Lapa, o musical

LAPA, O MUSICAL

Estou amanhecendo de ressaca após uma noite infinita. Às vezes, tudo parece sem sentido. Engoli de um só gole a dose da Salinas, a cachaça desceu rasgando o esôfago. Não bebo sempre, sou esporádico com o álcool, mas quando bebo é uma comemoração pessoal, uma saudação pelo privilégio de ainda poder brindar à vida. O bar tocava What a Life com o som no alto volume, alguns jovens se moviam como pêndulos, outros dançavam sem inibição no meio da calçada da noite fria, as luzes também dançavam.

WHAT A LIFE

“Fuck what they are saying, what a life!
I am so thrilled right now
‘Cause I’m poppin’ (woo) right now
Don’t wanna worry ‘bout a thing (don’t wanna worry)
But it makes me terrified
To be on the other side
How long before I go insane? (Insane)”

No terceiro copo de Salinas, o sentido de tudo se revelava na falta de sentido, no caos. A mente filosofava em parceria com os acordes da embriaguez. Gosto da euforia artificial, da alegria ébria que me invade de repente. Um outro eu que se liberta do meu eu antediluviano bolorento e sóbrio. Escuto uma voz entusiasmada gritando meu nome.

— Dotô. Dotô Dante, o senhor veio — Baiano corre para me dar um abraço quase emocionado.

Sim, eu estava ali para visitá-lo após as tantas vezes que ele me atendeu carinhosamente no pé-sujo da Teófilo Otoni. Pelo WhatsApp, ele me informou que se mudou para outro bar, na Rua da Relação, perto da Lapa, porque este ficava aberto até tarde e poderia fazer mais dinheiro. Baiano me avisa que a próxima dose seria cortesia da casa, fico constrangido, mas aceito para não o decepcionar. Contou-me que ali também aparecem meninas promíscuas, mas que ele ainda estava mapeando o movimento. A verdade é que Baiano se comporta como um cafetão que ajuda clientes como eu, como se estivesse cumprindo uma missão humanitária.

Faz tempo que me transformei em um insone, durmo pouco, durmo somente na alta madrugada e acordo cedo. Virou um ciclo, um presente de grego da idade que avança. Shakespeare escreveu que há homens que ficam velhos antes de se tornarem sábios, sou um deles. Por que eu seria um sábio? A sabedoria é entediante, censura o desejo de viver. Sou um velho com todas as inconsequências da juventude.

Gosto de bares com música e o bar onde o Baiano está agora executa uma trilha sonora de primeira linha. Eu estava gravitando nos meus devaneios quando começou a tocar Disappear, do INXS.

DISAPPEAR

— Caralho. Que foda de música — a palavra obscena saltou espontaneamente dos meus lábios.

Senti uma inexplicável saudade da minha terra natal, o Rio Grande do Sul. Perdi a conta dos anos em que não visito as minhas origens, saudade das boates do interior gaúcho, das mulheres belíssimas que conheci por lá. Efeitos da bebida. A galera no meu entorno dançava frenética com copos na mão. O bar em que o Baiano está faz sucesso, tem uma pegada meio New Wave, meio retrô e é frequentado por jovens de tribos alternativas, mas também por coroas deslocados como eu. Vejo uma mulher animadíssima puxando a namorada e indo cochichar com o cara que mandava o som, o sujeito remexeu num bolo de CDs, num chaveiro de pen drives. Quando finalmente a música veio, o casal de lésbicas saiu pulando com gritos histéricos e correram para grupo que compartilhava o êxtase com elas.

FINALLY

A melodia de Finally tomou o ambiente como se fosse um chamado para a batalha, foi uma comoção geral. Neste momento reparei a imensa frequência da galera LGTB no meu entorno, qualquer bêbado esclerosado teria percebido isso antes de mim. Eu estava sozinho na mesa e fui puxado por um garoto imberbe que sinalizava com as mãos que eu também deveria dançar. Entrei naquela histeria coletiva.

— Foda-se — pensei.

Dancei muito. Quem me visse de longe talvez me confundisse com Priscila, a rainha do deserto. Eu me senti nos idos da Help, em Copacabana. Soltei a franga. Foi bom pra cacete. Que noite! As lésbicas me beijaram, o garoto disse que eu era um coroa enxuto e descarreguei a energia represada com passos de um dançarino com Mal de Parkinson. Que dinheiro compra esses momentos apoteóticos? De repente, Baiano me cutuca esbaforido com um celular na mão.

— Dotô, a mina quer falar com você. É quente, é quente. Fala aí.

Aqui, faço um breve intervalo. Sei que somos céticos quando nos deparamos com casos que ocorrem fora do cativeiro dos bordeis ou do sistema de lanchonete das frees, é compreensível, mas acredite, forista sem fé, a libidinagem e a promiscuidade também transitam pelos bares, pelos restaurantes, pelas ruas, pelas calçadas, pelo asfalto etc. “Isso realmente aconteceu, Dante?” — não é incomum algum amigo me perguntar, eu respondo que ele precisa viver para descobrir. A maioria das histórias que lemos nos fóruns refletem uma fatia mínima e viciada da luxúria carioca, mas ela é maior, mais ampla e foi sempre nessa outra face da Lua que preferi me aventurar.

— Alô, quem fala? — perguntei me esganiçando para superar o barulho ao redor.

— Mari. O Baiano falou que tu quer companhia. Vem pra cá.

— Onde?

— Em frente ao Bar das Quengas, na Ubaldino Amaral. Estou sentada aqui com uma amiga.

— E como você é? — perguntei.

— Vem pra cá que você vai ver. Vem logo.

Desliguei o celular e perguntei ao Baiano se ele poderia descrever a menina, ele me respondeu de forma vaga.

— Vai que é gata, dotô. Vai que é gata.

Paguei a conta, girei minhas botas para o destino e caminhei pela rua da Relação até a Ubaldino Amaral, não muito distante de onde eu estava. Quando alcancei a esquina da Ubaldino com a Men de Sá, em frente ao Bar das Quengas, avistei um boteco chamado “Beco da Noite”. Uma ninfa ruiva de cabelos compridos e pele alvíssima acenou para mim. Meus olhos devem ter brilhado…

Vila Mimosa

VILA MIMOSA

Giro a chave e o motor do Sucatão grita como uma fera que desperta faminta. Nem a chuva nem a noite alta nos intimidam, os pneus ganham o negrume do asfalto, não há destino, só vontade. Insiro um pen drive aleatório no aparelho de som e a música que transborda incendeia o meu entusiasmo.

HOT STUFF

O limpador de para-brisa abria o meu campo de visão, noite cinza cortada pelas luzes pálidas da cidade. Acelerei, deixei o vento acariciar a minha face, permiti que as gotículas que vinham do céu beijassem o meu braço. Sexo, essa fome interminável. Talvez, não seja interminável. Com a idade, arrefece, mas o desejo não morre. Somos vampiros de orgasmos.

Certa vez, vi dois sujeitos pararem um fusca no meio de um temporal de verão, desembarcaram do carro e começaram a dançar ao som de Hot Stuff, na voz de Donna Summer. Foi a imagem mais intensa de manifestação de liberdade que testemunhei. A música ficou na minha cabeça, gravei e fico a espera de um dia de chuva em que eu também tenha coragem de celebrar a minha libertação.

Rumei para um local que, no período de 2010, cheguei a frequentar quase todas as noites. Vivi romances, fiquei conhecido, criei uma página na Internet (Vila Mimosa Vip) e fiz história naquela época. O affair mais febril que vivi sobre aqueles paralelepípedos foi com uma atriz pornô chamada Natasha Lima (vide X-Videos), com direito a jantares, peças teatrais, passeios à beira-mar e trepadas monumentais. Terminou, pois como já preconizava Renato Russo: o pra sempre, sempre acaba.

Estacionei na penumbrosa Rua Ceará e pisei firme com as minhas botas naquele chão que guarda com um silêncio leal e inviolável a história secreta de tantos libertinos. A Vila Mimosa é uma sobra do que foi, vazia, triste, nostálgica dos tempos que não pretendem retornar. É um monumento do passado que insiste em resistir, decadente, abandonado e quase esquecido. Acredite, forista sem fé, eu não esperava encontrar nada que pudesse valer a pena, saí de casa sem pretensões, apenas para respirar e fugir da minha claustrofobia noturna.

Vaguei pelos corredores da Zona, o meretrício cru, lugar onde a mulher é real. Negras, ruivas, loiras, mulatas, morenas… Um desfile de olhares promíscuos, de convites libidinosos. Dizem que quando não se espera nada é que a mágica acontece, uma loiraça com dimensões de potranca emerge de uma casa num minúsculo biquine vermelho contendo a sua imoral nudez provocante. Sim, afeiçoado forista, eu salivei, talvez até um pequeno filete de saliva tenha escorrido pelo canto da minha boca. Percebendo que aquele colosso feminino não ficaria solta por muito tempo, me aproximei.

— Preciso saber seu nome — perguntei.

— Scarlett — ela me responde com um sorriso simpático.

— Como faço pra ficar com você…

— Só me deixar noventa reais de presentinho. Vale?

— Ôoo! Vale até mais.

— Eu aceito mais também — Scarlett ri.

— Você aceita ir para um hotel aqui por perto comigo?

— Por 200 pode ser.

Fiz a entrevista básica para saber sobre o possível desempenho sexual da moça e parti com ela para o Hotel Saionara, na Rua do Matoso, nos arredores da Praça da Bandeira.

Dentro do quarto, Scarlett entra no banho e retorna nua. Quase desfaleço numa crise de apneia. Que corpo absurdo. Rata de academia, treinos diários, a menina é toda definida, coberta por uma leve penugem dourada, cabelos lisos e compridos, boca carnuda, bunda que poderia me servir de jazigo numa morte feliz durante a ejaculação e uma sensualidade natural. Observando-a com mais calma, compreendi o nome escolhido, ela possui traços semelhantes aos da atris Scarlett Johansson.

— Minha filha, você linda assim… o que está fazendo na Zona? — solto aquela pergunta idiota que não pode faltar.

— Ali eu ganho dinheiro — respondeu com firmeza.

Beijos impudicos, roçadas perigosas, boquete profundo e consegui executar um sexo anal por cinquenta contos a mais no cachê. A garota vale, um achado raro na atual VM. Trabalha na casa 21 do corredor em U. Uma hora e uns quebrados depois, devolvo a menina para dentro da Vila e desemboco com o Sucatão no entorno da Quinta da Boa Vista, subo o viaduto que leva ao Maracanã e alcanço a Praça Xavier de Brito. Eu poderia entrar na garagem de casa e encerrar a noite, mas estacionei na margem da praça, inseri o pen drive no som e aumentei o volume.

Embalei os corpos de uns casais fumando erva e de meia dúzia de pinguços. Saltei do carro e puxei um cigarro que fumo em ocasiões bissextas. Sem filhos, sem esposa, não preciso de nada além de um corpo quente que alimente a minha fome de vez em quando. Liberto, livre, libertino. Libertine-se… 

DONNA SUMMER

Gisele

GISELE

“Se sentires as pernas cansadas, abre o peito e inspira fundo.”

—Friedrich nietzsche (1883)

O mar se movia com preguiça quando estacionei o Sucatão às margens da Praia Vermelha. A noite se fazia densa, o silêncio só permitia o sussurrar leve da brisa que soprava de algum ponto obscuro do horizonte. Não pensei que ela pudesse se lembrar de mim, até receber um súbito chamado pelo WhatsApp. Gisele voltou, mas ficará por poucos dias no Rio. Avisou-me que não estava no Centro, mas hospedada na casa de uma amiga na Urca. Marcamos e cheguei antes da hora. Eu transpirava ansiedade. Inseri um disco aleatório no cd-player, apoiei as costas na lataria do carro e um som antigo transbordou alto pelas caixas de som…

Kate Bush

Há momentos que são mágicos, enquanto a balada emoldurava a paisagem exuberante, avistei Gisele vindo em passos suaves pelo lado da Fortaleza de São João, ela me acenou com a leveza da bailarina que é, meus olhos quase marejaram ao confirmarem sua presença divina. Louraça, cabelos soltos se derramando pelos ombros, olhos que cintilavam à distância, pernas longas e torneadas, cintura fina, o rosto delicado de beleza imponente, tudo isso envolvido por um vermelho vestido vaporoso e decotado. Acredite, forista sem fé, o meu primeiro pensamento se materializou em uma frase: “estou sonhando, essa mulher não quer ser minha, não pode ser…”

A escrita é um instrumento que afinamos com exercícios diários, treinando, sentindo o som dos vocábulos, o ritmo, a respiração, a textura de cada sentença, porém, mesmo que eu fosse um virtuose da palavra, não conseguiria descrever Gisele de forma fiel, que retratasse o quanto ela é deslumbrante. Ela pertence ao grupo das jovens mulheres que nos causam apneia, minhas pernas tremeram diante da sua aparição. Fiquei ali, estático, esperando que se aproximasse o suficiente para que eu pudesse agarrá-la como um náufrago tentando não se afogar.

— Dante, como você está elegante. Isso tudo é pra mim? — foi sua primeira frase para este velho libertino.

Sim, afeiçoado leitor, sou um britânico nascido moreno e nos trópicos. Minha resposta foi um abraço e um beijo em sua boca, Gisele retribuiu. Ela me convidou para nos sentarmos um pouco na areia da praia, queria conversar, aceitei. Contou-me sobre as viagens que fez, disse que São Paulo é muito melhor do que o Rio para uma stripper como ela, confidenciou que sentiu saudades de mim (será?) e me lançou um olhar quase em brasas. Começou a alisar minha perna direita e subiu até o meu combalido pênis escondido sob a calça jeans, os sinais da ereção se manifestaram. Novamente, ofereceu-me a sua boca, a língua gulosa quase alcançou a minha traqueia, ela se deitou sem medo de se lambuzar na areia, puxou-me para o seu lado e levou minha mão a um dos seios. Transei na praia uma única vez na minha vida, mas fiquei receoso de continuar com aqueles amassos ousados em uma área militar, como é a Praia Vermelha. Perguntei a Gisele se ela teria tempo para irmos a um motel, ela disse que precisava fazer um show mais tarde no Palácio de Cristal, mas poderia ir se não demorássemos muito. Cavalo dado não se olha os dentes, parti com ela para o Bambina, em Botafogo.

Confesso, afeiçoado forista, dentro do quarto, ela se despiu e fiquei alguns minutos sentado à beira da cama contemplando aquela obra magnífica da genética e da natureza. Gisele é a minha Sharon Stone, uma loira que exala sem pudores o seu instinto selvagem. Ajoelhou-se e abocanhou Pikachu, o breve, em um boquete quase artístico, lambendo a minha glande com calma, explorando com a língua todos os detalhes anatômicos do meu pau, deslizando sua boca até o meu saco, chupando meu saco, subindo para engolir novamente o pênis, alternando o boquete com a punheta. Meu tesão era tanto que fiquei com receio de sofrer um AVC. Não sei qual é a técnica que ela usa, mas rapidamente senti aquela sensação vulcânica da erupção e gozei jatos intermináveis de sêmen na garganta da menina. Ela engoliu, lambeu os lábios e me deu um sorriso devasso que jamais irei sairá da minha memória. Devido a ejaculação precoce, o encontro terminou rápido.

Voltamos ao Sucatão, acelerei e partimos em direção ao Palácio de Cristal. Quando peguei o Aterro do Flamengo, a música de Simple Minds inundou a cabine…

Simple Mind

— Sabe que adoro você, Dante? — Gisele me diz de repente.

Pisei mais fundo no acelerador sem conseguir conter um sorriso de euforia. Outro pensamento intruso se manifestou em uma frase mental silenciosa: “Caralho, essa mulher é minha”.

GISA POLTERGEIST

GISA POLTERGEIST

Aos amigos que me acompanham, na viagem das palavras, pelas minhas andanças boêmias, inicio pedindo desculpas pelo tom gótico deste episódio. Porém, aconteceu! Como libertino e notívago, me imponho à obrigação de relatar.

Costumam me perguntar como um Professor, de formação avançada, pode se sentir bem dirigindo um táxi pelas noites do Rio. Eu poderia responder a questão invertendo os fatores, perguntando como um taxista pode se sentir feliz atuando como professor durante o dia. Mas o que realmente ocorre quando me fazem essa interrogação é que sou remetido ao final da minha adolescência, no início dos anos 80. Lembro-me de estar sozinho, sentado numa das poltronas do Cinema Carioca, na Saenz Peña, assistindo ao filme “Caçadores da Arca Perdida” e desejando que a minha existência se tornasse um grande baú de aventuras que me salvasse do tédio urbano. 

Aos 40 anos, comprando um táxi quase como quem compra um brinquedo, eu me tornaria o meu próprio herói. Visto meu uniforme para a noite, calça e blusa nos invariáveis tons escuros; aciono o motor do Astra amarelo; ligo o rádio; acelero lentamente e mergulho no asfalto. 

Uma idosa acena, eu paro, ela entra no carro e informa que o seu destino seria o Caju. Durante o caminho, a anciã se revela uma déspota rabugenta, só me chama de senhor, me maltrata, reclama o tempo inteiro da minha falta de conhecimento sobre a região portuária, cheguei a pensar que fosse desistir da corrida, cheguei a ter essa esperança, mas ela parecia determinada a me infernizar. Quando, finalmente, alcançamos o paradeiro da velha, ela salta do carro, me olha nos olhos e me manda comprar um Guia Rex. Senti um calor de raiva na face, mas sou um pacifista, fui criado na filosofia do respeito aos mais velhos, me contive e não cometi o ato onírico de respondê-la.

Retornando pelo mesmo caminho por onde cheguei, tal qual Teseu fugindo do labirinto de Minotauro, eu avistei o inusitado… Um grupo de garotas, vestidas em cores vivas, conversavam animadas em frente à entrada do Memorial do Carmo, um dos Cemitérios do Caju. Uma delas se precipitou à beira da calçada quando viu meu táxi se aproximando em velocidade de cruzeiro. Começando a desconfiar do que se travava, fui freando o veículo. Quando parei, a menina já estava debruçada sobre a janela do carona e se apresentando como Gisa.

Um ponto de mariposas em frente ao cemitério! Quando eu poderia imaginar isso se a minha nave não houvesse me levado pelos descaminhos da nossa cidade?

Gisa é uma ruiva muito branquinha, em frente ao cemitério poderia facilmente ser confundida com um Poltergeist, mas é mulher de carne e osso, com um jeito atrevido e um toque sensual. Deve alcançar 1,70m; pernas bem torneadas, expostas por um vestido curto e estampado num azul e verde ofuscante; sua voz tem uma rouquidão sexy; seus cabelos são compridos, pintados num vermelho forte.

Sua primeira frase não negava o ofício.

– Vai namorar a Gisa hoje? – Pergunta.

– Depende! A Gisa é uma namorada carinhosa? – Devolvo.

– Sou a mais carinhosa daqui.

– Gisa, encontrar uma mulher carinhosa dando sopa na porta do Cemitério é quase como esbarrar com Lázaro fazendo um Cooper aqui pelas redondezas. É um evento! Mas quanto preciso dar pelo carinho?

– No motel, X. Só o boquete, Y.

Não sei o porquê, mas sempre considerei a palavra boquete um vocábulo feio, com uma carga de vulgaridade intensa. Ouvir uma mulher falar boquete é algo broxante pra mim, mas sentir uma mulher fazendo um bom boquete é um sonho para qualquer homem… Contradições da nossa alma.

– Aonde poderíamos ir se eu quiser só o boquete? 

– Tem a garagem de uma Marmoraria ali atrás, é perto e ninguém incomoda. – Ela me esclarece.

Optei pelo boquete!…

A tal garagem era um recuado em terra batida, ao lado de um pequeno galpão e logo após o Cemitério do Caju. Um lugar penumbroso que poderia causar temor aos corações mais frágeis. Estaciono o amarelinho e deixo a lanterna do farol acessa para que eu pudesse enxergar alguma coisa.

Gisa é dessas que não perde tempo, afrouxou meu cinto, desfez o nó dos meus botões, puxou minha calça para baixo, deixou cair a cabeça sobre a minha virilha e encaixou seus lábios numa deliciosa sucção labial que envolveu todo o meu membro. A garota é boa no que faz, senti a eletricidade da sua sede me percorrer inteiro. Relaxei. 

Confesso que a chupada era gelada, o que fez o clima fantasmagórico crescer na minha imaginação, mas preferi creditar o toque da língua fria a alguma bala Halls que a menina estivesse trazendo à boca.

Quando olho para o meu lado esquerdo, vejo uma lápide, estava apoiada numa parede, atrás de uma grade e trazia a inscrição miserere mei (tende compaixão de mim) gravada na extremidade superior. Sim, meu amigo, aquilo me causou algum desconforto, mas a força do prazer nos faz suportar a maior parte dos incômodos.

Gisa continuava a me sugar como uma vampira erótica que necessitava despertar meu sêmen. Para todos os lados que eu olhava só conseguia ver cruzes e anjos erguendo-se para o céu. Senti que a minha explosão estava próxima… Gozei!… Foi um orgasmo barroco, cercado de todos os símbolos religiosos que habitam um cemitério tradicional. 

Quando abro os olhos, me recuperando do beijo fálico, consigo ler outra inscrição no alto de um jazigo que praticamente saltava pelo muro do cemitério: Mors ultima ratio (morte, o derradeiro argumento).

Abandonamos a toca sombria, eu com os membros aliviados e a mente extasiada. Recordei-me do trecho de um Poema que li quando ainda era muito jovem: O Noivado do Sepulcro, do poeta português Soares Passos. 

“E ao som dos pios do cantor funéreo,

E à luz da lua de sinistro alvor,

Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério

Foi celebrado, d’infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,

Já desse drama nada havia então,

Mais que uma tumba funeral vazia, Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém, mais tarde, quando foi volvido

Das sepulturas o gelado pó,

Dois esqueletos, um ao outro unido, Foram achados num sepulcro só.”

Muito além da meia-noite, deixei Gisa no mesmo lugar em que a encontrei, em frente à entrada do Memorial do Carmo. Aproveitei para perguntar se merecia o esforço fazer ponto ali, ela me explicou que aquela região é parada de caminhoneiros, por isso, as meninas se concentram nos arredores do cemitério. A elucidação comprovou que para tudo existe uma razão científica.

Acelero o Astra e ainda consigo identificar uma última inscrição que emerge sobre uma imagem, acima do muro do campo-santo: Dormit in Pace (descanse em paz).

Ligo o rádio, o som está alto, ganho a Av. Brasil ao som da batida de um refrão de música estrangeira: Set me free!…


FORRÓS E MEMÓRIA

FORRÓS E MEMÓRIA

— Dante, mas você escreve coisas que não tem nada a ver. Você se expõe — me diz um forista puritano por mensagem privada.

Respondo a você, afeiçoado forista, falar o que se quer é uma das liberdades que a idade traz, desde que eu fale sobre mim, não sobre terceiros. Nesta altura do meu campeonato, o personagem Dante já se confunde com o autor e o autor com o Dante, a fronteira é tênue e não me limito por pudores juvenis. Se até o suposto Jeová disse “eu sou o que sou”, por que eu, supostamente sua imagem e semelhança, não posso dizer o mesmo? Eu sou o que sou e para a opinião alheia aprendi a responder com uma palavra milagrosa: foda-se.

Outra característica da idade e das perdas que vamos sofrendo com os anos é que parece que nos apegamos mais à memória. Ultimamente, venho me recordando de muitas situações, muitos lugares, e principalmente do que vivi na década de 80 e no início da década de 90, o apogeu da minha juventude. Passei muitos anos estudando, estudo até hoje, mas quando jovem a minha fome por livros e pelo estudo tragava os poucos caraminguás que eu levava no bolso. Não à toa, construí uma biblioteca milenar. Como meus pais nunca foram de me bancar, passei a pão e água numa época em que poderia ter sido playboy, mas de todos os reveses podemos tirar pontos positivos. A dureza financeira me fez criativo.

