que havia chegado a hora. Como se tudo já estivesse combinado, o pai empilhou uns tostões na minha mão, me colocaram num carro e parti para o desconhecido.

Quem visse o meu semblante tenso, poderia supor que me conduziam à força para o DOI-CODI, nunca imaginariam que aquela viagem tinha como destino o crepúsculo da minha insossa inocência pelo alvorecer temperado da luxúria. O trajeto, por caminhos tortuosos, embalou na subida de uma ladeira no Rio Comprido, mergulhou num túnel esquecido e desembocou na enigmática Rua Alice.

Como se não bastasse o pânico do novilho ameaçado pelo abate, incomodava-me a ideia de um randevu localizado numa via batizada com o mesmo nome da minha bisavó. Para um garoto recém-catequizado, a sugestão do pecado ganhava sons incestuosos e desestimulantes. Não demorou para que estacionássemos em frente àquela fastuosa mansão cravada às margens do nobre bairro de Laranjeiras. Que vista! Rodeada pela paz da paisagem bucólica, erguia-se a rosácea e imponente construção, cercada por um muro que lhe dava o aspecto de fortaleza. Se me afirmassem que era um convento, eu acreditaria. No centro da murada, um arco apresentava o portão destrancado, acesso que se abria para os mistérios da carne. Ignorando as minhas pernas trêmulas, a boca seca, a voz afogada, meus companheiros me empurraram para o interior da arena das leoas. Entrei em cena como um personagem inútil, jogado de última hora nas páginas do Decamerão.

Recordo, com certo pudor, que as minhas primeiras manifestações libidinosas ocorreram quando eu assistia ao seriado “Jeannie é um gênio”. A imagem erotizada daquela odalisca loira piscando os olhos me causava a precoce mágica incompreendida e constrangedora da ereção. Talvez, Barbara Eden tenha sido o símbolo sexual de uma geração de ingênuos.

Por dentro, o casarão de Laranjeiras lembrava um cabaré rústico de filmes do velho oeste americano. O piso de madeira, mesas espalhadas por um amplo salão de grandes janelas escancaradas que revelavam a curiosidade de árvores indiscretas. Sentamos e nos serviram uma cerveja. A alguns metros de nós, uma bela balzaquiana, de pele clara e longos cabelos lisos, fumava abstraída do ambiente. Um dos meus camaradas mais desembaraçados a selecionou como protagonista da minha temida estreia. Nunca me esqueci do nome da mulher: Selma.

Ela se aproximou, perguntou o meu nome e me estendeu a mão… num ato de submissão, não resisti. Caminhamos juntos até a beira de uma longa escadaria que levava aos aposentos superiores, Selma me soltou, seguiu por uma brecha lateral e apontou o local por onde eu deveria subir. Estaquei perplexo diante da visão: uma catraca, semelhante às roletas que reinavam nos ônibus antigos.

Com a mente perturbada por aquele momento crucial, ao qual me lançavam sem manual de instruções, me apaguei a imagem da catraca. Fiquei fascinado. Como poderia um puteiro alcançar tal inteligência? Freud sofreria orgasmos antes do sexo ao perceber que a catraca assumia o significado mais perfeito da prostituição. Como são cruéis as traduções exatas do universo. Um sujeito cruzou meus olhos e atravessou insensível os braços abertos da roleta, eles estalaram e imediatamente o contador em sua base fez girar os números que se assemelhavam a uma carreira de dominós caindo uns sobre os outros. Não havia romance, não transpirava amor, apenas a fria e exata sequência matemática. Aquele vislumbre mecânico aquietou meus sentidos e como a Selma me aguardava no topo da escada, entreguei-me ao abraço gélido da catraca. Fui mais um dígito intrépido acrescentado ao milhar. Subimos à alcova…

Um imenso quarto de teto alto, uma velha cama de casal, uma pia com sabão de coco e papel higiênico formavam o kit libertino. Selma perguntou se era a minha primeira vez, não sei se ela compreendeu a resposta, pois eu só conseguia balbuciar. Ela tirou a roupa e imitei a coreografia. Ela se deitou e eu me joguei ao seu lado olhando para o teto, que parecia estar a quilômetros de distância. Ela toca no meu segredo, na profunda intimidade do meu ser. Sinto uma forte descarga elétrica percorrer o corpo, um torpor de todas as sensações. Acabou. Não havia mais nada a fazer, a não ser pagar.

Ao sair, não precisei passar pela catraca. Dígitos descartados não contam. Os amigos perguntavam como tinha sido a experiência, continuei balbuciando. Não perdi a virgindade naquele dia, mas descobri a ejaculação precoce. Estive na Casa Rosa e a catraca não me deixa mentir. Jurei sobre o sêmen que escreveria este capítulo. A catraca é o mundo.

Brisa

BRISA

A Help, saudoso e difamado inferninho, um épico de Copacabana. Cravada na Av. Atlântica, a boate confrontava orgulhosa o oceano, sem esconder a sua vocação libertina. Templo preferido das garotas de programa e dos gringos peregrinando em busca de aventuras sexuais.

Em muitas ocasiões, me serviu como refúgio, abrigando meus solos pelas madrugadas. Por dentro, uma festa psicodélica, guardava as dimensões de um coliseu, com paredes revestidas de lantejoulas azuis e a pista iluminada por estroboscópios refletidos em enormes globos espelhados. Sobreviveu à virada para o século 21 como um cenário imutável dos anos 80. Hoje, demolida, está perto de virar o Museu da Imagem e do Som. Ali jaz a luxúria, fossilizada e morna sob o mausoléu de concreto.

Foi entre amazonas, caçadores e forasteiros que ela despontou da arena erótica e me pediu uma cerveja. Morena e bonita, não neguei a gentileza. Bebemos e conversamos por algum tempo, até que a jovem me disse que não queria trabalhar naquela noite e me convidou para sentar à beira da praia e esperar o Sol nascer. Estranhei o chamado, mas aceitei. Acomodados na areia, me ocorreu que eu não havia perguntado o nome da mulher.

“Brisa” — ela me responde. Imaginando que fosse apelido de guerra, perguntei pelo nome real.

“É Brisa” — confirma mostrando a carteira de identidade com registro na Bahia.

Que força milagrosa carrega a natureza. Cultiva flores em desertos e sopra brisas poéticas na penumbra árida dos porões humanos. Consegue inspirar uma prostituta a abdicar da grana, apenas para assistir os primeiros raios do dia ao lado de um homem qualquer. Então, com um beijo delicado, a alvorada banhou-se no mar.