O Rio de Janeiro de hoje não é o Rio de Janeiro de ontem, constatação óbvia. O Rio de Janeiro de hoje é uma merda, há poucas opções de lazer noturno, boates faliram, bares interessantes quase não existem e o Tinder não presta para pegar mulher. O Rio de Janeiro que eu ainda consegui viver oferecia mais diversidade e como peguei o início dos sites de relacionamento, no fim da década de 90, segui por uma trilha em que comi tantas e tantas mulheres civis que perdi a conta.

Como citei acima, como minha conta bancária era magra, eu precisava improvisar. Certa vez, um colega me falou sobre forrós (isso no início dos anos 80) e um dia decidi me arriscar em uma visita. O primeiro forró que entrei ficava no Catete, o nome era Alegria do Catete, localizava-se do lado de um hotel na Rua do Catete. Acredite, forista sem fé, a primeira vez em que entrei nesse forró me senti uma espécie de Brad Pitt. Não precisei azarar nenhuma mulher, eu era azarado por todos os lados. Ali naquele salão, entre triângulos e sanfonas, todos os meus preconceitos sociais desapareceram, comunguei com porteiros, empregadas domésticas, balconistas, auxiliar de serviços gerais. Foi um novo mundo que se descortinou e um universo de vaginas afetuosas se debruçaram sob o meu jovem pênis. Eu não tinha carro e ainda sinto o cansaço de esperar o ônibus da linha 410 passar pela Praia do Flamengo para me levar à bucólica Tijuca.

A primeira vez que comi uma mulher foi na Casa Rosa da Rua Alice, em Laranjeiras, mas a primeira vez que fiz sexo foi com uma empregada doméstica que conheci no forró. Franciele era o nome da menina, dona de um par de seios que até hoje povoam o meu imaginário. Fiz carreira nos forrós do Rio, ao contrário dos nordestinos e nortistas que frequentavam esses locais, eu me vestia igual ao Zé Bonitinho, almofadinha total, assim eu marcava a minha diferença. Da Alegria do Catete, descobri o Forró da Associação (que ficava ao lado do finado Canecão, em Botafogo); depois passei para o Forró da Praia, também em Botafogo, na Rua da Passagem; segui para o Forró do Mourisco, ali ao lado de onde hoje é a churrascaria Fogo de Chão; me apresentaram ao Forró de Copacabana, onde até pouco tempo funcionava a Mariuzinn); em Copacabana, descobri a Help, em uma época que putas ainda davam no 0800. Foram muitas, muitas, muitas mulheres, amigo forista. E posso dizer, sem falsa modéstia, que nunca paguei, pois não tinha grana para isso. Era sexo por amor.

Tudo bem, concordo que envelheci, ganhei uma barriga imoral, mas a verdade é que um neófito comum que começa sua carreira sexual no século 21, no Rio de Janeiro, irá encontrar pouquíssimas opções além dos puteiros (que também se reduziram) e forrós nem existem mais, acho que somente na Baixada. Uma pena.

Quando a década de 90 caminhava para o crepúsculo, conheci os sites de relacionamento: Par Perfeito, Como Vai etc. No início desses sites, as mulheres não exigiam fotos e eu me valia da boa escrita, com mensagens que me faziam um príncipe encantado. Depois, o contato continuava pelo telefone, onde eu simulava voz de locutor da JB FM. Tiro e queda, quando a mulher me encontrava já estava tão na pilha que a porta do motel se abria fácil. Comi muitas mulheres por esses sites de relacionamento. Dinheiro curto, criatividade imensa. Na verdade, a minha decadência como Dom Juan começou justamente quando comecei a ter mais dinheiro. A grana é inimiga da criatividade produtiva.

Infelizmente, fica a conclusão de um velho: tempos que não voltam mais…

FOG EM COPACABANA

FOG EM COPACABANA

Noite de sábado, deviam ser umas onze horas. A noite de sábado é como um templo sagrado para o libertino. E, como não poderia deixar de ser, lá estava eu: sábado à noite, esquina da Siqueira Campos com Praça Serzedelo Correa, saboreando um chopinho e perdido nos mais profundos pensamentos, num bar que tinha o nome de Temperado.

De repente, sou despertado abruptamente pela gargalhada fanhosa do Teixeirinha. Sim, ele mesmo! Meu inseparável escudeiro, porque todo solteirão necessita de um fiel escudeiro que o acompanhe pela night.

– Cara, olha isso! Que maneiro! Nunca vi isso! – Bradava meu amigo Teixeirinha.

Foi quando percebi que estávamos diante de um fenômeno que eu também nunca havia presenciado no Rio. Uma espécie de fog, uma neblina carregada, que havia invadido Copacabana fazendo o ambiente parecer uma Londres tropical. Chovia fino, mas não sei dizer o que pode ter ocasionado aquele nevoeiro noturno. Para completar, ouço um som, uma música maravilhosa que me envolveu. Era a primeira vez que eu escutava Summer Time cantada pela voz da Janis Joplin e foi acontecer ali, num bar da Siqueira Campos e numa noite de fog em Copacabana.

O Teixeirinha foi ao delírio:

– Cara! Que isso! Tô me sentindo em New York!

O interessante é que toda àquela atmosfera cool fazia realmente parecer que estávamos numa outra cidade que não fosse o Rio. Terminamos de beber e decidimos seguir o itinerário que traçado, iríamos ao extinto Forró de Copacabana, que ficava numa galeria perto da esquina da República do Peru, onde atualmente funciona a Mariuzinn.

Começamos a caminhar em direção ao destino. Quando estávamos atravessando a Hilário de Gouvêa surge uma mulata descomunal, armada de um top para lá de decotado e de uma minissaia que deixava à mostra um par de pernas saradas como raramente testemunhei na vida. Quando cruzou conosco, nos fuzilou com um olhar e sorriu. Bastou isso para eu escutar a manifestação quase histérica do meu escudeiro:

– Foi contigo, foi para você! Ela deu mole, porra! Vai deixar passar, vai deixar passar?! – Gritava.

Como eu já estava com a cabeça em maresia depois de brincar de laboratório químico no bar da esquina, ao misturar diversos teores alcoólicos, acabei me deixando contaminar pelo entusiasmo do Teixeirinha e decidimos seguir aquela mulata fantástica para que eu pudesse tentar me aproximar. Foi aí que a nossa aventura começou! A mulata caminhava devagar, causando burburinho no trânsito. Como ela veio do sentido oposto ao nosso, tivemos que inverter nosso trajeto.

– Pra onde ela deve estar indo? Ela tem jeito de cachorra! Será que cobra? – Tagarelava o Teixeirinha ao meu lado.

Ela seguiu a Nossa Senhora de Copa, entrou na Siqueira, contornou a praça e….. Veio a bomba!

Tente se lembrar de uma boate que havia entre a Hilário de Gouvêa e a Siqueira Campos chamada Incontrus (era assim mesmo que se escrevia). Pois é, foi onde ela entrou! Pode duvidar, mas eu não tinha noção do tipo de boate que era a Incontrus. Percebemos um movimento diferente na porta, mas como também havia muitas mulheres, nós não tocamos para o que nos aguardava. Começamos a cogitar que devia ser mais uma boate alternativa, no estilo da Bunker ou da Dr. Smith. Após um momento de indecisão, resolvemos corajosamente desbravar o local atrás daquele monumento que nos havia acenado com a possibilidade de prazer.

O lugar era engraçado e gerou um suspense de mau gosto até chegarmos à boate. Primeiro, você subia uma longa escada que levava até a bilheteria; comprado o ingresso, você agora descia uma outra escadaria em frente e se deparava com duas enormes portas, ao ultrapassá-las, desfez-se o mistério… Queria que alguém tivesse fotografado a minha cara e a do Teixeirinha assim que pisamos dentro na pista. Os antigos navegantes anunciavam terra à vista ao se depararem com um Novo Continente, mas ouvi o berro do Teixeirinha exclamar:

– Cara! Que mar de homens é esse?! Em que furada que a gente entrou?!

Verdadeiramente, estávamos numa furada! Havíamos invadido uma boate gay. Diria mais, estávamos dentro de uma arena gay onde homens se digladiavam, se agarravam, se beijavam e todas as demais performances que eu e o Teixeirinha, anti-heróis do convicto mundo hetero, sequer poderíamos imaginar presenciar. O mal estava feito…

Agora já entramos! Vai atrás da mulata e convida para outro lugar. Se você conseguir sair daqui com ela, me chama. Vou ficar te esperando no balcão do bar – Informou meu heroico amigo.

Parti para resgatar a mulata, o lugar estava lotado e mal se podia andar. Rodei, andei, procurei e nada. Para piorar a situação, eu não conseguia encontrar a beldade. Existia um segundo pavimento. Subi. Nesse ínterim, já haviam se passado uns trinta minutos desde que entramos.

Na parte de cima, a boate era uma espécie de corredor polonês, foi preciso cautela. Finalmente, avistei a almejada potranca. Definitivamente linda! Estava no final do corredor e fui ao seu encontro. Parei. Rondei. Dei um tempo fitando a menina e mantendo uma distância segura, mas ela me viu e novamente abriu um inacreditável sorriso. Acenou. Ela me acenou! Quando ousei me aproximar, percebi que um braço envolvia a sua cintura. Continuei. Estacionei ao seu lado e lancei a intimação.

– Olá! Que bom que me chamou, queria mesmo falar com você.

– Qual seu nome? – Ela me pergunta.

– Dante e o seu?

– Dara. Eu chamei você porque achei que o conhecia, pensei que fosse um amigo antigo meu, mas agora vi que me enganei. Desculpa.

– E será que agora eu não posso lhe conhecer? – Devolvi.

– Olha, vai ficar difícil. Foi só um engano mesmo, meu negócio é mulher. Além disso, estou com a minha namorada aqui.

– Xeque-Mate.

Afeiçoados leitores, confesso que cheguei perto de enfartar, meu sangue subiu. Olhei em volta e quis apenas desaparecer daquele inferninho alternativo. Aí veio o golpe de misericórdia! Quando olho do parapeito, vislumbro o meu amigo Teixeirinha absolutamente trêbado, girando a camisa acima da cabeça, dançando freneticamente entre vários boys e esganiçando a frase:

– O mundo é gaaaay! Reboquei no desespero o Teixeirinha, que hoje alega amnésia alcoólica. Por sorte, afirma năo lembrar (ou não querer lembrar) daquela noite fatídica, embalada pela voz da Janis Joplin e embaçada pelo único fog que assisti em Copacabana

FEITIÇO DO TEMPO 1

FEITIÇO DO TEMPO

Ontem me prometi não sair de casa, resistir à agonia de ficar enclausurado em um sábado à noite. Escolhi filmes, li um livro, comi uma pizza, mas nada disso foi suficiente para aquietar o espírito libertino. Eu precisava de alguma aventura ou, ao menos, da tentativa de me aventurar. Digo a você, afeiçoado forista, estou na fase da terceira idade em que durmo pouquíssimo, sou invadido constantemente por uma inquietude noturna que não me permite ficar aconchegado na atmosfera caseira. Vesti meu velho uniforme libertino (sim, libertinos são como heróis, usam uniformes), geralmente um vestuário em tons escuros, chamei um táxi (estou com a carteira de motorista vencida) e pedi para o piloto tocar para a rua do Senado. Passou-me pela cabeça ir para a Mosaico, na Vila Mimosa, mas fazia tempo que eu não visitava o Feitiço do Tempo. Decidi o meu destino.

Quanto mais o veículo se aproximava do Centro, mas a paisagem ia se tornando árida, deserta, silenciosa. As lâmpadas de vapor de mercúrio refletiam um cortejo de pálidas luzes amareladas, o asfalto nos conduzia pelo velório do vazio. Logo após a Praça da Cruz Vermelha, uma arena rodeada por velhos prédios carcomidos, pedi que o taxista parasse. Preferi ir a pé pelo resto do caminho. Finquei minhas botas na calçada, pisei firme e calmo, com a serenidade dos que conhecem os recantos furtivos e traiçoeiros da madrugada. Coragem não significa violência, mesmo porque violência muitas vezes significa covardia; coragem é sinônimo de ousadia e na maior parte das vezes é o contraponto à violência. Ninguém percorre tranquilo as ruas do Centro, mas a região da Cruz Vermelha é próxima à Lapa, também pontuada por bares e pés-sujos que compõe a fauna do local.

O Feitiço do Tempo é um inferninho que teve sua origem no entorno da Central do Brasil, depois o proprietário se uniu a um outro empreendedor e unificaram a firma nos arredores da rua do Senado. Neste último sábado, quando entrei na boate, tive uma surpresa que me deixou boquiaberto, o bordel está emplacando um perfil original, virando marca. Subi os degraus do antigo sobrado e quando entrei no salão tudo continuava iluminado à luz de velas, mas com velas estilosas. Do corte de luz, brotou a criatividade. A iluminação elétrica se restringia a umas poucas luzes coloridas colocadas em cantos estratégicos da pista. Avistei quatro casais, provavelmente se aquecendo antes de partirem para o Swing do Mistura Certa. De puteiro, o Feitiço do Tempo pescou a ideia de se firmar como boate temática de flash back. Achei genial.

Quando ainda estava buscando uma mesa para armar o meu acampamento, começou a tocar uma música de um passado muito distante (1987), meu melhor passado. Admito, colega forista, quando sou pego de surpresa com esses elementos que nos lançam para trás, fico a beira de me emocionar. Reconheci a música, reconheci a voz, reconheci a época. Patrick Swayze cantando She’s Like the Wind. Acredite, forista sem fé, foi neste ponto uma garota chegou perto de mim e me puxou para dançar. Morena, alta, corpo esguio que denunciava as curvas de uma falsa magra, cabelos longos presos com rabo de cavalo, um olhar intenso e sexy. A última vez que me lembro de ter dançado música lenta com uma puta foi na finada Discoteca Help, que fazia uma sessão romântica às 3h da madruga.

SHE’S LIKE THE WIND

Digo a vocês, foi foda. Que momento. Aquele corpo quente colado no meu, os passos lentos em que nos orbitávamos, as mãos dela acariciando a minha nuca, os acordes que transbordavam pelas caixas de som. O coração do velho precisou ser forte. De repente, do nada, ela me beija na boca. E aqui eu quebrarei toda a elegância do texto para poder descrever o pensamento que quase saltou nu da minha mente. Puta que pariu. Que beijo. Que cena. Nessas ocasiões é que me convenço de que a vida libertina é maravilhosa. Ainda existe magia, estimado forista. Permanecemos na pista quando o DJ emendou com Kate Bush.

KATE BUSH

— Dante, como você consegue lembrar desses detalhes? — Perguntaria o forista incrédulo.

Impossível é esquecer, meu cético camarada. E se algum forista se mostrar insatisfeito com este relato, se considerá-lo repleto de informações inúteis, descartáveis e afirmar que eu não falo do principal, o que poderei responder? Lamento pelo humano estéril que você se tornou, meu caro. O prazer está na percepção do abstrato.

Sentei-me com a mulher que me levou por uma viagem que irei me recordar até o último suspiro. Revelou-me que seu nome é Laura, tomamos umas cervejas, conversamos, namoramos e decidi convidá-la à alcova. Pedi que nos deixassem no quarto por uma hora e meia. O fim desta história resumo com sussurros, gemidos e orgasmos. Fui feliz.

FEITIÇO DO TEMPO 2

FEITIÇO DO TEMPO 2

Creia-me, estimado leitor. Venho saindo com meninas que atendem por conta própria, dando preferência as que possuem local. A minha colheita tem sido de boas experiências, um saldo positivo e surpreendente para quem antes priorizava como preferência às termas. Apesar disso, nunca me sinto totalmente satisfeito, falta sempre algo que a minha natureza sexual exige desde que o sexo deixou de ser um mistério para mim. Sim, na juventude o sexo ainda guarda aquela aura de mistério, um elemento que contribui para a nossa excitação incontrolável, mas é na fase mais madura que precisamos encontrar um afrodisíaco que substitua o mistério que se extinguiu. No meu caso, eu substituí o mistério pela adrenalina, pela aventura, pelas fronteiras desconhecidas.

Se em tempos remotos a grande façanha humana foi cruzar oceanos em busca de novos horizontes, de novos continentes, para o homem moderno a maior proeza é se enveredar por experiências sexuais que nos renovem, que nos façam sentir o pulsar do corpo, do existir. Não nego, afeiçoado leitor, tenho a necessidade de farejar mulheres como tubarões farejam sangue. É a caça que me excita, o desafio.

Estou trocando de carro, mas até que se formalize um desconto a que tenho direito para o meu novo veículo fiquei dependente de táxis, até duas semanas atrás. Um porteiro da minha rua, com necessidade de dinheiro extra, me ofereceu seu automóvel para alugar enquanto espero o desembaraço do meu imbróglio burocrático. Aceitei a proposta e aluguei a viatura do porteiro, um fusca bem cuidado, cor de vinho, com rodas de modelo antigo e rádio com toca-fitas e entrada para CD. Não sou afeito a luxos, prefiro ser prático. A verdade é que um fusca andando pelas ruas chama mais a atenção do que um BMW último modelo. É o que estou reparando nos meus rolés ocasionais.

Sábado à noite, beirando a madrugada. Fiquei na dúvida se seria conveniente sair durante este período de toque de recolher, mas a minha inquietação noturna me lançou às ruas. Para quem possuía um Corolla, entrar num fusca é um experimento quase claustrofóbico. O carro não tem ar-condicionado e o rádio é um provedor de estática. Como não possuo fitas cassetes dignas de utilização, levei uns CDs para não dirigir no silêncio. Encaixo a chave na ignição, piso na embreagem, aciono o acelerador e o fusquinha grita agudo, como se despertasse de um sono secular. Os pneus se movem e ganhamos o negrume do asfalto. A partir de agora, qualquer aventura é possível…

Ligo o rádio e introduzo um CD qualquer. A música invade a cabine, inunda meus ouvidos e faz meu coração acelerar empolgado. A voz de Annie Lennox faz o lobo velho e adormecido que me habita reagir a inércia que tenta domesticá-lo.

Sweet Dreams

O sangue ainda pulsa, eu estava de volta aos sete mares em busca de alimento para a minha alma sem direção. O roteiro noturno de um Rio interditado pelo vírus não nos deixa muitas opções. Peguei a Praça da Bandeira, entrei na Rua Ceará, a minha primeira visita seria ao território onde os homens que mijam em pé: A Vila Mimosa.

Senti dificuldade com a direção do Herbie (o fusca), em determinados momentos parecia que guiava uma carroça puxada por cavalos indomados. Aos poucos, fomos ganhando confiança um no outro, o afeto foi surgindo, até que deslizávamos em harmonia pelos recantos sombrios da cidade. Custei a conseguir estacionar o pequeno fusquinha. Rebelde e de volante pesado, as manobras me custavam um suadouro intenso. Assim que acomodei o carro, pisei com minhas botas gaúchas sobre os paralelepípedos da zona, território sagrado dos libertinos.

Fiquei em dúvida se estava na Mimosa ou no deserto do Saara. Havia tão pouca gente no lugar que era possível dizer que não havia ninguém. O único movimento vinha dos caminhões saindo e entrando do frigorífico. O céu cinza, o ambiente melancólico, tudo fazia com que eu me sentisse personagem de um romance policial, um detetive em busca da loira má. Não demorei muito na Vila, voltei para o fusca e partimos para a Lapa.

No caminho, o CD exala outro som que me empolga. Pitty cantando “Pulsos”. A guitarra faz meu envelhecido coração vibrar junto com os acordes, abro mais as janelas e não me seguro. Cantei.

“Tenta achar que não é assim tão mal, exercita a paciência, guardo os pulsos pro final. Saída de emergência…”

Pulsos

Você está certo, leitor sem fé. O sentimento de existir me invadia, me puxava para fora do corpo, me ressuscitava. Direi algo que poderá parecer um clichê, mas a noite é mágica. Enquanto alguns dormem, outros acordam.

Alcancei a Lapa, me enveredei pela Rua do Rezende na esperança de avistar as mariposas no ponto em frente ao hotel Andorinha. Nada. Estacionei o Herbie, agora com mais facilidade. Deixei o carro e fui caminhar. O boteco da esquina estava com meia porta aberta. O silêncio no entorno encobria a atmosfera com um tom sepulcral. Imaginando que não cruzaria com nenhuma Lei Seca, pedi uma dose da Salinas. Sorvi a cachaça como os Deuses sorvem a ambrosia. Imediatamente, as luzes ficaram mais brilhantes, as vozes mudas se tornaram audíveis. Tomei outro gole e foi quando a vi, a mulher rara de despudorada, flamejante e fugaz: a felicidade.

Das caixas de som do botequim emergiu uma música que eu não escutava há anos: Summertime, com Janis Joplin. Os acordes fizeram a noite ganhar um clima underground naquele pé-sujo com lâmpadas florescentes e homens naufragados.

Summertime

Percebi que não conseguiria nada na Lapa anestesiada por estes tempos hostis. Retornei ao fusca e deslizamos para outros territórios. Pego a rua 20 de Abril e quando me aproximo da rua do Senado vejo balões e a entrada de um sobrado com circulação de vida inteligente. Veio-me a sensação de descobrir um planeta após vagar pela escuridão fria do universo. O Feitiço do Tempo desafiava decretos e imposições, estava aberto.

Alojei Herbie no meio-fio e caminhei em direção àquela colônia mundana. Recebo uma comanda e subo os degraus infinitos. Quando entro no salão, me deparo com um ambiente escuríssimo, as mesas iluminadas por velas, poucos clientes e um número razoável de meninas que eu não conseguia identificar se eram humanas devido ao breu que encobria o lugar. Um cenário de taberna da Idade Média. Sinto dificuldade para enxergar em locais pouco iluminados, fui tateando para encontrar um assento. Esbarro em uma menina que me explica a falta de luz elétrica.

— Bebê, senta ali. A Light cortou a luz, mas o dono já acertou e eles devem religar daqui a pouco.

Sentei-me. Como eu disse, não conseguia enxergar muita coisa, via vultos, alguns arredondados e outros esguios. Uma senhora quase idosa se aproximou, minhas pernas tremeram, perguntou se eu queria beber alguma coisa, pedi uma cerveja. No terceiro latão, uma magrinha jeitosa acomodou-se ao meu lado. Bonita de rosto, mas o corpo de faquir. Naquela altura do campeonato, não importava muito, tudo era divino, tudo era maravilhoso. Sim, leitor sem fé, Belchior transbordava das caixas de som para explicar por que o nome do bordel é Feitiço do Tempo. E ao som de “Apenas um rapaz Latino-Americano“, iniciei o diálogo comercial com a magrinha.

Feita a entrevista básica, decido subir à alcova. Quarto pequeno, estilo cabine, dava para escutar a trilha sonora que vinha da boate. Cauby Peixoto cantava “Bastidores”. A alcova mergulhada nas trevas absolutas. Como conseguiria transar sem enxergar meu combalido pênis e ouvindo Cauby como som ambiente? A magrinha disse que ia pegar suas “coisas” e voltava logo. Fiquei ali, jogado na escuridão, com receio de ser currado. A porta se abriu, só reparei por causa de um fecho de luz de vela que entrou junto com a magrinha. Ela tira a roupa e me espantei um pouco com as costelas salientes da garota, parecia uma daquelas fotos de figuras famintas da Etiópia. Tentei não me concentrar naquilo. A magrinha avançou para o ataque, foi tirando minhas roupas, beijando meu peito, apertando minha bunda, perguntando do que eu gostava com um tom meio satânico. Não nego, amigo leitor, aquilo me assustou.

De repente, a vela apaga, fui lançado novamente à escuridão sem nem sequer saber onde minhas roupas estavam. Senti uma boca no meu pau, quis acreditar que era a magrinha, tentei apalpar a cabeça da menina e encontrei os cabelos. Talvez, haja quem goste, mas a sensação de trepar no breu absoluto não me foi muito agradável para mim. Eu tentava agarrar a magrinha e só abraçava o ar. Foi como sodomizar um fantasma. Comecei a sentir um comichão nas costas, havia alguma coisa no colchão. Formigas? Até hoje não sei. Do nada, senti a magrinha sentar no meu pau, era como se eu estivesse transando com a mulher invisível. Não enxergava nada. Só sensações. A garota se remexia em cima de mim e eu lembrei que poderia usar a lanterna do celular para clarear as trevas, o problema é que não fazia ideia onde teria ido parar as minhas roupas. A magrinha saiu de cima, senti novamente a boca no meu pau. Alguns segundo de boquete e ela me pede.

— Me come de quatro.

Eu ouvia a voz, mas sem saber de onde vinha. Parecia um filme religioso, em que o personagem ouve a voz de Deus, mas não o vê. Tentei achar a menina para comê-la de quatro, palmeei o colchão com receio de ser picado por algum inseto. Depois de uns quarenta segundos, esbarrei em algo que não sabia se era a perna ou o braço da garota, pois ambos tinham a mesma espessura. Fui acompanhando o contorno e finalmente esbarrei com alguma coisa que se assemelhava a uma vagina. Mais quarenta segundos para conseguir colocar a camisinha. Posicionei meu pau, já um pouco exausto da busca, e o introduzi naquela cavidade morna e úmida. Eu poderia estar fodendo com um melão que não saberia. Não havia uma ponta de luz dentro da cabine. Ouvi a menina gemer, imaginei que tinha acertado o alvo. Gozei e é provável que meus espermatozoides ainda estejam perdidos e assustados naquela escuridão.

Fui tateando pela cabine inteira até encontrar a minha calça, tirei o celular do bolso e acendi a lanterna. Foi quase uma reencenação bíblica da Gênese. Faça-se a luz! Eu me vesti e fui me guiando pelas sombras das velas que escorriam nas paredes. Ao pisar no salão, tocava “Como eu quero”, na voz da Paula Toller, algo um pouco mais contemporâneo. As putas, que mostravam saber de cor todas as letras, faziam coro.

“Longe do meu domínio, você vai de mal a pior. Vem que eu te ensino a ser bem melhor…”

Desci as escadas e reencontrei a rua. Respirei profundamente. Alegria de ver as lâmpadas de vapor de mercúrio, pálidas e tristes, se refletindo no Herbie. Acionei o motor, as luzes brilhantes do Relógio da Central serviram de bússola. Insiro um CD e a música transborda. Evanescence com Lithium

Lithium

O sangue pulsava, o coração tocava ao ritmo da bateria e a euforia tomou conta de tudo. Não duvide, a partir de agora qualquer aventura é possível… O libertino vive.

FANTASMAS

FANTASMAS

TREVAS

Chovia fino, o vento gélido cortava os meus ouvidos como fantasmas sussurrando o passado de outras noites chuvosas e frias. Meus passos não estavam certos da direção a seguir, eu caminhava a esmo entre a av. Presidente Vargas e a Marechal Floriano, cruzando com indigentes e outros desorientados. O céu cinza e escuro estava baixo, querendo nos engolir na melancolia atemporal da cidade em decomposição. Não me intimidava, seguia firme, pisando com as minhas botas como um detetive de novela noir. Mergulhado em meditações inúteis, percebi que havia chegado a Rua Leandro Martins, decidi dar uma olhada no Clube 05.

Prestes a escalar o primeiro degrau do sobrado, alguém me pega pelo braço, me surpreendo com o gesto, giro o pescoço e vejo uma negra escultural encaixada em uma justiça roupa de ginástica, dessas muito colantes.

— Vem conhecer a casa em que trabalho — diz a negra bonita.

— Qual casa? — pergunto um pouco confuso.

— É ali mais na frente. Vem…

Eu fui, a menina me puxando pela mão e eu seguindo desconfiado. Ela aponta para um sobrado decrépito, mais para a metade da rua.

— É ali.

Acredite, forista sem fé, a sensação é de que eu estava prestes a entrar no castelo de Drácula e não foi por falta de ver morcegos dando rasantes sobre as poucas árvores que sobrevivem na região. Assim que fui alçar o primeiro degrau, vi uma mancha vermelha imensa na entrada, a garota percebeu o meu foco.

— Isso aí foi uma facada que deram em um cara há duas semanas, mas ele pediu. Vacilão.

Costumo me manter calmo e racional em situações que exalam perigo, procuro não recuar subitamente para não transmitir o medo que possa me tornar vulnerável. Fui subindo com a menina que disse se chamar Adriele. O prédio denunciava o próprio abandono a cada lance da escada, teias de aranha, um odor de mofo, creio que avistei até percevejos se arrastando pelas paredes. Alcanço um salão escuríssimo, um cheiro de erva tão forte que chegou a me tontear, me vi como o capitão Kirk desembarcando em um planeta hostil. A escuridão só me permitia identificar vultos, receei que fosse uma cilada, seres de desenhos arredondados cruzavam o espaço diante de mim.

— Fica à vontade. Se quiser ficar comigo me chama, mas pode ficar à vontade — Adriele tenta me confortar.

Impossível ficar relaxado naquele breu. De repente, sinto uma lata gelada encostando em meu braço.

— Taí a cerveja, patrão. Dez reais. Paga agora — uma voz nas trevas me cobrava pelo que não pedi.

Paguei, bebi e saí de fininho tentando encontrar a saída através do tato. Ficar dentro daquele ambiente quase me exigia um tanque de oxigênio, a atmosfera insalubre que misturava o mofo à maconha se fazia quase irrespirável. Quando ganhei novamente a rua quase gritei de alegria por ter sobrevivido. Retomei a ideia original de ir ao Clube 05.

CLUBE 05

Da porta às margens da calçada, o Clube 05 migrou para o alto de um sobrado, talvez seja tradição da área obrigar o cliente a praticar alpinismo. Subi ao topo do sobrado, alcancei a pista sem fôlego e transpirando 50% da água do meu velho corpo. Há algo interessante que ocorre ao atingirmos idades mais avançadas, a mente não envelhece e o corpo demonstra-se vingativo dessa juventude espiritual que não acompanha a sua decadência.

A geografia interna do 05 mudou, um imenso bar no centro do salão ocupa quase todo o espaço da boate, deixando disponíveis apenas os pequenos vãos do seu entorno. Uma gorda graúda passou a me encarar insistentemente assim que entrei, eu tentava não dar trela, circulei o bar, olhei as mulheres disponíveis, me deparei com um self-service de feijoada no meio do caminho, exposto a cuspes, moscas e outros bichos, sendo devorada vigorosamente por alguns sujeitos. A gorda me seguia com os olhos, sorria quando meu olhar cruzava com o dela, aquilo era mais assustador do que o castelo assombrado do qual eu havia escapado. Ao me ver acuado entre a feijoada e o banheiro, ela se aproxima.
— Dante? Tá lembrado de mim, não?

Busquei me recordar dos pesadelos que tive durante a minha vida de sono, mas nem neles encontrei uma mulher como aquela.

— Sou a Marina, trabalhei no 47 lá da Praça da Bandeira. Lembra?

Marina foi uma mulata descomunal que eu saí por quase um ano inteiro, trabalhava no extinto Clube 47, que ficava na Av. Maracanã. Conhecido pela alcunha de Clube da Rabada, abrigava mulheres que tinham o sexo anal como especialidade, Marina era uma delas. Olhei aquela mulher de grandes proporções e quase não consegui reconhecer as recordações da bela Marina ocultas sob aquele excesso de células adiposas.

— Oi, moça. Quanto tempo. Você está diferente.

— Engordei, né? — responde-me sorrindo.

— … — Preferi o silêncio a confirmar a tragédia.

— E como você tá? — me pergunta.

O papo se estendeu, relembramos os bons tempos, volta e meia ela virava espontaneamente a bunda para que eu avaliasse. Incrível, Marina estava enorme, mas a bunda continuava irretocável, linda, suculenta, coisa de capa de revista.

— E aí? Vamos matar saudade? — ela me provocou e virou a bunda novamente.

Sim, afeiçoado leitor, aquela bunda causou em mim um efeito hipnótico e me convenceu a relevar a carga pesada que a carregava.

— Ainda rola o anal? — perguntei.

— Claro. Para você, sempre rola.

ALCOVA

Não sei o que aconteceu com Marina nesses anos em que nos perdemos de vista, mas quando ela tirou a roupa exibiu uma barriga inchadíssima, algo fora do normal. Mudei o foco para não brochar diante daquela deformidade. Os seios e a bunda da mulher não foram afetados e foi neles que me concentrei. Marina se enroscou em mim com um ardor afobado, num golpe rápido, digno de sumô, me pôs deitado e veio por cima para cavalgar no meu tronco. O peso imenso esmagava a minha virilha. Quando ela arriava o corpo para me beijar, o mundo quase se apagava pela asfixia. Não perdi muito tempo, pois o tempo poderia representar o meu obituário prematuro, pedi que Marina ficasse de quatro, ela atende a minha vontade. A vista dela de quatro se mostrava mais saborosa, o rabo arrebitado, redondinho, ela se enxarca de KY e penetro naquele orifício que abrigou gerações penianas. O altar é o cu, preconizava o Marquês de Sade. Embalo nas estocadas, Marina geme baixinho, gozei com a ansiedade de quem escolhe terminar rápido com a história.

Conversamos mais um pouco, trocamos telefones que jamais serão contatados e nos despedimos. Saio da boate com a av. Marechal Floriano deserta e encoberta por penumbras, minhas botas não me deixam na mão e aceleram a velocidade, entro em um táxi parado num ponto da Uruguaiana. As luzes passam se refletindo no para-brisa como as horas que escorrem em uma ampulheta. O libertino vive.

DONA GIOCONDA

DONA GIOCONDA

– …O Amor é calmaria que sucede a tempestade da Paixão, é o tédio inevitável.

De antemão, perdoo-lhe o ceticismo, mas quem emitiu essa frase tão elaborada foi uma antiga rameira, veterana da Vila Mimosa, nos tempos em que esse meretrício ficava no Estácio, próximo ao que hoje é a estação do metrô.

Dona Gioconda, assim ela ficou conhecida na Vila, uma prostituta que devia navegar pelos sessenta anos e continuava na ativa. Diziam que ela não fazia mais programas, que havia alcançado a fama com o apelido que recebeu dos intelectuais de prostíbulo: o oráculo da zona.

Seu talento como psicanalista de bordel espalhava-se, de boca em boca, entre os neuróticos e amantes desiludidos da Grande Tijuca, encontraram nela uma terapia alternativa para os destemperos da vida. Contava-se que os clientes a procuravam somente para desabafar e ouvir conselhos.

Dona Gioconda ganhou vulto de conselheira sentimental para homens, seu consultório funcionava numa baia dentro da própria Mimosa. Registra a lenda que ela tinha formação superior em psicologia, mas preferiu continuar ali, naquele covil do sexo, o grande celeiro de perturbados, seu manicômio particular.

Eu ainda não poderia imaginar que, ao descer em carreira desgovernada por uma ruela do morro do Tuiuti, estaria iniciando o meu caminho até essa senhora.

O episódio começa num sábado à noite, dia em que eu me esgueirava pelos Forrós do Rio, cumprindo a sina de predador sexual.

Poucos conseguiriam superar o estilo brega que eu, um carioca, criei na minha fase de forrozeiro. Eu vestia meu uniforme de caça: o tom era sempre escuro (preto ou cinza, a camuflagem da noite), camisa social fechada até o último botão da gola, calça de linho, sapatos brilhando na graxa e um blazer para completar o visual. Fico quente só de lembrar. Às vezes, aparecia alguém para me perguntar se eu era pastor.

Os forrós do Rio, no meu tempo, não tinham ar-condicionado e, com essa indumentária, no verão, eu virava uma massa liquida, empapado de suor, circulando pelo salão sob a trilha sonora do triângulo e da sanfona.

Eu estava abraçado com a cerveja e esperando o Teixeirinha, que nunca era certeza de aparecer. No nosso último contato, ele avisou que iria negociar a compra de uma coleção de discos do Cauby Peixoto com um camelô de Copacabana.

O Teixeirinha é um conservador, sua filosofia consiste em crer que só as antiguidades possuem virtudes. Tem repulsa ao moderno, seu carro é um Corcel dourado antiquíssimo e seus discos são os velhos longplays. Trata com aversão os CDs, só ouve vinil ou fita cassete.

Beijava a terceira garrafa de cerva quando percebi uma fêmea quase ao meu lado. Meu fetiche por mulheres altas e esguias ativou todos os alarmes. Uma morena de cabelos cacheados que desabavam pelas costas, calça justíssima delineando suas ondas perfeitas e um sorriso largo à Julia Roberts. Apelei para a falta de criatividade e pratiquei o uso da lábia cretina.

– Oi, eu juro que não é cantada, mas eu tenho certeza de que conheço você, estou aqui tentando lembrar… A gente não se conhece?

– Não sei, quase não venho ao Rio, sou de Cabo Frio.

– Hum… Qual seu nome?      

– Suzana.       

– Toma uma cerveja comigo, Suzana?         

– Pode ser.     

A receptividade foi total. Essa era a vantagem dos forrós, não havia mulher impossível.

O período da conversa durou por umas quatro garrafas de cerveja e alguns segundos do Martini que ela pediu para arrematar. Suzana era boa de copo. Ela me disse que precisava ir embora e perguntei qual seria o seu destino.

– São Cristóvão, na São Luiz Gonzaga, quase chegando em Benfica, Largo do Pedregulho.

– Posso levar você? Não estou de carro, mas vamos de táxi, moro perto.

– Ah! Não é preciso, eu volto com uma amiga, de ônibus.

– Que isso! Vou com você. Está muito tarde e é perigoso andar de ônibus.

– Tudo bem! Vou falar com a minha amiga e já volto.

Regressou sem a amiga, que estava encarrapitada a um cearense e não pretendia deixá-lo. Saímos nós dois.

Chegamos à rua e vejo o meu herói, o Teixeirinha, enlaçado a uma garrafa de batida e recostado no seu Corcel salvador. Era a minha carona! Levamos Suzana até São Cristóvão e conquistei a recompensa de alguns beijos que devoraram parte do meu coração.

Entrei em casa apaixonado, passei toda a semana seguinte pensando em Suzana, tentei encontrá-la no telefone que havia me deixado, era um número para recados, mas ela nunca me retornava. Fiquei obcecado.

Na noite de sexta-feira, insisti com o Teixeirinha para que ele me levasse a São Cristóvão, onde a menina falou que morava. Eu ia tentar a sorte.

Confesso que tive uma impressão sombria do Largo do Pedregulho, a única referência deixada por Suzana para que eu pudesse tentar localizá-la.

Estacionamos em frente a uma barraca de cachorro-quente, constatei que seria quase impossível rever minha musa. Foi quando o milagre aconteceu e o Teixeirinha, numa intervenção divina, interrogou a dona de um carrinho de hot-dog.

– A senhora conhece uma garota chamada Suzana, ela mora por aqui? É alta, magra, cabelos cacheados…

– Suzana? Conheço sim! Ela mora do outro lado, tem que subir aquela entradinha ali.

A entradinha era um acesso ao morro do Tuiuti. É engraçado como nomes inocentes tomam a dimensão de uma placa com o aviso de “afaste-se”. No geral, alguns nomes de morros sempre me pareceram ter um som atemorizante: Borel, Juramento, Chapéu Mangueira, Complexo do Alemão, Urubu, Jacarezinho etc. Quem batizou esses lugares?

Sob os protestos do Teixeirinha, decidi subir. A moça do cachorro-quente indicou que era o primeiro sobrado rosa do caminho, que não tinha perigo. Confiei!

Toquei uma campainha e ouvi uma voz feminina vindo de cima, de um terraço.  

– Quem é?      

– Eu estou procurando a Suzana.

– Quem quer falar com ela?

– Um amigo.

– Mas a Suzana daqui é a mulher do Lobão! É com ela mesmo que deseja falar?

– Huumm, Ahmm, Huumm… Acho que estou no endereço errado. Desculpe! – gelei e fui tomado pela súbita consciência de que estava, literalmente, na toca do lobo.

Em seguida, passa ventando por mim, numa correria ruidosa, uma fila de homens com cara de poucos amigos. Desciam a ladeira numa marcha tribal e assustadora. Não me viram. Decidi segui-los no mesmo ritmo, como se fosse um deles.

Desemboquei no Largo do Pedregulho novamente, suava frio.

– Teixeirinha, liga o caro. Vamos vazar daqui, vamos vazar!

O susto havia me devolvido a razão, não queria mais saber daquela história. Eu havia descoberto que vivia num mundo onde ovelhas se casavam com lobos.

– Cara, sai dessa depressão! – dizia o Teixeirinha tentando me consolar durante o percurso para Tijuca – vou te levar pra falar com uma pessoa que me ajudou na época que briguei com a Carla (namorada do Teixeirinha).

– Pô, amigo! Não quero falar com ninguém sobre isso. Passou! Vamos embora!

Quando vi, estávamos parando o carro perto da Vila Mimosa.

– Teixeirinha, vai pegar mulher aqui?

– Você vai conhecer uma amiga minha.

– Que amiga?! E, por acaso, você tem amiga na Zona?

– Nunca lhe contei, mas tem uma mulher aqui que é um espanto. Dona Gioconda! Conversa com ela, você vai gostar de conhecer.

A casa era logo no início da Vila. O Teixeirinha anunciou no balcão do bar que desejava uma consulta. Dona Gioconda estava ocupada, teríamos que esperar.

Nossa vez! O Teixeirinha me mostrou o caminho. A baia da Dona Gioconda era algo semelhante a uma loja de produtos esotéricos. O cheiro de incenso dominava a atmosfera. Havia uma cama de solteiro repleta de almofadas e com uma poltrona ao lado. Budas, Gnomos, crucifixos, imagens de São Jorge e da Nossa Senhora de Aparecida espalhavam-se por todos os cantos.

Dona Gioconda era uma mulata cinquentona, gordinha, entalada num espartilho preto, os cabelos num corte Chanel e pintados de um loiro platinado que davam um toque futurista a sua imagem.

– É a primeira vez comigo, meu filho?

– É sim.          

– Sabe que aqui a cama é para a conversa, não é, meu filho?         

– Sei, me disseram – o Teixeirinha havia me adiantado o esquema.

– Deita, meu filho – deitei e ela recostou-se ao meu lado, me fazendo cafuné – o que está incomodando o seu coração, menino?

Dona Gioconda tinha uma voz rouca e maternal, fazia você ter vontade de se abrir.

– Está tudo dando errado, Dona Gioconda. Nada dá certo. Não consigo firmar com nenhuma mulher.

Dona Gioconda então se levantou e ligou um toca-fitas, um som de batuque invadiu o ambiente.

– Vou chamar o “Dr. Fróidi” pra conversar com você, moço. Relaxa que vou chamar o Dr. – e o som do batuque que exalava do toca-fitas ficava cada vez mais frenético.

Imaginei que ela fosse chamar outra pessoa para entrar no quarto, mas não era isso.

Dona Gioconda realizava um ritual em que acreditava ser possuída por Freud. Isso mesmo! Ela baixava Sigmund Freud!  Sentava na poltrona ao lado da cama, fechava os olhos, balançava o corpo no ritmo da batucada e ele descia: o “Dr. Fróidi”.

– A Gioconda me disse que seus relacionamentos são sempre fracassados. Por que você acha que isso acontece? – o Dr. havia chegado, a voz de Dona Gioconda era outra, tinha sotaque e tudo.

– Não sei, acho que sou inseguro – respondi com voz trêmula.

– Você não deve declarar guerra aos seus complexos, rapaz! Deve entrar em acordo com eles – eu estava sendo analisado por Freud dentro da Zona. Era o apocalipse!

– Eu só quero encontrar uma mulher que aconteça, Dr.! Uma mulher pra amar, formar família… – Entrei no clima.

– Somos feitos de carne, meu jovem, mas temos que viver como se fôssemos de ferro. Para que amar? Viva suas paixões, elas são a vida. O amor é calmaria que sucede a tempestade da paixão, é o tédio inevitável.

A mulata sacudiu o corpo, soltou um suspiro longo e estava de volta. O “Dr. Fróidi” se foi.

– Falou com o Dr., meu filho? Ele ajudou? 

– Falei! Ajudou! Obrigado!  

– Vá em paz, meu menino.

O velho Shakespeare tem razão: “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.”

Dona Gioconda era dublê de Freud.

Fiquei grato ao Teixeirinha por me proporcionar tal visita. Foi a loucura que me trouxe equilíbrio às ideias.

Segui minhas paixões sem nunca mais esquecer daquela enfática lição: o amor é o tédio inevitável…

DIÁRIO DE BORDO

DANTE E BEATRIZ

Se um drone realizasse uma panorâmica aérea, veríamos um minúsculo ponto se deslocando pelas calçadas semidesertas do Centro da Cidade, habitado somente por almas esquecidas dormitando sob as marquises. O minúsculo ponto é o libertino que caminha indômito, como quem cumpre uma missão, descobrir novos prazeres, encontrar novos bordeis, indo aonde o homem comum jamais esteve. Eis que vemos o libertino acompanhado da sua solidão, da sua essencial solidão, da sua indissociável solidão.

Saí tarde da bucólica Tijuca, a Lua cheia ia alta, imponente no céu, refletindo seu brilho prateado no verde adormecido dos alpes tijucanos. Acelerei o Sucatão e o ronco do motor abriu caminho através da poeira negra do asfalto. Insiro o pen drive no aparelho de som do carro e a música que brota das caixas é a mesma que ouvi dias antes na boate Palácio de Cristal, na Lapa.

I Wanna Go

Abro as janelas e deixo que o vento morno me atravesse, o corpo balança com as batidas do som, a vida passa como num filme frenético se descortinando no para-brisa. Quem pensou que eu desistiria, fracassou. Dante is alive. Estaciono na deserta rua Buenos Aires e finco minhas botas na calçada em direção a 65, na rua do Rosário. Quando fui me aproximando da entrada da Termas, tudo me pareceu tão desolado que desisti, dei meia volta e espichei meus passos até a Uruguaiana.

Subo os degraus do sobrado 210 e encontro a casa com pouquíssimo movimento, com mais carrancas do que mulheres. Uma mulata, que foi colossal no passado, que tanto maltratou meu coração, se aproxima para me cumprimentar, mal a reconheço, gordinha, cabelos desgrenhados, um ar de melancolia… o mundo gira e é redondo. Vejo uma novinha bunduda, bonita de rosto, pergunto se faz programa fora, pois não suporto os quartos da 210. Não faz. Não sobrou nada para ver na 210, ganho novamente as ruas.

Caminho até a rua da Alfândega, o relógio marcava 21h. Vou até o Clube 119, subo os infinitos degraus, quando alcanço o salão, quase as vias de um infarte, não havia ninguém, nenhuma mulher, apenas um sujeito com semblante depressivo bebendo à beira do balcão. Corri dali. Voltei ao Sucatão e à bucólica Tijuca. Entro em uma pizzaria e substituo os prazeres da carne pelo sabor de uma pizza brotinho de muçarela. Segunda-feira, definitivamente, não é dia de puteiro. Uma melodia transpirava como música ambiente: Moby – Extreme Ways.

Extreme Ways

Dante is alive.

DANTE & BEATRIZ

DANTE & BEATRIZ

Sempre fui um animal noturno, desde a adolescência que a noite me intimava por uma atração gravitacional difícil de resistir. Adulto, adquiri uma insônia crônica, uma ansiedade brutal me assola e tenta me empurrar para fora de casa durante as madrugadas. Não sou Sol, sou sombra. Quando me relaciono, é difícil para mim me manter com pessoas que sejam mais diurnas ou que não possam estar comigo em algumas dessas noites de desassossego. Tornei-me notívago ainda muito jovem e talvez somente o cansaço inevitável da velhice possa me curar, mas não deixo de levar em conta que há doenças sem cura.

É provável que eu tenha experimentado a maior parte da minha vida vivida submerso sob o manto da noite. As manhãs e as tardes foram as horas em que inexisti, como um homem comum, espremido em um escritório ou me desviando de outros homens inexistentes que caminham pelas calçadas como se o sentido da vida fosse buscar sentido na mera sobrevivência.

Quando anoitece, tudo é diferente, a atmosfera fica impregnada de feromônio, somos caça e caçadores, o desejo é a força que nos move, há sangue, há substância, euforia, fatalidade. À noite não somos replicantes raciocinando caminhos para o sucesso, somos instinto, somos potência, somos outro.

Além da insônia, também me acompanhou desde a juventude a propensão em gostar de estar sozinho, de sair sozinho, uma certa idolatria gótica pela solidão. Sou lobo sem matilha. Estar sozinho para mim é sinônimo indissociável de liberdade. Depois de tantos anos abraçado ao celibato a liberdade é algo próximo de uma religião na minha escala de valores.

Raramente eu desenvolvo apego romântico por uma mulher. Para piorar nunca dei muita sorte nas escolhas, dizem as más línguas que tenho o dedo podre, mas as mulheres com quem estive, com quem convivi e dividi minhas loucuras foram mulheres que amei sem amarras. Todas passaram, não ficou nem vestígio de amizade. Não as condeno, talvez nossos corações sejam irmãos desvalidos.

O estranho é que quanto mais eu envelheço, mais me remeto ao romantismo juvenil do passado, menos vontade tenho de me mover sozinho, mais eu anseio por uma alma gêmea que me acompanhe. Mas que mulher é essa que me completaria na libertinagem bárbara em que vivo? Fragilidades que surgem com a decomposição espiritual que o tempo nos impõe.

O dia é a hora dos condenados, a noite é a ilha dos libertinos, dos náufragos, daqueles que sabem que há salvação nas sombras. Vivo assim, inexistindo sob a luz e me libertando quando escurece. Tal como Dante Alighieri, percorro o Inferno e as trevas buscando a minha Beatriz. Dentro da escuridão dos seres perdidos, não nos reconheceremos pelos rostos, mas pelo toque, pelo fragor das almas que colidem. Nosso encontro será a nossa salvação, será a quebra do infortúnio que me fez mais lobo do que homem.

DESCONEXO

DESCONEXO

1

Quando o Sol se libertou da breve nuvem desgarrada que interrompeu o seu monólogo, raios intempestivos e furiosos atravessaram a atmosfera para fustigar os olhos de Tobias, que naquele momento despertou de si mesmo, numa sensação de quem caiu da nuvem que se desfez. De súbito, foi lançado sobre a partitura labiríntica da vida. Os automóveis roncando, sons de buzinas nervosas, a poeira que subia do asfalto, as faces estranhas e indiferentes, tudo parecia um açoite a atacá-lo com sanha implacável. Ele se acomodou no banco da praça, coração acelerado. Tentou buscar o sossego da mente controlando a respiração e seguindo conselhos do médico.  

Tobias tinha aquela praça bucólica e ruidosa, à margem de uma pista movimentada, como um santuário. Ali, tudo lembrava a infância distante, foi em um daqueles bancos que experimentou o seu último amor romântico. Jamais esqueceu Lúcia, não se negava a admitir que regressava sempre à praça para esperá-la no cenário do derradeiro encontro. Mais de trinta anos se passaram, ele não desistiu. Foi na praça a última vez que a viu, o adeus. O que especialistas chamavam de obsessão, Tobias entendia como paixão. Sentava-se como se guardasse a crença não confessada de que o tempo poderia retroagir, mas o tempo só seguia o curso inabalável do desprezo pelos homens. Tobias ficara acorrentado ao passado sem conseguir conter o avanço do calendário. Na sua percepção não existia o presente, somente o amanhã que rejeitava e o outrora que idealizava. Pairava num limbo pessoal.

Esforçava-se para visitar diariamente a praça, não perdia a esperança de reencontrar Lúcia sentada no banco que fez o palco do romance que viveram. Lúcia o menosprezou, soprava a voz que ele renegava. Se não amou, esteve perto de amá-lo – era o que Tobias respondia à voz que cochichava dentro dele. Geralmente, chegava à praça no meio da tarde e mirava o banco vazio. O banco refletia um vácuo na paisagem frequentada por casais juvenis e crianças agitadas. Se algum curioso percebesse a presença quase diária de Tobias, veria um senhor grisalho remexendo no celular e mirando ocasionalmente para a mesma direção, um par de olhos perdidos num universo desconexo e destituído de gravidade.

Seus poucos conhecidos agora se resumiam a contatos virtuais pelo WhatsApp e Facebook, não possuía emprego, morava com a irmã viúva e nela se apoiava para sobreviver. Existia numa rotina claustrofóbica. Tomava remédios contra a sua tendência depressiva, mas nunca sentiu efeito algum que indicasse a melhora da condição. Gostava de se vestir com roupas escuras, o que denunciava o seu comportamento fechado e formal com todos que se aproximavam. Falava pouco. Um solitário engolido pela nostalgia crônica dos seus melhores dias.

Não havia mais referenciais em sua vida, ele cultivava com fervor aquela lembrança órfã, agarrava-se à memória de Lúcia. Perdeu a conta de quantas vezes assistiu ao filme “Em algum lugar do passado”. Deitava-se na cama e tentava viajar no tempo usando o mesmo método do personagem do Christopher Reeve. Tobias havia submergido num mundo imaginário, onde a lembrança de Lúcia era uma fotografia velha e desbotada que se fixava como única representação tolerável do cotidiano.

Ele levava no bolso um pequeno recipiente de vidro com um líquido que inalava como se consumisse uma droga. Mistura de almíscar com odor de rosas, o perfume usado por Lúcia quando conviveram. Aquele aroma o transportava, sua máquina do tempo, sua ponte para a irrealidade. O universo inteiro que almejava cabia num frasco de perfume, onde suas melhores recordações estavam dissolvidas.

A irmã nunca conheceu Lúcia, ouviu algumas vezes Tobias conversando ao celular com alguém que afirmava ser a sua namorada. Nunca conseguiu escutar a voz dela. Certo dia, tentou procurar o perfil da mulher nas Redes Sociais utilizando o nome e o sobrenome que leu furtivamente na agenda do irmão. Mostrou a ele a foto de uma senhora que tinha com ela amigos em comum no Facebook e perguntou se aquela seria Lúcia. Tobias fitou a imagem do rosto gasto, emoldurado por fios brancos de cabelos mal arrumados e sustentados por um corpo esférico. Uma náusea vertiginosa subiu-lhe do estômago. Em seguida, sem dizer qualquer palavra, levantou-se e se trancou no quarto. Não suportava a erosão da face, das curvas.

Planejava retornar ao Mosteiro de São Bento, uma construção do século 17 que marcou o primeiro passeio com Lúcia. Ficaram frente a frente no pátio da igreja. Por entre as árvores frondosas, os raios de sol reluziam sobre a pele alva da amada. Inesquecível. Os lábios rubros de Lúcia, o sorriso insinuado. Tobias guardava aquela visão como o quadro mais valioso da sua galeria de reminiscências pessoais. Agora, por alguma razão que ele desconhecia, tudo parecia um devaneio.

Houve a ocasião em que ela o chamou de louco. Louco?! Louco por que não aceitava o adeus? Louco por fingir não a flagrar beijando outro homem num lugar público, numa hedionda traição ao seu amor silencioso? Quando falamos em loucos imaginamos sujeitos agressivos, perigosos, descontrolados. Tobias é educado, passivo, frágil e ingênuo, mas se considera determinado. Insistiu em Lúcia até que ela desaparecesse.

Além de Lúcia, quantas pessoas o chamaram de louco? Telefonavam à sua irmã para dizer que ele tinha problemas. Só podia concluir que amar demais é loucura, que insistir no amor é desvario. Tobias se alimentava das paixões febris, Lúcia foi a maior delas. Intempéries que o estagnavam. Quando a febre emocional cessava, ele se via como um homem acordando num futuro desconhecido, um neandertal entre computadores e luzes ofuscantes. O tempo tinha passado, ele não. Uma existência sem enredo.

Depois que se afastaram, percorreu por sucessivos dias a rua em que ela morava. A fantasia de estar perto, de esbarrar com Lúcia na esquina. Decidiu escrever uma carta, marcar um encontro, informou data e hora à revelia do destinatário. Estava lá, pontualmente, no dia marcado. Nada. Ninguém. Passou horas esperando a sua quimera num ato triste de masoquismo. Costumava brincar consigo mesmo dizendo que seu corpo era composto por 70% de mágoas, não de água. Evitava a autopiedade, engolia o choro, mas não considerava justo o destino que lhe coube. Acreditava no destino como força, não como vontade. Um barco à deriva, à deriva. Se a leitura está desagradável, você constata o óbvio, perseverante leitor. A loucura causa desconforto e é capaz de nos constranger quando identificamos nela pequenas semelhanças do que somos.

A idade o tornou mais sereno. Começou a apreciar a paz do espírito. Ultrapassava os sessenta anos sem reconhecer a decadência física. O velho no espelho não era ele. Negava os decretos da natureza. Em vão. Lia, lia muito, lia compulsivamente. A leitura o consolava. Queria aprender a pintar. Não aprendeu. Procrastinava. A contemplação o jogava numa melancolia viciosa, inescapável.

– Pode falar sobre você? – Pediram a ele em uma entrevista para emprego.

Tobias travou. Mudo. Não sabia quem era. Um estranho. Aquela pergunta o fez cadáver. Ele existia sem existir. Um morto indigente boiando na multidão. À deriva, à deriva. Nunca mais conseguiu ser aprovado em entrevistas para empregos. Aquilo feria sua autoestima, até que não se importou mais, não procurou mais. Não o compreendiam. A diferença não é aceita, ele supôs. Numa das últimas oportunidades em que se candidatou a um trabalho, entregaram-lhe um formulário e num dos campos pediam que identificasse sua cor. Olhou a própria pele, não sabia definir. Branco, negro, pardo? Nada se mostrava nítido ou ele não queria que parecesse nítido. Pegou a caneta e preencheu o campo da pergunta: embaçado.

2

Era atormentado por sonhos que só se consumavam em pesadelos quando ele despertava. Sonhos em que estava novamente com os colegas, num escritório longínquo em que trabalhou. Brindava, ria. Quando abria os olhos, se angustiava, trêmulo. Um receio constante de ter cometido algum crime que esqueceu. Apreensão. Encolhia-se presumindo que a qualquer momento os homens de branco pudessem encarcerá-lo numa cela inóspita e fria.

– O que eu fiz? – Perguntava-se.

Em dias assim ele se esgueirava pelos cantos das sarjetas. Repulsa de gente. O médico o diagnosticou como sociofóbico. As caixas de remédio sobre a sua mesa de cabeceira emanavam um colorido decorativo, Tobias gostava de arrumá-las simetricamente.

Alguém o seguia. Para ele, invariavelmente, alguém o seguia. Olhava para trás. A cabeça zunia. As dores de cabeça constantes. Um zumbido no ouvido que o assustava quando evoluía num coro de vozes queixosas. Sua cabeça vivia cheia de fantasmas – ele revelava à irmã indulgente. Sua existência rodeada de sombras. Cada passo que dava movia o silêncio das assombrações. Refugiava-se como podia em distrações fugazes, mas os fantasmas o perseguiam. Bebia, contrariando as recomendações do seu psiquiatra. Não bebia muito, tinha o fígado fraco para o álcool. Quando leu as cartas de Van Gogh, comoveu-se demais. Van Gogh o compreenderia. Seriam amigos, grandes amigos. O pensamento de Tobias jorrava como torrente caudalosa, rompia todas as represas que ele tentava impor. Queria parar de pensar. Parar de pensar. Aos poucos, cansava-se. Exaustão. Sentia sono de repente, muito sono. Redemoinho. Adormecia afogado em sua correnteza.

3

Naquela manhã de março, ele acordou com um instinto de urgência, passou o dia inquieto, com uma ansiedade que pressionava o coração num pressentimento intraduzível. Sem fome, não almoçou. Assistiu aos jornais da TV, tentou ler um livro. Desconcentrava-se, embora os seus sentidos estivessem com a sensibilidade à flor da pele. Sufocado, deixou o apartamento e rumou para a pracinha que o acalmava. O céu negro, dominado por nuvens ameaçadoras, não o intimidou. Unidas e resolutas, as nuvens dominaram o Sol e a luz. Tobias rompeu a calçada numa cena tingida de cinza. Chegou à praça sob o som de trovões e faíscas de relâmpagos. Nada deteve a sua marcha até alcançar o seu banco cativo. Num bar próximo, do outro lado da pista, com o som do rádio de um carro ligado em alto volume, um grupo de jovens bebia alheio ao prenúncio da tempestade.

Assim que se sentou, Tobias ressentiu-se dos primeiros pingos que lhe bateram na testa, gotas volumosas que despencaram forte em cima dele, como se quisessem acordá-lo daquele torpor antigo. Da terra molhada subiu um aroma de alívio que invadiu o seu olfato, remetia ao cheiro de rosas, de almíscar, ao perfume de Lúcia. Sem mais cerimônias, o temporal desabou como o teto de uma casa em ruínas. Com a vista turva pela chuva, Tobias distinguiu uma mulher surgindo da mesma direção que Lúcia costumava vir. Cabelos compridos e negros, a tez pálida, os olhos de um castanho vívido e delicado, o sorriso de dentes com uma suave desarmonia que arrematava a imperfeição da legítima beleza. Tobias se ergueu incrédulo. Era Lúcia. Correu ofegante ao seu encontro. Ao longe, emergindo de onde estavam o grupo de jovens, um som ganhou potência. A voz de Renato Russo cantando “Tempo Perdido” embalou o abraço apoteótico que reuniu, após trinta anos, Lúcia e Tobias. Cantaram e dançaram juntos a música que celebravam na década de 80.

A curiosidade dos jovens abrigados no bar do outro lado da praça testemunhava inerte aquele homem envelhecido dançando sozinho sobre a grama. Com olhar eufórico e alienado, ele abraçava a si mesmo, num ritual intenso de alegria intangível. Naquele picadeiro deserto, regido pelo ruído do dilúvio, gritava com todos os pulmões a letra de “Tempo Perdido”. A água escorria pelo seu rosto, inundava suas roupas, diluía-se em seus sapatos. Lúcia e Tobias tornaram-se presença uníssona, a convergência uniforme de uma única consciência tortuosa. Cantando e rodopiando, num êxtase de si mesmo, lançava os braços no ar como se estivesse envolvendo uma entidade etérea e desejada.

“Veja o sol dessa manhã tão cinza, A tempestade que chega é da cor dos teus olhos
castanhos…”

O pragmatismo dos jovens não compreendia o que só se faz visível aos delírios e às ilusões que materializam a felicidade das almas irremediavelmente naufragadas. A loucura é um Robson Crusoé que encontra a sua ilha. Em meio à tormenta, Tobias finalmente desembarcava na plenitude refratária do ilhéu remoto que a maioria dos homens teme aportar. Solidão ecoando solidão.

CEMITÉRIO DO CAJU

CEMITÉRIO DO CAJU

O número dos que nos invejam confirma as nossas capacidades.

—Oscar Wilde

O silêncio se erguia tão absoluto que poderia ser comparado ao eco de um abismo insondável. Fazia frio, eu vestia um antigo sobretudo que me cobria quase até os joelhos, as botas reverberavam meus passos sobre a calçada e a noite cinza insinuava rejeitar o brilho das lâmpadas sobre o asfalto. Sozinho, sem saber o que procurar, eu fugia da maldição da insônia. Talvez, não procurasse uma mulher, mas um espelho que me obrigasse à redescoberta de mim mesmo, que me resgatasse daquela deriva urbana. O libertino não é alguém que atravessa a noite, ele é a noite, a sombra, a calmaria que camufla o caos, é alma derivante que busca, mas jamais encontra um porto. O libertino é um corsário do sexo.

Há anos não me arriscava por aquele perímetro do cemitério onde conheci Gisa, uma ruiva quase albina que marcou minha memória e o meu combalido pênis com o seu boquete sobrenatural. Acredite, forista sem fé, não se esquece uma mulher como Gisa, você pode tentar evita-la, mas um dia retorna ao local do crime. Se eu não tenho medo de andar por lugares como o Caju? É claro que tenho receio, mas como revelei por diversas vezes, atualmente o meu prazer está mais na adrenalina do que no gozo. A mesmice serve bem aos que não chegaram aonde cheguei, eu tento restaurar o mistério e o pulso acelerado que habitaram a juventude da luxúria.

— Que isso, Dante? Existe ponto de putas perto do cemitério? — pergunta-me o forista cético.

Afirmo que sim, existe há muitos anos. Os poucos que se aventuraram me escreveram surpresos por terem realmente encontrado mariposas rondando no território da última página de todos os homens, mulheres que se movem em revoada pelo entorno do campo santo. O cético enxerga o céu, mas duvida das nuvens. Vá e veja. É um ponto destinado aos caminhoneiros e taxistas que transitam por ali. Os uivos não brotam das assombrações, emergem da garganta de alguma criatura destemida que atingiu a ejaculação pelos lábios de uma puta carpideira.

Estacionei o Sucatão próximo a uma floricultura em que estavam descarregando coroas de flores. Nas ocasiões anteriores, sondei o local de dentro do carro, não desembarquei, mas desta vez preferi ir a pé e ver por outro ângulo as moças que trabalham nos arredores do Caju. Não pense que eu seja um valente, afeiçoado forista, sinto medo, mas é o medo que bombeia o sangue, dilata as pupilas, é ele que me excita. Avistei uma pequena colônia de putas quase em frente à entrada do Cemitério de São Francisco Xavier, percebi olhares que estranharam um homem bem-vestido vagando na área, meu faro me empurrou em direção a uma menina de corpo curvilíneo e seios à mostra. Apressei-me para abordá-la.

— Como eu faço para sair com você?

— Anjo, é setenta o boquete e cem o programa.

— Pode ser no carro? Estou estacionado na floricultura.

— Pode, mas melhor parar em frente a marmoraria.

Reparei que o estacionamento da marmoraria onde fiquei com a Gisa pela primeira vez ainda funcionava.

— Qual seu nome? — perguntei.

— Kelly e o seu?

— Dante, me chamo Dante. Vamos? Aceito o boquete.

De topless, Kelly caminhou comigo até o Sucatão; ao nosso lado, as grades vazadas do cemitério revelavam covas, jazigos e anjos heroicos. Não identificava imagens do demônio, ele estava ao meu lado. Entramos no carro, Kelly me ofereceu os seios irretocáveis e mamei como um moribundo imaginando beber a ambrosia dos Deuses, a menina fechou os olhos, gemeu, girou as mãos sobre a minha calça, afrouxou o cinto, abriu o zíper, pegou meu combalido pênis e o engoliu com ânsia. Um boquete inenarrável, sem preguiça, que dissimulava tesão legítimo. Escalava a minha glande com a língua e despencava como uma praticante de rapel até a raiz do meu pau. Eu estava em delírio, vendo crucifixos imensos e torres góticas despontarem diante do para-brisa. Gozei num último suspiro, meus espermatozoides flutuaram como fantasmas, lambuzaram os lábios de Kelly, o painel do carro e o meu abdômen. Paguei a garota, ela saiu e eu tentei controlar a respiração para recuperar o fôlego.

Refeito, girei a chave do automóvel, pisei na embreagem, acelerei e ganhei a Avenida Brasil. Inseri um disco aleatório no cd-player, um som nada celestial inundou a cabine e minha cabeça dançou desafiando a finitude. A vida não tem reprise.

Culture Beat – Mr. Vain

O Sucatão zunia contra o vento frio que vinha de todos os lados. Se existe vida após a morte, ela faz ponto em frente ao cemitério. Creia, a partir de agora qualquer aventura é possível.

#Libertine-se

CAVERNA DO DRAGÃO

CAVERNA DO DRAGÃO

Fui um andarilho noturno e no verão de uma década distante, quando a Lapa respirava entre as sombras de travestis e rufiões decadentes, longe da festa das luzes de neon que imperam atualmente, eu caminhava pelos burburinhos clandestinos da rua do Riachuelo. Não tinha um rumo, mas buscava um objetivo, parei em um boteco numa esquina arborizada da av. Nossa Senhora de Fátima e pedi uma Salinas.

Um boêmio fala, mas prefere ouvir. Escutar os papos sorrateiros ou gritantes de um botequim é colher histórias ou perceber convites para aventuras. Dois homens que aparentavam estar na faixa dos quarenta anos de idade comentavam sobre um amigo desgarrado.

— Cadê o Rufino, cara? O bicho sumiu, estava comigo agorinha mesmo.

— O Ladeira passou aqui e disse que ele foi para os lados da Caverna do Dragão.

— É ali no início da André Cavalcanti.

— É puteiro?

— Inferninho.

Atento ao diálogo entre os dois personagens notívagos, gravei as coordenadas e me decidi a explorar a tal Caverna do Dragão. Tomei três doses da minha cachaça favorita e parti deslizando com as minhas botas em direção ao lugar. Meu estado etílico dava aos meus passos um ritmo de levitação, as pupilas dilatadas pelo álcool me faziam ver estrelas cadentes no asfalto. A felicidade é um copo de caninha.

Comprei um maço desses cigarros de menta, na época eu gostava de ter algo entre os dedos exalando fumaça como um defumador. Alcancei a rua André Cavalcanti e avistei um toldo roxo piscando com luzes que me lembravam decoração de Natal. A placa na entrada mostrava-me que acertei o caminho. O nome Caverna do Dragão piscava em vermelho, ao lado das letras o dragão estilizado simulava soltar chamas pela boca. Entrei…

Sempre gostei de sair sozinho à noite, isso me dava liberdade, me permitia a mobilidade que eu quisesse exercer, não me fazia depender das preferências de uma companhia para entrar onde eu quisesse. A Caverna do Dragão não cobrava ingresso, pagava-se pelo consumo. A entrada desaguava em uma rampa que se aprofundava pelo subsolo de um prédio que aparentava ser residencial, segui por uma angustiante descida em caracol que não prometia fim, caí em uma sequência de corredores iluminados por pequenas luzes vermelhas e finalmente desemboquei em um salão amplo, decorado com candelabros e lustres antigos, como se fosse a sala de uma casa da nobreza imperial. O som altíssimo me anunciava uma região exótica, penetrei na pista ao som de A-Há com Take On Me…

A-HA

Debaixo de um dos lustres exuberantes, uma mesa de sinuca e no entorno algumas mesas pequenas rodeadas por duas cadeiras. Pelos cantos, vi pinballs e máquinas de fliperama; no centro de tudo uma pista de dança cercada por cordas, como se fosse um ringue para luta de boxe. A-Ha deve ter sido a introdução, pois logo o DJ emendou com Dreams…

DREAMS

De cara cheia, arrisquei minha veia dançante e soltei a franga enquanto observava o entorno. A boate era habitada por uma galera moderninha para aqueles anos remotos, meninas com maquiagem pesada, homens com cabelos estranhos, um clima gótico. Eu atraía a atenção por ser um elemento destoante naquele aquário de peixes ornamentais, estava vestido com um blazer, blusa social e as botas gaúchas inseparáveis nas minhas incursões pela noite. Uma loira com roupa semelhante a de uma colegial perdida no bordel me acompanhava de rabo de olho e um sorriso que poderia ser deboche ou curiosidade, eu queria abordá-la, mas precisava me fortalecer com mais uma dose e fui buscar o bar atrás de um uísque.

Assim que desci do ringue, a melodia de Simple Minds ecoou nos meus ouvidos que ainda ouviam, nesse momento fui possuído, esqueci o uísque, retornei ao ringue musical e encarnei um Baryshnikov insano.

SIMPLE MINDS

Não me lembro de ter dançado tanto na vida, talvez por isso me recorde das músicas, das sensações, do gosto de tudo, do sabor do batom da loira que consegui beijar quase no alvorecer da madrugada. Acendi um cigarro, lancei as mãos para o alto, rebolei como um hetero liberado de todos os preconceitos plantados na alma e conheci o Nirvana.

CARTA DE UMA PROSTITUTA SUICIDA

CARTA DE UMA PROSTITUTA SUICIDA

1

Há pouco, caminhei pela areia até a beirada da praia, sempre gostei de sentir as lambidas das marolas cansadas molhando meus pés, a água está morna e convidativa.

Nunca apreciei escrever, mas decidi improvisar estas palavras, rascunhar meus últimos pensamentos num guardanapo. Toda vida é um rascunho.

Nasci aos 27 anos, quando cheguei de Juiz de Fora para morar em Copacabana. Quem me pariu foi a maresia da praia do Leme. O mar me deu consciência do mundo, plantou em mim o infinito, a minha alma.

Havia economizado algum dinheiro, era pouco. Consegui me instalar no quarto de um apartamento na Barata Ribeiro, a dona era uma loira com olhos de ganância, se chamava Vera. Pelas mãos dela, fui levada às boates e às luzes da noite. Rápido, me acostumei ao toque lascivo dos homens, aprendi a cobrar pelo prazer que eu podia lhes proporcionar. Um dia me chamaram de prostituta e descobri o que eu era.

Falavam da minha beleza, elogiavam meus olhos, meu corpo, meus cabelos…  Deram-me um nome e esqueci meu próprio nome. Virei outra.

Conheci os vícios, aqueles que nos fazem conseguir ser o que não somos.

Um dejà-vu me atormenta, tudo me parece irreal. É a solidão. A solidão é o prefácio do existir. Só me estranho quando estou sozinha.

Daqui da areia vejo os prédios que margeiam a orla, pontos de luz que fogem pelas janelas, denunciando vidas que não são a minha, constelações artificiais sobre o asfalto. Eu fracassei. Queria alguém agora que me chamasse de prostituta, eu precisava lembrar-me do que eu era.

Aos 35 anos, conheci Omar, foi Vera quem nos apresentou. Ele quis reescrever meu rascunho. Levou-me para uma quitinete, me deu uma aliança e disse que cuidaria de mim. Chamava-me de filha. Era velho, nunca recebeu uma visita. Zelei por ele durante dois anos e o encontrei morto numa tarde de sábado. Ele me deixou seus bens: sua quitinete, uma mísera pensão e uma poupança modesta.

Certo dia, reencontrei Vera no calçadão, fazia uma década que não nos víamos. Ela se emocionou, me abraçou forte e tocou meus lábios num beijo roubado. Estremeci como se um projétil houvesse me atingido. Nunca nenhum toque me abalara tanto. Marcamos de nos ver no dia seguinte, mas ela não apareceu, jamais descobri seu paradeiro. Normal para quem é da vida. Prostitutas evaporam como a água que entra em ebulição.

O espelho revelou meus olhos confusos, perdidos entre sulcos e rugas de um rosto precocemente arado pelos anos. O tempo me fez outra novamente. Necessitava de alguém que me reconhecesse como prostituta. Nunca compreendi o fim da minha beleza.

Sou um calendário de dias vazios, todos iguais. Dejà-vu do nada num caldeirão de néon em Copacabana. Como não sei o que virá pela frente, vou descrever como imagino o meu epílogo…

2

Depois de alguns devaneios, ela ingere alguns comprimidos com aquela serenidade de quem se decidiu. Entra no mar e sente o carinho aconchegante das ondas. Lembrou-se do abraço forte de Vera a puxando para junto de si, sente o beijo que a fez pensar ter descoberto a paixão. Ficou boiando alguns minutos, parada, quis apenas sentir a sedução da água envolvê-la. De um lado, havia o negrume de um horizonte escondido. Do outro, a praia e o brilho do asfalto. Quis lembrar-se de alguma coisa, mas a mente já embotava. Só a recordação de Vera e do beijo insistiam em ser seu epitáfio. Os seus membros iam sendo dominados pela dormência, ela reagiu com braçadas fortes em direção a escuridão. Uma paralisia a tomou, avistou o céu e as verdadeiras estrelas, sua visão escureceu. O oceano gelou… Do calçadão, quem olhava para o mar não via ou ouvia nada além do breu pontilhado pela pálida espuma das vagas que quebravam surdas na areia. O silêncio era a luz da escuridão…

CANCELA PRETA (BANGU)

CANCELA PRETA (BANGU)

E assim, ao sair de mais uma visita à Vila Mimosa, decido imbicar pela Leopoldina e percorrer a Av. Brasil, para conferir a dica de um amigo Taxista, um lugar chamado Cancela Preta.

A Cancela Preta não chega a ser outro Planeta, mas é quase um Satélite da Terra, tal sua distância. Fica no limbo, embolada entre Padre Miguel, Realengo e Bangu. Não sei especificar sua localização, mas chega-se lá pela árida Av. Brasil e é indicada pelas sinalizações.

Quando caí no acesso da Brasil que desembocava na penumbrosa Cancela Preta, me dei conta que talvez fosse um lugar mais propício para caçar Vampiros do que mulheres. Não tinha jeito, após meia hora cruzando o asfalto, eu estava na Cancela Preta e, logo de cara, tive uma visão.

Creia, leitor sem fé! Num recuado de pista, dentre várias meninas, havia uma loira saradíssima, vestida com top e calça de ginástica, fazendo ponto num local batizado como Cancela Preta. Eu nem sei se acredito em mim mesmo quando conto isso, mas é a mais pura, translúcida e nutritiva verdade.

Seu nome é Laura, pedi que entrasse no carro e começamos a conversar.

Com este corpão, você deve fazer academia todos os dias! – Inicio minhas perguntas cretinas.

Não tenho dinheiro para a Academia. Comprei uns pesos na Casa & Vídeo e malho em casa.

Impressionante! A força de vontade faz milagres! Não me emocionou pelo rosto, mas pelo corpaço.

Tratei com ela o presente. O Sucatão mergulha no breu até o Motel Carbonara, também na Brasil, altura de Bangu. Peço um apartamento simples.

Introduzo a chave, abro a porta do quarto, acendo a luz e ouço um grito estridente… Era a menina que berrava e corria desesperada para o banheiro, perseguida por uma nuvem de mosquitos canibais que despertou quando entramos. Ao verem o primeiro ataque frustrado, a mosquitada partiu raivosa para cima de mim, agora era eu quem gritava e corria. Protegi-me com o cobertor, ao mesmo tempo, agitava o travesseiro para espantá-los. Consegui abrir a janela e ligar o ar-condicionado.

Em poucos segundos, fui semidevorado pelos hematófagos, mas venci uma das sete pragas da Cancela Preta.

Exausto, bati à porta do banheiro para avisar que a mosquitada havia feito um recuo estratégico. Laura abre a porta e sai de calcinha minúscula e com os pequenos seios durinhos expostos. Que delícia!

Uma perna malhada da moça devia dar duas da minha; barriga tanquinho; bunda de pedra e arrebitada; braços fortes e pele macia.

Começamos nos beijando, ela tem um beijo gostoso. Depois, desceu lambendo minha barriga, abocanhou meu membro e sugou-me como os mosquitos hematófagos que tentaram secar meu sangue.

Peço a minha posição favorita e ela fica de quatro. A visão daquela bunda trabalhada com pesos da Casa & Vídeo me deixou atordoado. Comecei a meter, a garota não gemia, arfava. Senti que ainda resistiram alguns mosquitos desertores da tropa que invadiu o quarto, volta e meia eu era assolado por picadas, mas o tesão era forte e gozei sem medo.

Deixamos o hotel e eu desovei a Laura novamente na Cancela Preta.

De volta à Av. Brasil, acelero o Sucatão. Tive a impressão de ver uma nuvem de insetos nos seguindo. Não, não podia ser! Era o trauma da situação vivida que me iludia. Voamos de volta para casa!

Até o próximo episódio…

Boate Sinônimo (Lapa)

BOATE SINÔNIMO (LAPA)

*Adentrando pela velhice, quando num dia tardio eu desaparecer, restarão os arquivos dessas memórias escritas nos fóruns e no livro que deixei sobre a vida mundana (O Paraíso de Dante). A morte de um Highlander nunca pode ser descartada, vi foristas falecerem de súbito, boêmios que hoje são lembrados somente por aqueles que compartilharam da companhia de quem muitas vezes levava uma vida dupla. Somos folhas caindo da árvore da existência.

Estava aos pés da madrugada tomando meu conhaque num pé-sujo na esquina da obscura Rua Ubaldino Amaral com Mem de Sá, na Lapa. O movimento intenso da calçada era ignorado pelos bêbados do balcão, todos debruçados sobre a vitrine de ovos coloridos e de uma gordurosa rabada que prometia um infarto fulminante a quem a ingerisse. Eu estava feliz agarrado ao copo, observando o entorno, misturado à alienação dos ébrios. Certa vez, um ancião de alto teor etílico me ensinou que o dia é a rotina, o trabalho, a preguiça da praia; já a noite é o imprevisível, o gozo, a pele em contato libidinoso, é o mistério, a perversão.

Eu tinha bebido tanto que começava a sentir dificuldade em focar os olhos num ponto fixo. A felicidade do álcool atordoa, obstrui os sentidos. O meu estado de suspensão animada não me impediu de ver a mulata que passou me encarando, quase me desafiando para um duelo sexual. Paguei esbaforido a bebida e saí no encalço da menina que pingava sensualidade a cada rebolado que a impulsionava para frente. Confesso, afeiçoado forista, eu fazia um esforço sobre-humano para me manter em linha reta, lutei heroicamente contra a sinuosidade dos meus pés. A garota parou em frente a um sobrado rosa, entregou um papel e entrou. Avancei na intenção de permanecer no seu encalço.

O sobrado rosa era uma boate de nome “Sinônimo” (a criatividade dos nomes ainda me espanta). Comprei um ingresso, entreguei ao porteiro, fui revistado e entrei. Gays, simpatizantes e provavelmente alienígenas me aguardavam no interior. O lugar tinha dois andares, dois ambientes. No térreo ficava o bar com música ao vivo, gente apinhada, um cara perto do caixa me mostrou a língua como se fosse uma serpente erótica. Assustador. Por alguma dessas coincidências sacanas do destino, o caixa da “Sinônimo” era um antigo barman da Mosaico, precisei de uns dez minutos para convencê-lo de que eu não pertencia ao mundo gay e que estava ali por acidente de percurso. Não sei se ele acreditou. Subi ao segundo andar à procura da mulata e até hoje não me esqueço, tocava uma música do The Cure (Lullaby).

Acredite, forista sem fé, não achei a mulata, mas avistei uma ruiva de cabelos cacheados, pele alvíssima e um corpo estonteante executando o que meu amigo Teixeirinha chama de “a dança da enguia”. A menina se contorcia, se agachava quase se arrastando no chão, levantava com as mãos os cabelos vermelhos num coque sexy. Vestia um top e uma calça justíssima de um tecido preto e brilhoso que devia ser couro. Fiquei hipnotizado, talvez até apaixonado. Como já expliquei, amigo forista, dileto companheiro dessas viagens psicodélicas pelas noites cariocas, o libertino não é aquele que não ama, o verdadeiro libertino ama demais, numa sequência quase vertiginosa de paixões que nascem e morrem. O libertino é um náufrago de amores interrompidos.

Quando estou bêbado, sou cara de pau. Não tirei mais os olhos da ruiva e esperei o momento conveniente para me aproximar. Assim que ela se afastou um pouco da muvuca, cheguei junto e perguntei se ela topava beber comigo. O noturno imprevisível aconteceu, ela aceitou. Seu nome era Raquel e sua primeira pergunta foi para saber se eu era gay, bissexual ou coisa que o valha. Novamente, me peguei explicando que eu não era gay, que havia entrado ali por acidente, para procurar uma pessoa. Não adiantou, amigo forista. Quando você entra numa arena gay, ninguém crê que você não seja gay. Relaxei, mas com receio de em algum momento Raquel me convencer a me assumir. Seria inusitado se isso acontecesse, me tornar o Seu Peru da Tijuca. Sentados num canto reservado da boate, ficamos conversando. A menina não teve pudor em me revelar que era bi.

As horas passaram, dançamos rodeados por monas, gays e travestis eufóricos. Foi uma baita experiência. Ela me apresentou a alguns amigos ou “amigas”. Bebemos todos. Estava perto de inventar que meu nome era Dantielle Morgan, só para não me sentir deslocado. Quase as quatro da manhã ela me disse que ia embora, me ofereci para levá-la. Andamos até o Sucatão e partimos. A menina morava sozinha numa quitinete da Rua República do Peru, em Copacabana (o destino é ou não é um sacana?).

– Quer subir pra saideira? – Ela pergunta.

O apartamento minimalista tinha metade do seu espaço tomado por uma mesa de passar roupa aberta. Sentei-me num pequeno sofá e ela entrou numa área reservada que devia ser o quarto avisando que iria ficar mais à vontade. Pediu que eu tirasse os sapatos. Voltou do quarto flutuando num parco baby-doll e acomodou-se no meu colo. Sim, profético forista, a transa aconteceu e foi magnífica ou ao menos é assim que me recordo dela.

Deixei o prédio trôpego e entrei no Sucatão. Começava a amanhecer e a sensação de ressaca se insinuava em minha cabeça. Desconheço se a boate Sinônimo ainda funciona. Passei um bom tempo sem conseguir contato com Raquel, mas um dia ela me ligou perguntando se eu poderia pegá-la no Grajaú. Fui. Depois disso nunca mais nos vemos. O libertino é um náufrago de amores que surgem como miragens e desaparecem no horizonte inalcançável.

Andarilho da Lapa

O ANDARILHO DA LAPA

Cansado… é a palavra que me vem à mente muitas vezes, quando estou prestes a entrar em uma sala do AA37 ou quando estou perambulando pelo Centro. Compreenda, entrei no meu primeiro bordel em 1980, depois disso me tornei um lobo desgarrado buscando saciar a fome da libido. Acredite, forista sem fé, mais do que uma necessidade, toda fome é um vício.

Foi a última noite em que saí para caçar, a mais recente, antes da invasão da falsa alegria do Carnaval. Confesso que sempre fui um velho misantropo, bem antes de me tornar um velho pela idade. Nunca gostei de muvuca, de calor humano ao meu redor, sofro de antropofobia. A única vez em que me senti bem no meio de uma multidão foi no Comício das Diretas em 1984, havia um romantismo idealista que unia e confortava quem esteve no miolo daquela turba.

Foi minha incansável insônia crônica que me jogou nos braços da madrugada, cogitei ir para a Vila Mimosa, mas concluí que seria um destino deprimente, a Av. Francisco Eugênio também não me apeteceu. Aonde ir? Copacabana já era, as frees estariam dormindo ou cuidando dos filhos. O que resta? A Lapa, o último reduto libertino, não que seja um lugar que me motive, apesar de toda a história boêmia que repousa naqueles sobrados. A Lapa continua resistindo às transformações do tempo, morrendo e ressuscitando através dos séculos.

Para o leitor casado ou àquele que está abandonando o casamento na tentativa de recuperar a juventude perdida, que se limita somente aos encontros nas salas dos corredores sombrios da rua Álvaro Alvim ou em prédios decadentes da cidade, para esses ainda é difícil recordarem-se de que o maior tesão do sexo está na adrenalina que o precede, nada que é programado favorece à adrenalina. Talvez, por isso, eu me sinta um pouco entediado atualmente, me deixei contaminar por um ritmo que não é o meu. Retomar a liberdade, o meu desejo por descobertas, é me libertar do bolor sexual dos outros.

Sei que para alguns é complicado crer que existe um mundo mundano além das salas de mulheres com anúncios, não é à toa que um ou outro forista me pergunta, após ler alguns dos meus relatos com mulheres aleatórias: “ela existe mesmo, Dante?” — Foi assim com a Gisele, com o Palácio de Cristal e com outras situações. No caso das minhas visitas ao Palácio de CristaL, dois foristas estiveram lá e me deram retorno, gostaram. No fórum não há essa cultura da rua, da caça aleatória, mesmo que envolva garotas de programa. Essa é a única modalidade que realmente me interessa agora.

Quem frequenta a Lapa com olhos de ver deve ter reparado que não é incomum sermos repentinamente abordados por mulheres que se apresentam como promoters em muitas das casas de diversões que ali estão instaladas, algumas a gente olha e sente a saliva pasma de desejo escorrer pelo canto da boca, são mulheres bonitas. O que pode acontecer é demorarmos para percebermos que algumas dessas mulheres estão ali para jogo.

Larguei um pouco a cachaça Salinas e voltei a abraçar o Black Label, o uísque é a única bebida alcoólica que opera uma transformação psicológica em mim, fico mais eufórico, mais solto, mais descontraído, chego a me sentir feliz. Após rodar para cima e para baixo na Av. Men de Sá, pedindo uma dose do Black em cada esquina em que vi um bar, decido entrar em um estabelecimento que fica entre a rua do Lavradio e a Gomes Freire, na mesma calçada da Up House. Tocava um funk quando passei em frente e me chamou a atenção uma cortina que me impedia de ver o que rolava lá dentro. Fiquei na tocaia, até que alguém saiu, a cortina se moveu e pude observar que o interior do lugar era pequeno e estava lotado. Entrei e fui recepcionado ao som de Michael Douglas…

MICHAEL DOUGLAS

PARTE 2

Saber escrever é perigoso. Você pode despertar admiração, competição ou recalques; pode erguer mundos, descrever cenários, conquistar a eternidade; pode enaltecer ou implodir pessoas; desmascarar mentiras e falsidades; pode dar fama ou relegar ao anonimato qualquer criatura ou situação que sirva como tema. A palavra é poderosa, é a arquiteta do nosso espírito, aprendo e confirmo isso à medida em que me aprimoro na articulação da língua.

É inegável que a idade pesa, mesmo que antes eu não tivesse essa melancólica noção sobre o princípio da velhice. Fui um guerreiro dos mais ativos, minha conta sobre a quantidade de ocasiões em que fiz sexo já se perdeu há tempos. Eu não poderia ter aderido ao matrimônio quando mais novo, pois seria mais um adúltero patético povoando as penumbras envergonhadas da prostituição e não suporto viver uma face de mentiras. Meu único ato de juízo foi me manter como um celibatário.

Hoje, percebo que estou maduro para um relacionamento mais estável. Talvez, por isso, eu esteja também mais suscetível às ilusões sentimentais. A experiência nem sempre nos faz imunes à malícia. Ser uma alma libertina não me priva de ainda possuir um tempero romântico. Sou da velha guarda, da safra dos boêmios que ainda amam.

Afirmo sempre que o libertino não é aquele que não ama, mas é o personagem que não se encaixou em qualquer espécie amor. É um errante, um náufrago do afeto, agarrando-se às pequenas boias que flutuam nesse imenso oceano das miragens, boias que logo afundam e o obrigam a continuar nadando. É uma vida solitária, mas em que a solidão não é castigo, é dádiva. Na ausência do amor, ama-te sem reservas ou pudores.

A passagem do tempo tenta impor aos que envelhecem um tipo de deslocamento geracional, sobrevivem aqueles que sabem se inserir em todas as épocas que testemunham e atravessam. Com o avançar da idade, precisamos escapar dos nossos próprios preconceitos e da armadilha tosca que o etarismo arma para nos encurralar. Após os quarenta anos, é preciso revolucionar-se diariamente para não se tornar um proscrito condenado pela frieza homicida do calendário cristão.

PARTE 3

O que ainda me empurra para a noite? Não tenho certeza, talvez a ansiedade, uma ponta de angústia, o breve incômodo por estar sozinho quando gostaria de me compartilhar com uma mulher que estivesse à minha altura.

O universo da luxúria é frio, principalmente no que diz respeito às mulheres. Uma prostituta tem seu lado social, de família, é onde ela preserva seus melhores sentimentos. Por outro lado, quando está com o homem que paga pela sua presença, não é incomum que assumam uma face maliciosa, que gira pelo interesse monetário, que não se importa com o outro, que quer apenas usar, se divertir com carências de forma muitas vezes implacável. As mulheres que cedem a essa bifurcação do caráter se perdem, se afogam em si mesmas. Nunca vi um final feliz em casos assim. O afeto não salva, mas atrai energias melhores.

Naquele buraco em que entrei, no meio de um bando de jovens saltitantes, envolvido pelo funk nas alturas, me senti um Matusalém. Não querendo ser pernóstico, mas sou um homem clássico, frequentador do Teatro Municipal, da Sala Cecília Meirelles, um adepto da música clássica, leitor sofisticado, me visto com sobriedade, considero-me um exemplar elegante da minha geração e cultivo tudo isso com dedicação. Estar no meio daquela arena selvagem me oprimiu, senti o impacto do choque de gerações, da ruptura com meu próprio tempo. Não suportei ficar cinco minutos naquele ringue juvenil, escapei dali como um presidiário desesperado pelo oxigênio das ruas. Também possuo meu limite de tolerância.

Voltei a perambular pelos descaminhos da Lapa, pensei em revisitar o Palácio de Cristal (PALÁCIO DE CRISTAL), mas a ausência da Gisele acentuaria o meu desânimo. Com as pernas cansadas, os olhos turvos pelo uísque, decidi encostar a carcaça no primeiro abrigo que avistei, um lugar chamado Cavern Pub. Estava cheio, uma banda de rock se apresentava, me embrenhei e pedi mais um Red Label que matei em um único gole. Creio, estimado forista, bebo pouco, mas quando saio para beber costumo compensar todos os dias em que não bebi.

A mágica acontece quando menos esperamos. Uma mulher de uns quarenta anos, trajada em um estilo gótico, surgiu do nada e se aproximou de mim.

— Desculpa perguntar. Você está bem? Achei seus olhos tristes?

O destino me pregava mais uma peça. Girei o pescoço para ver quem falava comigo e me deparei com uns olhos azuis que também teriam roubado o paraíso de Adão. A resposta à pergunta que me fez ficou entalada na minha garganta, pois me pareceu a oportunidade exótica de falar sobre toda a minha vida. Ela continuou me encarando. A banda começou a tocar Something, meus olhos quase marejaram…

SOMETHING

FINAL

Sou um insurgente. 

Sim, ao contrário do que alguns insistem em suspeitar, talvez por estarem mergulhados na ignorância da inexperiência, não escrevo ficção por aqui. Tenho na minha face de jornalista a inevitável simpatia por narrar histórias que brotam da vivência verídica do dia a dia ou do noite a noite. Aos que tentam me reprovar por escrever relatos com apelo sexual, respondo com os versos do inigualável poeta português José Régio:

“Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…”

—————————-Continuação—————————————–

— Se quiser conversar, sou psicóloga — me informa a coroa gótica.

O fato de se dizer psicóloga mais me desanimou do que motivou, no entanto, a torrente incessante do destino me oferecia a oportunidade de uma conversa inesperada. Perguntei se eu poderia pagar uma bebida, ela pediu uma caipirinha e aceitei o convite do acaso, despejei minhas infelizes experiências recentes no ouvido da suposta psicóloga. Ao terminar, lembrei-me de que não sabia o nome dela.

— Demmy, não estranhe. Sou filha de americanos — ela me responde.

Pela cor imaculada do azul dos olhos, tomei como verdade a origem do nome. Pareceu-me que estávamos os dois no mesmo patamar de embriaguez, Demmy foi muito simpática, demonstrou uma capacidade rara de ouvir sem julgar. Permanecemos ali, debaixo de um toldo com a inscrição “Boemia da Lapa”, trocando as nossas impressões sobre o vertiginoso ato de existir.

Com a conversa esgotada, me despedi de Demmy e segui no meu périplo noturno pela velha Lapa. Segui até ao Bar das Quengas, que nos meus tempos mais juvenis era um pé-sujo democrático frequentado por putas e travestis lutando pela sobrevivência. Busquei um lugar vago e sentei-me, pedi outro uísque. Sinceramente, perdi a conta de quantas doses de uísque tomei naquela noite, mas eu continuava um ébrio dono da razão.

— Tá sozinho, rapá? — perguntou-me um sujeito na mesa vizinha.

Respondi que sim.

— Tu é carioca? Senta aqui com a gente, somos de Manaus e estamos visitando essa cidade da porra.

A contragosto, mas por cortesia, troquei de lugar e me acomodei na mesa do amazonense, ele estava acompanhado de duas mulheres, uma delas grávida. Falei sobre o Rio, sobre a minha origem gaúcha, ele dissertou sobre Manaus e sobre sua própria vida. Contou-me que já tinha sido morador de rua em São Paulo, mas hoje é um orgulhoso empresário na área de informática. Expansivo, apresentou-se como Edvaldo, apontou para a morena bonita agarrada ao seu ombro, revelou ser sua namorada. Teceu elogios à grávida do meu lado, futura mãe solteira.

O interessante é que não detectei qualquer sotaque nos manauaras, talvez amazonenses não tenham sotaque, foram os primeiros que conheci de perto.

— Conhece algum lugar bom para a gente ir? Para virarmos a noite na farra? — me pergunta Edvaldo.

— Olha o lugar que conheço aqui por perto talvez você não aprove, é uma boate. Uma boate de swing.

O grupo se entreolhou e Edvaldo solta a exclamação.

— Homem, é tudo que a gente queria. Conhecer as sacanagens dessa cidade. Por isso, viemos à Lapa. Vai com a gente? Swing é casal, temos que formar dois casais.

— Mas ela também vai? — apontei para a grávida.

— Claro que eu vou — a própria gestante respondeu.

Quando dei por mim, estávamos os quatro entrando na boate Mistura Certa, com a grávida segurando em meu braço. Chamava-se Kássia, uma loira bonita que me fez lembrar a atriz Cheryl Ladd quando jovem.

Edvaldo encheu a mesa de bebidas. Eu estava entrando no começo desconfortável das vertigens alcoólicas, mas não quis estragar a festa. A namorada do Edvaldo era uma morena realmente lindíssima, cabelos longos, rosto de traços finos, olhos negros e expressivos, um corpaço de parar trânsito. Edvaldo cochichou ao meu ouvido que se tratava de uma garota de programa, amante de um advogado e que topou viajar para o Rio com ele pela “modesta” quantia de sete mil reais.

— E a grávida? — perguntei.

Também era uma garota de programa que deu mole e engravidou de um cliente que se comprometeu a bancar o filho.

No meu íntimo mais profundo, eu pensei: definitivamente, putas e libertinos se atraem como o mercúrio. Depois da Demmy psicóloga, a casualidade quase previsível me coloca no meio de um putanheiro com duas garotas de programa a tiracolo. Quem sabe ainda me livro dessa sina me submetendo a um descarrego?

Edvaldo e a morena fizeram a festa no labirinto da luxúria. Eu, que nunca havia ficado com uma grávida, me meti em uma cabine e recebi um dos boquetes mais arrepiantes da minha carreira, além de uma sequência de beijos na boca capazes ressuscitar Lázaro.

Fim de festa, o excesso de doses de uísque agora me provocava náuseas mais incômodas, preferi me despedir do grupo. Perguntei quanto devia a menina, Edvaldo disse que nada, tudo por conta dele, incluso nos sete mil reais. Por via das dúvidas, puxei duzentos e cinquenta reais e entreguei na mão da gestante, que me deu outro beijaço na boca como agradecimento.

Despedi-me de todos eles. Antes de sair, ouço a derradeira pergunta de Edvaldo.

— Homem, não seu teu nome, nem perguntei.

— Dante, meu nome é Dante.

VINHETA

Fiz sinal para um táxi, desfaleci na minha cama e quando acordei nem eu mesmo acreditei nas memórias que transbordavam em mim

Black Or White

BLACK OR WHITE

“Sou um organismo cibernético, tecido vivo expandido em um endo-esqueleto de metal. Ciborgue T-800, sistema Ciberdyne, modelo 1-0-1. Fui capturado e reprogramado para essa época no ano de 2029, com o objetivo de garantir a sobrevivência de John Connors, líder da resistência humana contra a Skynet. Venha comigo, se quiser viver.” (Terminator)

EXTERMINADOR DO FUTURO

Os pneus do automóvel, com marcas cruas de lanternagem, chiavam sobre o negrume do asfalto, o céu cor de chumbo respingava lágrimas sobre as paisagens esquecidas do Rio de Janeiro. Atravessar a Tijuca em direção ao bairro de Bonsucesso é semelhante a uma viagem de trem fantasma ou a um trailer do Exterminador do Futuro, cuja música não me saiu da cabeça durante o percurso. Um libertino não teme, mas também não perde a noção do perigo. Meu destino era a Black White, onde encontraria outros replicantes da minha mesma espécie.

A passagem pelo bairro do Rocha, Benfica, a travessia pela Avenida Leopoldo Bulhões, um cenário urbano que nos faz pensar que aquelas regiões sofreram alguma hecatombe recente. A penumbra de um semideserto, com velhos casarios em ruínas e prédios malcuidados, erguem-se em sombras de mistério e solidão. A única luz de vida que pude avistar no trajeto veio do bar Velho Adônis, local que ainda preciso conhecer de perto. Favela do Arara e Manguinhos tracejam diante dos meus olhos curiosos.

Chego ao destino. Entro em uma boate vazia, mas que rapidamente foi recheada por muitas mulheres, mas os clientes continuaram poucos. Bebo, misturo Brahma com Ice, o que me garantiu uma desagradável dor de cabeça no dia seguinte. Algumas garotas se apresentaram para mim, dispensei todas, não porque não fossem interessantes, mas pela minha preferência de ficar livre até escolher a fêmea para o abate. Abate talvez seja uma expressão forte, pois Pikachu, o breve, se mostrava indisposto naquela noite e provavelmente me renderia pouco sexo e um grande vexame.

A BW tem um clima simpático, algumas garotas realmente interessantes, perdidas na Zona da Leopoldina. O comandante da casa, muito educado, veio me cumprimentar, perguntou se estava tudo bem, sabia até que sou escritor. A fama corre. A princípio, fiquei em dúvida entre três moças, depois entre uma loira atraente chamada Lolita e uma morena extremamente sexy que usa o nome de Melissa. O papo com a Melissa fluiu, a menina se mostrou sem restrições, me deu um beijão de língua na pista e foi mais rápida para me convencer a escolhê-la. Alcova.

O período de uma hora na BW na suíte não é barato, mas considerei que Melissa merecia e subimos. No quarto pude vislumbrar seu corpo despido do minúsculo biquíne, um corpão de empolgar defunto cremado. Cintura finíssima, bundão esférico, barriguinha zero e um par de seios de adolescente que me fez salivar mais do que faz um sunday do McDonald’s.

Beijos fartos, roçadas perigosíssimas, chave de perna, gemidos estonteantes de Melissa e um boquete que faria inveja à despudorada Linda Lovelace. Entre gargantas profundas e esfregas de alta tensão, quase caí na armadilha da ejaculação precoce, mas para não sucumbir pedi que Melissa ficasse de quatro e tremi daquela paisagem que poderia ser confundida com a descoberta do novo mundo por um marujo desavisado. Ajoelho-me e penetro com respeito religioso naquele templo úmido e quente, a vagina. Estocadas leves que aumentam com o entusiasmo. Pikachu, o breve, se vê obrigado a atuar com disposição diante daquele monumento tropical que é Melissa. Gozei horrores, ejaculei a tabela periódica, a minha árvore genealógica e o tratado da evolução de Darwin. Despenco arfando no colchão que guarda com o silêncio de um monastério todas as fodas que sustentou e testemunhou naquela pequena suíte.

Encerrado o embate, ficamos abraçados, eu e Melissa, conversando sobre a vida. Ela ainda parecia estar cheia de fogo, enquanto eu não passava de um trapo tentando voltar a respirar no ritmo normal. Hora da despedida. Retorno à bucólica Tijuca pela Avenida Brasil, funil onde nossas vidas convergem. Ali, não existem belas paisagens, o que predomina é a realidade, feia como podem ser as realidades, retrato da nossa degradação. I’ll be back

Blue House e o existencialismo libertino

BLUE HOUSE E O EXISTENCIALISMO LIBERTINO

O rádio tocava Something In The Way, do Nirvana. O táxi escalava em marcha lenta, num quase sem fôlego que cobiçava o alto da estrada Grajaú – Jacarepaguá.

Something In The Way

Pela janela, eu contemplava a cidade, cemitério de vivos, se reduzir a pequenos pontos de luz, luzes brancas e amareladas, um pálido véu de estrelas falsas contemplando a imensidão enigmática do cosmos. Qual o sentido da vida que morre? Não conseguia evitar filosofices enquanto os pneus sofridos giravam em direção ao destino que escolhi. Viver sem buscar sentido, talvez seja a resposta. Meus olhos mergulhavam na mata árida, na favela que só encontra significado na miséria, na escuridão que me espreitava se misturando ao meu semblante interrogativo. As batidas da música me afogavam em mim mesmo.

Da Tijuca até a Blue House é um estirão. O taxista tagarelava reclamando dos passageiros, do trânsito, da vida. “Qual o sentido da sua vida?” — senti vontade de perguntar —, mas a resposta ele me oferecia com o seu papaguear interminável: é o caos que não aspira sentido algum.

Descendo a serra, minha mente submergia num Rio de Janeiro profundo, uma Gotham City sem Batman. Comungado com os pneus, com ritmo da canção estrangeira, eu corria em direção ao caos que me faz esquecer que não há sentido em nada, pois não pode haver sentido em vidas que morrem. Talvez, o único sentido da vida seja o orgasmo, a explosão de prazer que anseia germinar outras vidas sem sentido, num ciclo interminável de nascimento de natimortos.

A estrada de Jacarepaguá exibia bares luminosos, lotados de gente se alcoolizando, para esquecer, em busca do gozo que, numa duração de poucos segundos, nos eterniza neste planeta condenado.

— A boate está perto, é mais ali na frente — me avisava o taxista tagarela.

Eu vestia uma calça jeans, uma blusa escura e calçava as minhas botas inalienáveis. Ser libertino é o meu sentido, ser essa sombra que vaga pelos cabarés e pelos corpos mornos das prostitutas, sou a sombra que brilha. De súbito, o motorista diminui a velocidade. Chegamos. Pago os cinquenta reais da corrida e finco minhas botas na terra que circunda aquele território desconhecido.

Na recepção, sou recebido por um sujeito mal-encarado que pede o meu celular e mete pedaços de esparadrapos nas câmeras do aparelho.

— É por segurança. Já tivemos problemas — ele me explica por entre os dentes.

Recebo uma comanda, outra porta se abre e estou dentro da boate. Mesa de sinuca, pequenos sofás, bebidas espalhadas por bancadas redondas e triangulares. A luz tênue da boate projeta silhuetas com pouca roupa dançando, o espaço não é grande. Mulheres na pista, mulheres chegando, a atmosfera de flertes gananciosos e olhares lúbricos compõe o enredo do inferninho.

Uma loira altíssima, de corpo cavalar, me encara. Decido me aproximar. Ela me conta que também cumpre expediente na 65. Pergunto o nome, pergunto o que faz na cama. “Não beijo na boca” — a resposta me faz descartá-la imediatamente. “Uma mulher que custa 400 contos na 65 e não beija na boca” — murmurei com tom de indignação. Malandra, antes da resposta fatal, conseguiu me tirar um drink caríssimo como brinde.

Vaguei pelos cantos do lugar tentando encontrar uma presa, eu estava determinado a foder. Mulheres que não me interessam se aproximam, eu as descarto sem permitir que se demorem na abordagem. Ela veio caminhando em passos lentos, mulata de 1,70m, cabelos curtos, dotada de curvas vertiginosas e olhos que pingavam sensualidade a cada passo que ela dava. Vinha em direção ao bar, na minha rota de interceptação. Não hesitei, interrompi a rota da mulher.

— Preciso saber seu nome — perguntei.

— Bárbara. E o seu?

— Dante. Meu nome é Dante.

Perdoe-me pelo trocadilho infame, afeiçoado forista, mas a Bárbara é bárbara. Uma beleza sem exuberâncias nos traços do rosto, mas o corpo curvilíneo, a bunda empinada que poderia estampar capa de revista, os olhos de ressaca que causariam inveja à Capitu de Machado de Assis… Bárbara é o abismo do tesão. Conversou comigo sem pressa, bebemos juntos, ameaçamos beijos públicos e impudicos, ela esfregava sua pele na minha e roçava seu rabo irretocável no meu combalido pênis. Pedi uma alcova. Quarenta minutos por 180 reais, no cartão sai por 220 pilas.

Ela me conduz ao quarto, um quarto amplo, com box e chuveiro, poderia ser o aposento de algum motel barato e de boa qualidade. Gostei. Bárbara me avisa que irá pegar seus apetrechos, aguardo. Ela volta rapidamente, se despe do minúsculo biquine e me beija com a sede de uma mulher que atravessou a secura de um deserto. Nossas línguas se enroscam, Bárbara geme, me abraça com força, esfrega-se em mim, roça sua vagina em meu pau.

“Que porra de mulher maravilhosa” — eu pensava.

Acredite, forista sem fé, Bárbara é realmente maravilhosa. É daquelas que se entrega completamente, goza, chupa desejando sugar o nosso sémen. Alertou-me de que não fazia anal, mas no quarto conduziu meus dedos para o seu cuzinho macio e apertado. O altar é o cu — asseverava o Marquês de Sade com a propriedade do maior libertino que existiu. 

Bárbara cavalga em mim com o rosto virado para o meu, me beija, me lança seus seios duros e bicudos para que eu os lamba; me cavalga de costas, pede que eu enfie o dedo em sua bunda, geme alto, parece gozar; fica de quatro, eu ajoelho diante daquele templo sexual e o penetro rezando um Pai Nosso.

Bárbara pede que eu a chupe e caio em sua vagina como um mouro orando à Meca. Ela se contorce, grita, goza outra vez. Abre suas pernas e me convida para a mais básicas das posições, subo por cima do seu tronco, penetro novamente em sua boceta e meto enquanto nossas línguas se entrelaçam num nó cego. 

Gozei sentindo o infinito dos segundos em que os espermas saltam para a armadilha dos instintos. Desabei esgotado ao lado de Bárbara, semimorto. E naquele vazio depois do orgasmo, naquele breve momento em que deixamos de existir, lamentei por aqueles espermatozoides que jamais encontrarão um óvulo, senti a solidão ancestral de todos os libertinos, essas sombras que brilham. 

Bebel Sucuri

BEBEL SUCURI

Loucuras não se explicam, se cometem!

Foi numa sexta-feira, início da noite. Eu estava confortavelmente acomodado no escritório de casa assistindo umas fitas de um seriado antiquíssimo que um amigo da TV Globo conseguiu gravar: Xazan e Xerife. Alguns irão lembrar, era um programa com o Flávio Migliaccio e o Paulo José. Nostalgia braba. De repente, o telefone toca tão alto que chego a me assustar.

Teixeirinha do outro lado da linha.

– Dante?

– Fala, Teixe! O que manda?

– Preciso da sua ajuda hoje.

– Pô, mas hoje? Já estou até de pijama!

– Tem que ser hoje.

– Diz.

Eu havia tirado carteira de motorista há pouco tempo, me sentia inseguro ao volante. O Teixeirinha, com o pretexto de me ajudar a praticar mais a direção, me pediu para levá-lo até um

Motel na Av. Brasil, alegando que uma namorada insistia em conhecer o tal recanto. Ele, no entanto, queria ver primeiro onde ficava o prédio de alcovas.

– Mas Teixeirinha, por que você não vai com o seu Corcel e já leva logo a mulher?

– Cara, o Corcel está parado, quebrou a cruzeta!

– Quebrou o que, Teixe?

– A cruzeta!

– Cruzeta?!

– É, mas deixa para lá! Coisas do Corcel! Estou quase indo num Antiquário para poder consertá-lo. Mas vamos logo!

– Tudo bem. Vou me arrumar e passo na sua casa.

Bastou meia hora e eu estava na Av. Vinte Oito de Setembro pegando o Teixeirinha e depois ajustei o leme para a Av. Brasil.

O céu estava carregado. Chuva anunciada. Quando passamos em frente ao Caju, o Teixeirinha me informa que sua intenção era localizar o Motel Carbonara, ficava em Bangu.

-Pô, Teixeirinha! Você quer ir até Bangu só para saber onde fica um Motel?! Que isso?!

– Cara, preciso saber onde fica esse troço. Motel na Brasil eu não confio.

– Caramba! Mas a sua namorada não tem tara por um motel mais perto, não? Querer transar num motel de Bangu nem é mais tara, é perversidade sexual!

– O importante é que ela quer me dar, Dante! E se a fantasia dela é transar em Bangu, alugo até um barraquinho lá, o que não posso é perder a mulher.

Viajamos por quase quarenta minutos para aplacar a obsessão do Teixeirinha. O Carbonara ficava na altura do Conjunto da Marinha, a entrada era pela Brasil. A cena foi ridícula, identificamos o Motel aos gritos histéricos e fanhosos do meu amigo. Costumo descrever a voz do Teixeirinha dizendo que ela não está muito longe de uma dublagem do Pato Donald e é bem por aí mesmo.

– É o Carbonara! É o Carbonara, Dante!

– Beleza! E o que a gente faz? Entra e tira um cochilo?

– Perde o amigo, mas não perde a piada, né? Vamos voltar.

– Voltar? 

– Voltar. O retorno é ali na frente.

E voltamos. O Teixeirinha, cheio de sono, me orientou sobre o trajeto antes de começar a madornar do meu lado.

– Dante, não tem erro. É uma reta! Quando perceber que estamos saindo da Brasil, você me acorda. A gente pega a Francisco Bicalho e vamos sair na Praça da Bandeira. Molinho! Coisa de criança! Você me chama se ficar enrolado. E dormiu…

Na altura de Irajá, em direção ao Centro, uma tempestade desabou sem pedir licença. Eu mal podia enxergar meio metro à frente do carro. Fui prosseguindo devagar no caminho. Nisso, o Teixeirinha desperta por alguns segundos.

– Com essa chuva é que vou ficar constipado de vez! – Diz meu amigo.

– Constipado, Teixe?! Isso é o que?

– Estou ampliando meu vocabulário.

– Praticando o boiolês.

Com o meu copiloto novamente apagado, alcancei Manguinhos, onde a chuva havia perdido parte da força. Mantive-me na reta.

– Teixeirinha! Acorda! Estou subindo um viaduto. Faço o que depois?

– Viaduto?! Que viaduto?! – Fala o Teixe enquanto se espreguiça.

– Você é que tem que me dizer! – Respondo.

– Cara, que merda! Isto não é viaduto! É a Ponte Rio – Niterói!

– Putz! E vamos fazer o quê?

– Relaxar e aproveitar a paisagem. Não tem mais jeito.

– Pô! E onde a gente vai parar?

– Advinha? …

– Esquece! Já sei.

E, como nem eu e nem o Teixeirinha tínhamos um conhecimento profundo sobre a geografia de Niterói, fomos nos embrenhando pelo seu interior.

– Teixe, onde a gente está?

– Não sei, Dante. Vamos procurar alguma placa que nos tire daqui.

Placas eram ficção no lugar onde estávamos e, sem saber como, fomos desembocar em Charitas. Resolvemos parar o carro e tomar uma cerveja num bar próximo à praia.

– Vamos ter que comprar um mapa para sair daqui. – Digo.

– Cara, vamos seguir as placas!

Acontece que todo libertino sofre de um fenômeno conhecido como a Síndrome do Mercúrio. Ou seja, um libertino sempre atrai outro libertino e, juntos, são atraídos por um Bordel.

Não deu outra. Quando tentávamos encontrar a trilha de volta para o Rio, embicamos por uma Estrada sem nenhuma indicação que nos fornecesse seu nome. No meio do desvairado percurso, avistamos uma Casa toda iluminada, como se estivesse decorada para o Natal. Na fachada, uma placa:

“Não percam! Hoje tem Show da Mulher Serpente! Duas cervejas grátis! ”

– Dante, vamos entrar aí. A gente aproveita e pergunta como encontrar novamente a Ponte.

Estacionei e entramos.

Apesar da aparência faraônica, a casa por dentro era simples. Assemelhava-se a um bar de beira de estrada. Mesinhas de ferro espalhadas num salão espaçoso, sinuca, chão de cimento e, ao fundo, um tablado que serviria de palco para a grande apresentação da noite. A música do ambiente era vibrante, moderna e dançante. Mulheres circulavam por entre as mesas trajadas em shortinhos jeans e tops. A maioria era bagaceira, umas poucas atraentes. Serviam para acentuar o contraste no momento em que adentrava a Estrela da noite.

Uns quarenta minutos depois que chegamos, com o Teixeirinha chapado, um Mestre de Cerimônias anuncia a sensação da noite: A Mulher Serpente.

– E, com vocês, a nossa Feiticeira. Segurem seus corações porque ela os arranca com os olhos. Que entre a Rainha de todos os Sonhos, a Mulher Serpente!

Surge então uma mulher alvíssima, alta, cabelos negros cacheados escorrendo abaixo da cintura, um par de olhos azuis incandescentes. Lindíssima! Ao som de Erótica (Madonna), vestida numa justíssima roupa de couro acinzentada e atravessada por decotes ousados, ela começou a dançar sinuosamente fitando cada um dos presentes no salão. Era hipnótica.

– Cara, o que é isso?! – Meio que exclama o Teixeirinha.

– É a Mulher Serpente, Teixe.

– Dante, finalmente sei o que é o Amor.

– Segura a onda, Teixeirinha.

– Cara, eu estou apaixonado.

– Você está é mamado, Teixe.

– Cara, o meu coração está naquele palco, eu tenho que ir lá pegar.

– Pô, Teixeirinha, fica quieto aí.

Minhas objeções não o impediram. Logo ele estaria postado à beira do palco com um olhar babão para a dançarina. Ela não demorou a perceber e sinalizou para ele subir. Aqui, chegamos ao clímax, amigo leitor.

O alucinado Teixeirinha estava no palco. A beldade o fez deitar no tablado e começou a despi-lo. A cada peça arrancada dele, ela também deixava cair uma. E foi neste ritmo que os dois alcançaram a nudez absoluta. Ela em pé sobre o meu embevecido amigo deitado entre suas pernas. O Teixeirinha parecia um bebê no berço, maravilhado com um móbile suspenso diante dos seus olhos. Ria sem jeito cobrindo os genitais. A galera presente foi ao delírio, ria e zoava numa verdadeira farra.  Agora, o Teixeirinha era a Estrela.

A Mulher Serpente saca uma garrafa de vinha e olha para o Teixe como se pedisse seu consentimento para algo que está por vir. Inicia um banho de vinho sobre o corpo inerte do nosso herói. Depois, agacha-se por cima dele e começa a lambê-lo por onde o vinho corria. Aplausos, gritos, assobios e o Teixeirinha rindo, rindo sem parar.  O show termina, ela cochicha algo no ouvido do nosso protagonista e ele vem ao meu encontro na mesa com um sorriso largo e ar de vitorioso.

– Vou precisar que você me empreste R$ X,00.

– Como é? Mas para quê? – Questiono.

– É o aluguel da suíte aqui em cima. Ela me convidou para ficarmos juntos.

– E o convite custa R$ X,00?

– Custa R$ X,00. Preciso dos seus R$ X,00 para inteirar os meus R$ X,00.

– Teixeirinha, você aloprou de vez!

– Nem pense em me negar isso, cara!

– Mas e o Carbonara com a sua namoradinha?

– Dante, a minha Gordinha perdeu a prioridade para este monumento.

– E como o monumento se chama? Você perguntou o nome?

– Não sei se devo falar. Você vai querer sacanear.

– Quer o dinheiro? Vai falando.

– Bebel Sucuri. Foi como que ela se apresentou.

– Bebel Sucuri?! Perdi até o tesão, Teixeirinha.

– Não importa o nome, o importante é a qualidade do produto.

Emprestei o dinheiro e o Teixeirinha desapareceu pelas escadas que levavam ao andar de cima do sobrado. Esperei por uma hora até que o avistasse descendo os degraus com um semblante de poucos amigos.

– O que houve, Teixe? Desembucha! Como foi o desempenho da garota?

– Cara, não teve desempenho de ninguém!

– Xiihh! Não acredito! Qual foi a merda que deu?

– Vamos sair daqui. No carro eu conto.

Dentro do carro, retomando a nossa Odisseia em busca da Ponte Rio – Niterói, o Teixeirinha passou a narrar o drama.

– Vai, me conta o que aconteceu, Teixe!

– Você nem vai acreditar…. Uma tragédia!

– Conta! Deixa de melodrama e conta.

– Vou resumir.

– Resuma.

– Chegamos à suíte, bonitinha até, tomei meu banho e deixei a Bebel no chuveiro. Voltei pra cama. Em cima de uma cômoda vi um potinho de creme, abri, cheirei, achei o aroma gostoso e resolvi esfregar um pouco no pau e no saco. Quis dar uma moral, deixar tudo cheirosinho pra gata.

– Mas e aí?

– Aí é que são elas. Assim que terminei de passar o creme comecei a sentir uma sensação estranha, uma dormência no saco.

– Peguei o pote novamente para ler o rótulo.

– E que creme era esse, Teixeirinha?

– Cara, era xilocaína. Meu pau não subiu nem com guindaste. Morreu! Morreu tudo!

– O que é isso, Teixeirinha? E como se resolveu com a Sucuri?

– Lá vem você querendo me sacanear. Não estou para isso! Falei que estava me sentindo mal, fiquei deitado por uma hora e saí fora.

– E o dinheiro?

Nem quis saber. Cara, eu estou inválido até agora por causa da merda da xilocaína e você vem me falar de dinheiro, porra! -O tom do depoimento era dramático, mas tive um acesso de risos que só terminou quando cheguei ao meu ansiado lar. Findava a Odisseia. Deitei exausto na cama e antes de fechar os olhos ainda pensei: o mundo é surreal!

Ariel

ARIEL

Insone crônico. Já perdi a conta do número de anos que padeço da dificuldade para dormir à noite, não é uma das experiências mais agradáveis perceber que o dia amanhece sabendo que ainda não cerrei os olhos. Não é fácil se acostumar a condição de vigília involuntária, já fiz tratamentos, consultei neurologista, até psiquiatra, mas nenhuma solução oferecida foi mais poderosa do que a minha resistência ao restaurador sono noturno. Nesta última sexta-feira, eu estava assim, desperto, inquieto, precisando atender à convocação das ruas, do céu cinza, da ameaça opressora da chuva. Esperei o temporal estiar, embarquei em um táxi e comuniquei o destino ao motorneiro.

— Camarada, me deixa na Rua Ceará.

Os pneus cortavam os bolsões d’água chiando como lobos no cio, enfrentaram os obstáculos aquáticos da Praça da Bandeira como bravos bandeirantes desbravando um território hostil. Quando alcançamos a esquina da rua Hilário Ribeiro com a Ceará, desembarquei. As nuvens voltaram a chorar com o volume de um temporal. Abri o guarda-chuva e fui atravessando os fluxos de correnteza que se formavam em direção à entrada da Vila Mimosa. Minhas botas encharcaram, as meias cuspiam a água de procedência suspeita, mas segui impávido, marchando firme sob os paralelepípedos do colosso da vida mundana.

Dezenas de copos de plástico boiavam sobre as sarjetas, camisinhas flutuantes giravam no desesperado balé das vidas sem sentido, rios artificiais se formavam com força do dilúvio, homens e mulheres de corpo ensopado passavam por mim procurando abrigo. Eu seguia indiferente, não buscava o sexo, mas caçava a exaustão que me trouxesse os sonhos do adormecer. O guarda-chuva não me protegia muito dos pingos graúdos que o vento lançava contra o meu rosto.

— Caralho. O que estou fazendo aqui? — um lampejo de juízo esbofeteou meu cérebro.

Penetrei no primeiro corredor da Zona, o chão alagado, um cheiro de fossa transpirava do piso, mulheres se amontoavam como se evitassem o contato com o ambiente insalubre. As adversidades enfrentadas até aquele momento não prometiam um desfecho promissor. Digo com sinceridade, afeiçoado leitor que me acompanha neste passeio, eu não fui ali para gozar, estava em fuga, talvez de mim mesmo. Rodei pelos dois corredores principais umas cinco vezes, não via nada que me interessasse. Minha libido estava pálida, apática. Se avaliarmos com honestidade, todos os relatos de fóruns são iguais, uma profusão de tédios que terminam no gozo ou na ausência dele. Somos máquinas narrando a produção industrial de espermas inúteis.

Uma voz de mulher me puxa do meu redemoinho mental.

— Vamos brincar hoje, tesão?

O convite saltava da boca carregada de batom de uma coroa loira que me soou familiar de outras eras da Vila. Os seios espremidos pela compressão de um decote precário alertavam que poderiam explodir a qualquer momento; com um brilho diabólico de quem conhecia a alma de todos os homens, os olhos verdes me encaravam aguardando resposta; os cabelos ruços da marafona estavam arrepiados como que desfeitos por uma ventania.

— Hoje não estou disposto para brincar, estou mais para um bater papo. Qual seu nome?

— Tá no lugar errado, né, tesão? Procura um padre — terminou o deboche com uma dessas gargalhadas de puta velha que devem ter ouvido na Central do Brasil — meu nome é Ariel.

A aparência carcomida pelo tempo não me despertava atração pela mulher, mas aceitei subir a uma alcova para receber o matador boquete sem camisinha que me prometeu. Ela pediu setenta reais, ofereci cem mangos para conversarmos um pouco e quebrar o gelo antes do ato. Aceitou e subimos a estreita escada em caracol da casa 21. A coroa me contou que mora em Santa Cruz, tem três filhos e um está preso em Bangu por roubo, que começou na vida com dezoito anos (tem 55) e ficará até quando der, que ainda faz um bom dinheiro. Parou de falar de repente, me olhou fixo e disse que eu tenho os olhos tristes. Desamarrou meu cinto, arriou a minha calça, sentou-me sobre o lençol puído da cama e abocanhou meu pau como se quisesse arrancá-lo pela raiz. Com movimentos de quem conhece a arte dos orgasmos, me fez gozar em dois minutos. Gozei forte, de olhos fechados, minha respiração transmitia o tufão pulmonar que me assolou. Quando abri os olhos, não havia mais ninguém na cabine, a coroa saiu em silêncio e me deixou só. Vesti a roupa, desci a escada tortuosa e ganhei a rua. Continuava a chover, não abri o guarda-chuva dessa vez, a água corria pelo meu rosto, invadia meu corpo, gelada, fria como a coroa que me chupou. Caminhei com as roupas alagadas até um ponto de táxi próximo à Mosaico.

— Me deixa na Praça Xavier de Brito, motorista.

Encostei a cabeça no vidro da janela e, por um instante, adormeci.

Alegria do Catete

ALEGRIA DO CATETE

Existem noites que são perpétuas, um libertino é forjado nessas noites intermináveis, atravessando a cidade, farejando feromônios, desejando o roçar de peles. Há uma fase da vida em que o Sol é um incômodo frio e a Lua uma carícia que arde. Foi uma dessas noites dos meados da década de 80 que descobri um lugar que me proporcionaria incontáveis encontros sexuais, descobri por ouvir falar, peguei o metrô, desembarquei no Largo do Machado, fui caminhando incerto pela Rua do Catete, perguntei num boteco se conheciam um forró naquelas redondezas, engoli um fogo paulista e encontrei o templo onde uma parte das minhas melhores noites se perpetuariam na memória.

Alegria do Catete, que nome poderia ser melhor para um forró, para um bate coxa, como chamavam na época. Instalado em um prédio baixo, onde até pouco tempo funcionava uma loja do Ponto Frio, na esquina da Rua do Catete com Buarque de Macedo. Quando entrei pela primeira vez, me deparei com uma multidão dançando ao som do triângulo e da sanfona, um mar de mulheres predominantemente nordestinas, homens que não negavam a origem simples. Atravessei o salão vestido de príncipe, denunciando para os olhos desconfiavam que me seguiam que aquele não era o meu habitat natural. No início senti algum desconforto, depois não mais me importei, percebi que a minha pompa no vestir e na postura é que me abriria um o harém onde eu me tornaria sultão por um bom período.

Eu não tinha carro, minha grana podia ser contada em poucas notas heroicas na carteira surrada, mas eu sabia me vestir, estava no auge da energia de um universitário bem nutrido, sabia me expressar com classe, começava a aprender a arte de seduzir e aquele forró seria a minha primeira grande escola, de sexo e de vida. Saía de casa, pegava o metrô empolgado, a testosterona explodia pelo meu corpo e eu não abandonava a arena sem antes conquistar uma fêmea qualquer do lugar. A volta se mostrava mais complicada, saía do forró com o céu refletindo os primeiros raios de luz, andava até a Praia do Flamengo e esperava algum ônibus que me levasse de volta à bucólica Tijuca. Muitas vezes enfrentei a solidão da madrugada esperando a condução, os perigos da cidade eram menores, mas a melancolia da dureza que me impedia de pegar um táxi sempre foi igual.

Sim, eu fui um tímido e os forrós me ajudaram a superar um pouco a trava do acanhamento. Às vezes eu intercalava a frequência nos forrós com idas a boate Circus no Leblon, dois mundos paralelos e heterogêneos. Na Circus, eu não pegava ninguém; no forró, me tornei rei. Havia ocasiões em que eu entrava no Alegria do Catete e mulheres colocavam bilhetinhos no meu bolso, me encaravam despudoradamente, ofereciam-se exibindo a libido devassa. Precisei eleger motéis próximos que coubessem no meu orçamento, encontrei o Alameda (na rua Cândido Mendes) e outro muito precário que havia na rua Bento Lisboa. Quando a minha carteira estava mais recheada, eu lambia os beiços no Hotel Único que ficava praticamente ao lado do forró.

No princípio, eu contava o número de mulheres que comia, foi quando iniciei minha coleção de coitos até perder a conta. Não demorei para conhecer mais dois forrós que fariam das minhas noites de fim de semana um campo de caça farto de lebres. Os forrós me fizeram homem, já que eu não recebia grandes patrocínios da família, sempre precisei apelar para a minha criatividade, meu espírito de aventura e minha ausência de preconceitos. Jovem, eu possuía uma disposição inabalável, varava madrugadas seguidas, chegava em casa com o sol no rosto, me viciei na arte de amar.

Outros tempos… Fui uma espécie de Indiana Jones libertino, durante o dia eu explorava sebos atrás de toda espécie de livros; à noite, rompia becos e penumbras atrás de qualquer tipo de mulher que eu pudesse tentar conquistar e levar para a cama. Na década de 90 surgiu o forró do Asa Branca, na Lapa, minha existência ainda se equilibrava com pouco dinheiro, não era incomum me postar na porta do local para pegar um dos ingressos gratuitos que eles distribuíram, eu precisava economizar de todas as maneiras para conseguir consumar o sexo com alguma mulher que eu conhecesse. 

Que infinidade de mulheres eu provei numa época em que as putas não me eram acessíveis. A dureza me fez desenvolver a criatividade que me permitiu curtir a vida mesmo diante das limitações de grana. Aprendi a ser simples sentindo minhas pernas cansarem no meio-fio enquanto aguardava a esperança de uma condução, sacudindo em ônibus pelas madrugadas, comendo empregadas domésticas e me apaixonando por elas, percebendo que ter dinheiro é bom, mas não ter estimula o cérebro. De lá para cá, envelheci, mas não é tão ruim envelhecer, o ruim é testemunhar um mundo que envelhece mal, mas ao mesmo tempo constatar que os fóruns permanecem com a mesma infantilidade desde os primórdios em que escrevi a primeira frase no primeiro

A mulher do Diabo

A MULHER DO DIABO

Noite chuvosa de terça-feira, o relógio estava prestes a anunciar chegada da meia noite, não havia sono, foi quando convoquei o Sucatão e varamos a garagem para romper o asfalto molhado e nebuloso da Tijuca. Ruas vazias, uma garoa fina que insistia em ofuscar o para-brisa, nada indicava ser uma boa oportunidade para se buscar um momento de luxúria.

O horário avançado inviabilizava o sexo de cativeiro nas nossas conhecidas jaulinhas que chamamos de Termas, elas já estariam trancadas ou fechando naquela altura. Também não seria conveniente ligar para alguma das Mulheres-Pizza ou trepada delivery: as Frees, como nós conhecemos.

Para buscar o gozo quente naquela madrugada fria seria preciso me aventurar. Pense, leitor sem fé: o que é o sexo sem o tempero da aventura? O prazer repetitivo e sem emoção é quase como levarmos o pau para autenticar num Cartório.

Sim. Era melhor que aquela noite estivesse oculta sob a seda do imprevisível. Um Libertino escolhe ser libertino justamente por nutrir aversão ao tédio obeso e bolorento daquilo que já se conhece. Mas atente, meu devasso amigo, nem todo imprevisto significa ventura e nem toda empreitada nos rende um troféu.

Atravessamos a Presidente Vargas como num rali pelo deserto; ganhamos a Rio Branco, uma cidade fantasma; finalmente alcançamos a Ilha de Neon, penetramos na Lapa. Vila Mimosa, Lapa e Copacabana, os três únicos Reinos onde um Libertino pode encontrar páginas em branco para escrever suas letras épicas na alta madrugada.

Os faróis do Sucatão iam rasgando o negrume do piche correndo sob os pneus, meus olhos giravam em busca de alguma presa desgarrada pelas sarjetas. Cruzamos a Mem de Sá até a Rua do Senado, foi quando avistei a dupla: uma loira e uma mulata esboçando poses de me leva. Desacelerei o motor do meu combalido carro e aportei próximo à calçada, onde as duas vampes estavam estacionadas.

A mulata era fabulosa! Encaixada num vestido tubinho branco, bem justo; pernas grossas; cabelos alisados que despencavam pelas costas; a bunda em forma de colina; seios pequenos; barriguinha zero; lábios carnudos. A mulher pingava sexo quando andava.

A loira era apagada, sem que eu tenha necessidade de me estender mais na descrição.

— Gostei de você! Qual o seu nome? – Perguntei à mulata.

— Você vai foder com o nome, Gostoso? – Resposta à queima-roupa.

— É verdade, o nome não faz diferença. Mas você manda bem na cama?

— Você não perguntou meu nome? Sabe como me chamam? A Mulher do Diabo. Pergunta para ela? – Afirma ao mesmo tempo em que aponta para a amiga.

Responda-me, velho companheiro de tantas jornadas incrédulas, meu amigo leitor sem fé, do que mais eu precisaria para convidá-la a entrar no automóvel?

Partimos para a Glória, me decidi por um Motel na Rua Cândido Mendes, um antigo refúgio nas minhas fugas noturnas. Durante o percurso, a Mulher do Diabo ia apertando meu membro como se quisesse espremer um suco, não vou dizer que estava confortável, meu saco começava a ficar dolorido, mas aquele ímpeto de esmagar minhas bolas pelo menos revelava a empolgação da menina. Se os meus genitais sobrevivessem, o encontro prometia ser quente.

Segui suas instruções sobre o valor da doação que eu deveria oferecer, ficaríamos uma hora juntos, aceitei. Pedi um dos cubículos baratos do matadouro. Ao entrarmos no quarto somos recepcionados pelo cheiro festivo do mofo, algo comum nas alcovas do estabelecimento que escolhi.

A mulata não perde tempo, me imprensa no espelho da parede, me dá um nó de coxas e intimida:

— Gostoso, o pagamento é adiantado.

Concordo com a dedução do colega que me lê. Enviar mensagem de cobrança quando a febre começa a nos fazer superar a gravidade é algo brochante, mas era um direito dela. Não reclamei, paguei.

A menina ligou a TV, que deixou muda, depois ligou o rádio, colocando o volume nas alturas. Perguntei novamente pelo seu nome e ela respondeu que mesmo se dissesse um, seria falso. Portanto, não faria diferença dizer ou não dizer. Desisti. Fui para o banheiro, tranquei a porta, tirei a roupa e entrei no banho. Do lado de fora, o flashback de motel rolava solto e eu escutava uma voz esganiçada tentando acompanhar as músicas estrangeiras num idioleto desconhecido.

Terminei a ducha. Eu estava excitado com a ideia de abater aquela negra colossal. Enxugada rápida, enrolei a toalha no corpo e me precipitei para abrir a porta do banheiro. Não abriu. Rodei a chave outra vez. Nada. Forcei a maçaneta. Não abria. A ansiedade foi tomando conta. Sacudi novamente a maçaneta e dei umas pancadas na chave. Trancado por dentro! A claustrofobia começava a me fazer transpirar. Chamei a Mulher do Diabo e ela tentou me libertar por fora. A porta não se movia, era um tronco de madeira enraizado e fortificado entre mim e o orgasmo desejado.

Diante da frustração, sugeri que ela fosse pedir ajuda na recepção. Eu mal a escutei se vestindo, o som do rádio estava programado para aniquilar tímpanos. Só consegui ouvir a porta do quarto se fechando quando ela saiu para buscar auxílio. Fiquei de pé, escorado à porta, aguardando… Depois de vinte minutos de espera, desconfiei. Quarenta minutos se passaram e perdi a esperança. Soquei a porta. Gritei pelo basculante que eu estava preso no banheiro. Absolutamente nada! O quarto parecia envolvido num isolante acústico, a única coisa que se ouvia era o rádio estourando as paradas de sucesso do tempo do onça.

Sentei na privada e fiz um exercício de respiração para evitar o pânico. Minha certeza era imaginar que a piranha da Mulher do Diabo aproveitou-se da minha prisão involuntária para fugir com o cachê.

Talvez, por um nervosismo causado pela insólita situação, talvez pela falta do que fazer, eu senti vontade de defecar. Abri a tampa da latrina e caguei pensando nas pessoas das quais eu não gostava. Que passatempo maravilhoso! Limpei o intestino e a alma. Isso me ajudou a ficar mais calmo.

Um dos momentos mais comoventes da noite foi quando começou a tocar Sol de Primavera, do Beto Guedes. Lembrei das minhas paixões de outrora, da minha infância e até de alguns campeonatos de bolinha de gude que participei quando criança. O banheiro é realmente um lugar propício à meditação.

Mais de três horas se passaram…. Eu quase adormecia sentado no vaso sanitário, foi quando escutei alguém entrando no aposento. Corri para bater na porta, usei minhas últimas energias para pedir socorro. Uma voz idosa identificou-se como arrumadeira e foi chamar o gerente.

Logo escutei a voz de dois homens que me pediram paciência, iriam dar um jeito.

Aproveitei para vestir a roupa. Meia hora depois a porta se abria. Abracei, emocionado, os meus salvadores. O gerente me disse para ficar à vontade, me cobraria apenas o período, se desculpou pelo ocorrido. Revelou que estranhou quando viu a Mulher do Diabo saiu sozinha do motel, mas não quis incomodar.

Antes de me despedir, ajeitei meus cabelos, conferi meus pertences e ainda pude ouvir vazar pelos alto-falantes da alcova um som do passado, que brotava junto com as primeiras luzes do dia. Era o Eduardo Dusek cantando Nostradamus.

A loira do Tinder

A LOIRA DO TINDER

Meu lábio superior começou a tremer involuntariamente, eu não conseguia controlá-lo enquanto via o vulto se aproximar de mim em passos lentos e firmes. Farei aqui uma pausa para contar a história desde o início.

Fevereiro foi um mês de decepções pessoais imensas para mim, nessas ocasiões sempre me sinto empurrado para o doce abismo da caça sexual. Como já contei, não gosto muito do sexo no esquema delivery, esta coisa de chamar pelo zap para agendar o sexo pago. Sempre necessitei do tempero da adrenalina, do mistério que envolve um encontro.

Tudo aconteceu a partir de um match no Tinder, ela me passou o whatsapp, eu chamei e começamos a nos falar. Laura é o seu nome, suas fotos não eram nítidas, mesmo aquelas que me enviou, não conseguia ver o rosto, mas o corpo me pareceu interessante. Conversamos durante uma semana inteira antes de finalmente marcarmos o encontro, senti a menina muito curiosa por me conhecer, repetia que apreciava homens inteligentes, tento não me envaidecer. Saímos das limitações do zap e nos falamos diretamente ao telefone, ela tinha uma voz envolvente, sexy. Toda essa situação nos excitava.

Como ela não revelou o rosto, a minha insegurança sobre a aparência de Laura se mantinha. Disse morar no Meier, na rua Dias da Cruz, mencionou trabalhar como modelo fotográfico (detalhe que atiçou ainda mais a minha curiosidade) e que não exibia o rosto para evitar exposição desnecessária, garantiu ser bonita. Acertamos nos encontrar à noite, num dia útil da semana. O local seria o próprio Meier, ficava melhor para ela, na esquina da Travessa Miracema.

Na década de 90, funcionava um bordel de luxo na tal Travessa, chamava-se Termas 2001, uma espécie de Centaurus da Zona Norte. A lembrança desse fato não me pareceu um bom sinal, mas eu estava motivado, a garota realmente me despertou o interesse. Apesar de estar evitando dirigir, minha visão à noite não é mais a mesma, sacudi o Sucatão da garagem, acionei o motor adormecido e mergulhei no negrume do asfalto.

Quando embico na 24 de maio, saindo da rua Barão do Bom Retiro, encaixo um CD no aparelho e o som de Radiohead toma a cabine do carro de assalto…

Aquela melodia teve o efeito de uma porrada no meu peito, lançou-me para trás no tempo de uma forma tão brusca que quase perdi o foco na direção do automóvel. Era perto das oito da noite, mas a pista fluía no ritmo suave de um rio descompromissado com o destino.

Sucatão seguia em velocidade de cruzeiro, ladeando as margens castigadas da linha do trem, até dobrarmos à esquerda na rua Dias da Cruz, a Travessa Miracema fica logo no começo, dobrei a direita e estacionei. Pisei com minhas botas naquele território que há tento tempo parei de frequentar, olhei para a direção onde ficava o antigo bordel e nada mais existe ali, fora as lembranças remotas e os fantasmas que emergem das boas memórias.

Posicionei-me na esquina combinada, enviei mensagem avisando sobre a minha chegada. Não demorou, logo avistei uma loira alta, vestida em um macacão branco, cabelos compridos, escorridos e soltos, uma mulher absurda de linda. É verdade, ela só podia ser modelo fotográfica, sua imagem tinha a força de uma explosão nuclear, de um abalo sísmico. Meu aparelho auditivo sincronizou com o meu celular e obrigou os meus ouvidos a vibrarem com uma das minhas músicas pré-programadas.

A música, aquele vulto de um dourado reluzente se aproximando, meu lábio superior começou a tremer involuntariamente, eu não conseguia controlar. Minhas pernas bambearam, não esperavam esbarrar com aquela fêmea descomunal, um match do Tinder… Fiquei ali, esperando que ela chegasse diante de mim, com a sensação de quem estava com a cabeça aguardando a queda da guilhotina. Velho, barrigudinho, imaginei que ela passaria direto, me ignorando. Sinceramente, eu teria ficado aliviado caso ela escolhesse essa opção.

— Você é o Dante? — ela questionou assim que quase colou o corpo no meu.

— Sou, sou, sou eu. Sou o Dante — por pouco, não gaguejei.

— Mesmo com a sua foto, eu te imaginava diferente.

— Eu também — retruquei.

— Melhor ou pior?

— Laura, você é um assombro de linda.

Sugeri que fôssemos dar uma volta de carro, perguntei se ela topava beber um chope na Urca. Aceitou. Entramos no Sucatão, virei a chave e os pneus deslizaram pelo asfalto morno do subúrbio. No meu som, INXS nos brindou com os acordes de Disappear.

Subitamente, quando engato a quarta marcha, Laura põe uma das mãos na minha perna direita. Acredite, forista sem fé, quase tive uma ejaculação precoce. Ela foi puxando assunto, perguntou sobre como tinha sido o meu dia, o meu trabalho, eu me sentia tão intimidado pela sua escandalosa beleza que respondia em monossílabos. Falou sobre o trabalho de modelo, das fotos que faz para anúncios e lojas, da faculdade de Biomedicina que está concluindo.

— Qual sua idade? — perguntei.

— Vinte e cinco e você?

— Sou velho. Não digo a minha idade, pois irei me sentir ainda mais velho se disser.

Laura riu, um riso contido. A mulher, além de linda, possuía um charme espontâneo. Na Urca, sugeri que parássemos em frente a Praia Vermelha, ela gostou da ideia. Estaciono o Sucatão, giro o pescoço para admirá-la e nos beijamos. Foi um beijo faminto, enlevado por uma libido selvagem, nossos lábios disputavam para ver quem engolia quem.

Enquanto nossas línguas se enroscavam, ousei, passei mão sobre um dos seus seios, Laura emitiu um gemido baixinho, jogou a mão sobre o meu combalido pênis. Ousei mais, enfiei a mão sob o macacão e senti a textura da pele dos seus peitos duros, bicudinhos. Ela não fez menção de censurar. O carro queimava, nossos corpos quase em chamas, mas nos agarrávamos mais, nos sarrávamos mais. Eu estava próximo de outra ameaça de ejaculação precoce, lancei meus pensamentos para temas aleatórios, pensei no zoológico, na Quinta da Boa Vista, no incêndio do Museu Nacional. Resisti, mas resistir é inútil, já nos ensinavam os Borgs de Star Trek.

Minha playlist nos envolveu com One, do U2.

— Adoro U2 — ela interrompe o amasso para me confessar sua preferência.

Laura começou a tentar soltar meu cinto, forçar minha calça, ela queria me abocanhar. Transtornado e estabanado, quase tirei a calça pela cabeça. Libertei Pikachu e a garota o abocanhou como se fosse o último pênis do planeta Terra (que tragédia se fosse).

O escritor mais talentoso em qualquer língua não conseguira descrever o boquete de Laura. Ela passava a língua desde a raiz do saco até a cabeça do pênis. Lambia como se chupasse um sorvete. De repente, engolia o pau inteiro e apertava com delicadeza os meus testículos. Eu pressenti que a qualquer momento ia me autoejetar do carro de tanto tesão. Tentei inutilmente fazê-la interromper o boquete, a garota não chupava para agradar, ela gosta, gosta demais.

Com a boca no meu pênis, ela desbotoou a parte de cima do macacão e permitiu que seus seios escapassem. Duas esferas perfeitas com bicos rosados em que ela esfregou meu pau enquanto o devorava. Eu tentei, tentei, porém, não consegui mais. Gozei as entranhas na garganta da menina, ela engolia a minha seiva como quem executa um ritual diabólico. Os vidros do Sucatão embaçados, o oxigênio se esvaiu da cabine, eu precisava respirar.

Recompostos, fomos andar próximo à areia. Ela de mãos dadas comigo. Inebriado, enlouquecido, não conseguia parar de contemplar aquela beldade. O cheiro do mar, as palmeiras, a visão do oceano. Sim, eu poderia me apaixonar por aquela mulher. Infelizmente, no mundo libertino nada é perfeito e eu sempre costumo crer que o meu celibato não é uma opção, mas uma imposição do destino.

Laura me contou que tem namorado, mas que curte encontros casuais, que o parceiro sabe e que praticam o poliamor, um nome moderno para a poligamia. Gentil, afirmou que gostou de mim, que nos veríamos de novo, mas não acredito que aconteça. Retornamos ao Meier, ela desembarcou no ponto em que a encontrei, nos despedimos com um beijo feroz que arranhou nossas línguas.

Antes de nos despedirmos, perguntou se eu poderia dar um “presentinho”, para dar uma força. Eu hipotecaria o meu chalé na bucólica Tijuca por ela. Dei o que eu tinha na carteira e ela partiu.

Manobro o Sucatão, acelero, ligo o som e a cabine afoga-se na voz de Tina Turner com Golden Eye

Os pneus do Sucatão dançavam rasgando a penumbra das luzes de vapor de mercúrio no retorno à bucólica Tijuca. Meu nome? Dante, me chamo Dante. E a partir de agora, qualquer aventura é possível.

A dança da enguia

A DANÇA DA ENGUIA

Era uma sexta-feira do mês de dezembro, um fim de tarde muito quente no Rio e a sensação de calor convidava para uma noite de novas aventuras. Como de hábito, eu e meu sócio da night, o Teixeirinha, marcamos o nosso tradicional chope de final de ano. Era uma data ímpar: iríamos comemorar 15 anos de uma sólida amizade e, por isso, haveria também uma esticada a um dos nossos points prediletos onde pretendíamos romper a madrugada.

Marcamos de nos encontrar pelas 19h30 próximo ao Mourisco, em Botafogo. Uma das marcantes características do Teixeirinha é a impontualidade, portanto, ele só chegou às 20h, mas eu já estava lá, pacientemente, esperando. Apareceu todo eufórico, segurando uma embalagem numa das mãos. Quando se aproximou, vi que se tratava de um LP. O Teixeirinha tinha dessas coisas, virou colecionador de LPs somente quando pararam de fabricar LPs. Foi logo anunciando com a voz grave de tom meio nasalado:

— Encontrei, cara! Encontrei! O LP do Michael Jackson. Thriller! Mais um pra coleção!

Ele estava bastante empolgado com o novo item para aquela o seu acervo jurássico.

Estávamos os dois sem carro nesse dia e sugeri que pegássemos um táxi para fazermos uma boquinha no Rio Sul, perto dali. O Teixeirinha topou de imediato, mas achou que estava cedo e pediu para irmos caminhando, atravessando a pé o Túnel do Pasmado. Não entendi muito bem o objetivo da caminhada, mas lá fomos nós…

Quando alcançamos, mais ou menos, o meio do túnel, o Teixeirinha pisou em falso numa das lajotas do piso, que quebrou na hora e criou uma fenda onde ele caiu em pé, cravando as duas pernas no buraco. Começou a afundar lentamente, como se estivesse em areia movediça. Quando vi, a cabeça dele já estava na altura do meu joelho.

Imediatamente, tentei segurar o braço do meu amigo para tentar resgatá-lo daquele atoleiro, mas o Teixeirinha é daquele tipo que quando fica nervoso quase beira o histerismo. Quando agarrei seu braço, ele passou a agitar convulsivamente sobre a cabeça o LP que tinha nas mãos e, ao mesmo tempo, gritava:

— Salva o Michael Salva o Michael Primeiro salva o Michael!

Fez-se a ocorrência surrealista, no meio do Pasmado, onde eu decidia se deveria salvar primeiro o Michael Jackson ou o Teixeirinha. No final, consegui resgatar os dois e poupá-los de serem tragados pelo Túnel movediço.

Conseguimos chegar ao Rio Sul, jantamos e partimos para Copacabana, onde tomaríamos nosso chope.

Paramos num pé-sujo ali na Miguel Lemos e começamos nosso ritual de chapar. Lá pelas 23h30 traçamos que iríamos entrar na Help, o local mais próximo de onde estávamos.

Fim de ano, a Help estava abarrotada. Muitas mulheres e uma grande diversidade de gringos. O Teixeirinha, que já estava para lá de Marrakesh, era só felicidade. Ficava o tempo todo falando em inglês, tentando se passar por americano, achando que assim teria mais atenção. Eu, que às sextas-feiras, me fantasiava de executivo, num terno e gravata, porque julgava que me conferia mais moral sair assim, não havia mais poros para suar, o calor me massacrava.

Pelas 2h da madruga, outro acontecimento. Estávamos bebendo numa das extremidades do salão, quando surge do meio da pista de dança uma morena exuberante: cabelos compridos, um vestido preto justo, alta e bem charmosa. Ela mirou direto o Teixeirinha e parecia estar vindo lentamente em sua direção, vinha dançando e não desviava os olhos dele. Quando me virei para o rosto do Teixeirinha, querendo saber se ele tinha percebido, o sujeito estava apoplético e sem reação. De repente, se manifestou com a frase que ficaria registrada para sempre em nossos arquivos:

— Que isso, cara! Olha a mulher que tá vindo aí fazendo a dança da enguia! – Exclamou. 

E era verdade, a menina vinha num tal contorcionismo que faria inveja a muita Odalisca profissional. Como eu já estava explodindo em risos, resolvi me afastar e acompanhar o episódio a uma distância segura. O Teixeirinha começar a dançar, indo ao encontro da garota e imitando a mesma coreografia erótica que havia batizado como dança da enguia.

O meu parceiro se torcia em movimentos sofríveis de um corpo bêbado que já năo respondia pela integridade da sua coordenação motora. Mas o Teixeirinha se esforçava, num heroísmo suicida, tentando impressionar a garota que também continuava a se lançar insinuante.

De repente, perdi o Teixeirinha de vista! Ele desapareceu! Forcei a vista na procura e nada… A garota continuava dançando, mas cadê o Teixeirinha? Comecei a notar que se abria uma clareira na pista de dança e pensei logo: “Deu merda! ”

Corri em à pista e encontrei o Teixeirinha, estatelado no chão, cercado de gringos que tentavam ajudá-lo, ele gemia alto e ainda tentava explicar:

— Porra! É cãibra! Cãibra! Eu não sei falar essa porra em inglês, mas é căaaaibra! – Lastimava-se o meu camarada. 

Tive que chamar um dos seguranças para me ajudar a erguer o Teixeirinha, ele não se levantar de jeito nenhum, alegava que a gravidade era mais forte do que ele.

Terminamos numa mesinha do Bob’s, devorando saborosos sanduíches e sorrindo para o borbulhar das ondas que acariciavam as areias da praia.

Cest La vie!

A pombagira

A POMBAJIRA

A POMBAJIRA

Para ser livre é preciso fracassar! Não me tome como insano, pois se lhe revelo uma das minhas maiores iluminações, o faço por ter sido eu próprio a cobaia de onde brotou essa sentença.

Qualquer êxito, por mínimo que seja, transforma o bem-sucedido em servo de uma prepotente implacável: a vaidade. Conquistar o sucesso é iniciar um ciclo de escravidão.

Aos 48 anos, eu não tinha problemas por ter trabalhado pouco, não me envergonhava por não haver construído nada com o suor do meu rosto; não me incomodava viver confortavelmente, graças a uma gorda parcela da pensão de minha mãe, viúva generosa de um militar falecido; menos ainda me constrangia o fato de me abrigar sob a asa materna, num amplo apartamento em Santa Teresa, próximo ao Largo das Neves. A despreocupação da cigarra é sempre muito mais saborosa do que a rotina gananciosa das formigas.

Em certa altura, para disfarçar minha sina de desocupado, convenci minha genitora a me comprar um táxi. Eu deixava de ser um vagabundo oficial para me tornar um malandro com álibi. A vizinhança ficou satisfeita, minha mãe mostrou-se orgulhosa e eu podia desfilar num carrão amarelo, mais afeito a transportar libertinas à passageiros que me remunerassem.

Com o fluir dos dias e a verdade inevitável que emerge de cada alvorecer, a vizinhança alcoviteira apercebeu-se de que eu não me tornara um regenerado da esbórnia ou um ex-boêmio catequizado. Continuava, mais do que nunca, o mesmo hedonista que afrontava o moralismo dos hábitos pequeno-burgueses. Por se sentirem ludibriados, passaram a maldizer meu táxi divulgando que ele possuía dois bigorrilhos, um que ficava sobre o teto do carro e outro que se postava atrás do volante. Infames! Mas eu desprezava essas pequenas vilezas, o que realmente me importava era abraçar os prazeres que nos proporcionam sorver as delícias do tempo presente.

Fiz-me um notívago. O Sol embalava meu sono e a Lua era a musa da minha adoração. Eu apreciava ver o dia apagar da janela do meu apartamento, o prédio se debruçava sobre um abismo que abria a vista para o Centro e parte da zona norte. As sombras começavam a exibir pequenos diamantes, pontos de luz que se derramavam por vales e montanhas. O anoitecer é uma metamorfose. Eu acendia um cigarro e o consumia em breves tragos enquanto contemplava o desabrochar daquela imensa mariposa: a Noite.

A felicidade não é um momento esparso, tampouco é uma busca interminável que devemos trilhar. A felicidade é apenas uma frequência captada quando nos sintonizamos ao que nos rodeia.

Debaixo de um céu estrelado, entro no carro, ligo o rádio, seleciono uma estação para encontrar a música que me servirá como anfetamina e alimentará o meu entusiasmo. Uma batida sexy invade a cabine do automóvel. Acelero, antes de engatar a marcha, ouço o motor vibrando, recolho a âncora e começo a navegar pelo negrume do asfalto.

Conheci Selene no baixo meretrício, a Vila Mimosa, uma menina de 21 anos, menos da metade da minha idade. Ela guardava uma eletricidade que me fascinava, além de ser uma negra bonita, de porte vistoso. Já no primeiro encontro, tivemos aquela afinidade que é fatal para os instintos, a simpatia da pele.

Eu, que era acostumado ao clima claustrofóbico dos bordéis do Centro da Cidade, fui esbarrar com a Vila Mimosa somente durante o ofício de taxista, ao levar dois nordestinos que me indicaram o caminho da Zona boêmia. Confesso que a primeira impressão que tive, ao atravessar um pequeno arco sob os trilhos da linha de trem que margeia a Praça da Bandeira, foi a de estar penetrando num lugar macabro. 

As ruas são penumbrosas e a paisagem é devastada até alcançarmos o miolo, onde tudo se parece com uma grande festa junina, é a jubilação da luxúria. Constatei que não fui eu quem conduziu os nordestinos, eles é que me arrancaram do tédio arrogante dos que não acreditam haver mais nada para descobrir. Havia a Vila Mimosa e o meu amor por ela foi brutal, desmedido!

Selene senta-se no banco do carona e não espera que eu respire para me dizer que desejava conhecer uma boate de swing naquela noite. O Rio, como toda metrópole decadente, abriga suas alcovas de devassidão. O swing, que é a prática da troca de casais, se transformou em febre entre os libertinos. Eu, que nunca me neguei à lascívia, aceitei o convite.

— Então vamos logo que hoje estou com a Pombagira! — a afirmação de Selene antecipava uma transfiguração quase literal. Durante a madrugada, eu enfrentaria a Pombagira.

Estamos em 2008, percorrer o Rio nas altas horas noturnas era navegar por uma cidade deserta, escura, os burburinhos de vida se manifestavam em ilhas esparsas e raras. A atmosfera era composta por ares que comungavam selvageria e medo. A Cidade Maravilhosa se tornara sinônimo de uma aventura perigosa e opressora.

A boate escolhida por Selene localizava-se no Centro, perto ao desamparado Campo de Santana, em frente à casa onde nasceu o Barão do Rio Branco.

Ao chegar, atravessamos uma pequena recepção, recebi uma cartela para registrar nosso consumo e a chave de um armário onde guardamos nossos pertences. Subimos uma longa escada e desembocamos num salão espaçoso. Um telão suspenso exibia clipes musicais. Em torno da pista de dança, estendia-se um prolongado sofá onde as pessoas sentadas entreolhavam-se como quem avalia a qualidade das carnes na vitrine de um açougue.

Talvez, tenha sido a bebida a responsável pela transformação. Ao final da noite, eu e ela havíamos, cada um, alcançado cinco doses de vodca com Red Bull.

Selene levanta-se e me puxa pela mão na direção a uma pequena fenda, entramos. Não havia luz, era um complexo de corredores confusos, penumbrosos, um labirinto. Pelo caminho, era possível perceber a presença de casais embolados num nó cego de braços e pernas, entregues ao mais absoluto bacanal.

Ela me viu e me chamou. Estava cercada por um cinturão de homens e mulheres, totalmente nua, possuída pela Pombajira e pela loucura da orgia. Uma serial killer do sexo! Aquela visão me intimidou, me acanhou. Eu, que sempre me considerei um desregrado sem fronteiras, me senti afrontado diante daquela volúpia coletiva. Bastaram poucos segundos para que eu abandonasse a máscara do libertino e me assumisse um pudico.

Como não me movi, ela me apontou e gritou para a turba orgíaca que eu era o seu namorado, foi o que bastou para que a embolada humana começasse a se arrastar em minha direção num alvoroço de mãos e braços formando os tentáculos de uma gigantesca Medusa erótica. Aos trancos e barrancos, driblei o polvo pervertido e resgatei Selene daquele estupro voluntário, ela cedeu a contragosto.

Voltamos para a pista e um funk embalava os corpos, todos tomados por um espírito desregrado. Selene, tal qual uma serpente encantada pela flauta indiana, iniciou uma dança em que se agachava e se empinava, simulando ondulações provocantes. Eu me mantive estático, impassível, apático. O clima devasso não me contagiou. Aborrecida com a minha frieza, ela pediu para ir embora.

Tento explicar a Selene que cada um possui seus limites, mas percebi que eu tentava era justificar para mim mesmo a minha fuga. As novas gerações já nascem com o vírus da depravação inoculado nos genes.

Entro no carro, giro a chave na ignição, piso no acelerador sem engatar a marcha, ouço o grito feroz do motor, ligo o rádio e deixo a música inundar a cabine. Provo a boca da mulata ninfomaníaca que serpenteia ao embalo do som.

O refrão estrangeiro se repetia através dos alto-falantes: “Set me free”.

Uma gargalhada estridente vaza do automóvel, deve ter reverberado como eco na Central do Brasil, era a Pombagira se despedindo. Eu havia sobrevivido! Mas a noite nunca tem fim. Solto as amarras e os pneus ganham o asfalto, meu oceano.

Meu nome? Podem me chamar de Dante.

A fera camuflada

A FERA CAMUFLADA

Aos quarenta e cinco anos, ele ganhara a aparência de um homem distinto. Fazia uma década que havia constituído família, esposa e uma filha que amava imensamente. 

Mantinha uma rota rigorosa entre o escritório de advocacia, no Centro da cidade, e sua residência no Largo do Machado. Recusava os constantes convites de colegas e clientes para beber e confraternizar nos animados bares da Praça XV. Foi seguindo uma disciplina austera, mantida por muitas regras e mandamentos, que conseguiu escapar da Fera que o perseguia desde os primórdios da sua adolescência. Preferia nunca negligenciar a vigilância. Tinha medo do Animal e o pressentia espreitando em cada esquina sombria. 

Ao descer do prédio onde trabalhava, na Rua México, firmava os passos em direção ao Metrô. Evitava olhar os painéis de néon porque eles representavam perigo. Luzes noturnas encantavam a Fera.

Não ouvia música, não ingeria bebidas alcoólicas, repudiava conversas informais com mulheres. Na missa dos domingos, agradecia a concessão da sua apática existência. Entretanto, sabia que o Animal o estudava e tramava com cruel paciência, numa tocaia incansável. Mas ele não descuidava, não esquecia da Fera camuflada.

Entrava em casa, abraçava sua mulher, afagava a filha, respirava a atmosfera segura do seu apartamento, orgulhava-se por continuar ludibriando o monstro. Tomava o banho frio de todos os dias, jantava, assistia o noticiário da TV, beijava fraternalmente a esposa, deitava-se e dormia.

Havia noites em que a Fera dominava seus sonhos, manipulava seus pensamentos. Ele acordava suado, possuído por uma incontida ansiedade. Erguia-se, tomava outro banho, sua esposa tentava acalmá-lo, o acariciava, lembrava-lhe que era somente um pesadelo. Por solidariedade, faziam o sexo contaminado pelo mofo do hábito. Sua inquietude aplacava-se, ele adormecia.

Às sete horas da manhã o despertador tocava, mas ele permanecia preguiçoso na cama. Sua companheira apressava-se para preparar o café. Lentamente, ele realizava seu asseio matinal. Depois, sentava-se à mesa, ligava a televisão para saber das primeiras notícias, trocava umas poucas palavras com a mulher, comia seu pão aquecido, refletia entre os goles do café misturado ao leite e saía para o trabalho.

A parte da manhã era o período em que relaxava, não existia a suspeita da Fera, ele não a sentia nas primeiras horas da sua rotina. O animal não gostava do alvorecer.

Um expediente agitado, era o que ele rogava antes de chegar ao escritório. O corre-corre espantava o chacal, o guardava a uma segura distância. Burocracias, protocolos e a adrenalina de um dia produtivo eram a alvenaria que constituíam a sua fortaleza. 

Seu cotidiano cinza eram movimentos de uma sinfonia monótona e monofônica, mantinha entorpecida a Fera que o rondava. Mas a fome engendra o ataque e o instinto trapaceia a razão.

Naquela noite, ao sair do escritório, seu roteiro narcotizante seria corrompido por um vírus letal a qualquer mecanicismo: o imprevisível. 

Marchava reto em direção ao Metrô, concentrando-se na própria respiração, mas o seu silêncio interior foi rachado por uma voz grave e rouca chamando seu nome. Era um senhor que prestava serviços de contínuo no escritório e que o tratava com paternal simpatia. O idoso o agarrou pelo braço, contou que aniversariava e, com um sorriso suplicante, o convidou para se sentarem juntos por alguns minutos num botequim próximo. Ele tentou recusar, mas o senhor insistiu explicando que morava só e não desejava passar em branco aquela data. Contrariado, porém, tocado pela solidão do velho, aceitou o convite. 

Quando deu por si, brindava constrangido aos 65 anos daquele homem. Cada tulipa que era colocada à mesa fazia escorrer pela garganta o chope gelado que rompia, como foice, a teia secular que abafava a sua fala. De repente, o mundo tomou cor como um ressuscitado, as luzes brilharam quase ofuscantes e ele escutou a própria voz. Todo o seu corpo estalava, como se voltasse de uma letargia involuntária. Riu de si mesmo.

Abraçados, deixaram o bar, ele e o velho. Juntos, entraram num táxi e foram até a Praça Mauá. Conduziu o idoso até um sobrado da Rua do Acre, onde o mesmo morava. Num caminhar tortuoso e incerto, prosseguiu a jornada, até subir os degraus de um inferninho que avistou no trajeto.

Música alta, fumaça de cigarro, mulheres seminuas, cheiro de lascívia. 

Uma ruiva bonita se aproximou com as curvas expostas por um minúsculo biquíni. Ela pergunta seu nome, apoia-se em seu corpo, beija sua boca. Ele sente uma fisgada, foi como se afrouxassem, subitamente, um torniquete. O sangue represado voltou a circular por todas as suas veias esclerosadas pelo tédio. Ele a abraça com ânsia, sente uma sede diferente, uma sede ancestral.

Ela o guia a um pequeno quarto, deixa cair o biquíni, ele a beija afoito, necessita da sua saliva. A sede aumenta, os membros se entrelaçam, a carne se funde. Ela se coloca de quatro, submissa, implora que ele a possua. Ele obedece. Uma brasa, que parecia consumi-lo de dentro para fora, faz com que se sinta febril. Transpirava com todos os poros.

Por um grande espelho, preso ao seu lado, ele vê sua imagem. Seus olhos irradiavam uma vibração oca. Não era ele, era a Fera, ela o havia devorado pelas vísceras e o tomado para si novamente. Dele, só restava uma tênue fagulha de consciência. O Animal nunca o rodeou, esteve sempre dentro da trincheira protetora que ergueu ao seu redor. Não havia mais alma, só havia a sede do orgasmo. Ele era a Fera!

Entra em casa, respira a atmosfera morna do seu apartamento. Explica, mentindo, o atraso e o bafo de álcool à esposa: foi pego de surpresa pelo aniversário do chefe. Afaga a filha, toma um banho morno (como há muito tempo não fazia) e janta assistindo a TV. Recolhe-se ao quarto, beija fraternalmente a companheira, deita-se, lembra da ruiva e dissolve-se no prazer de sentir a gradual falência da mente. Ri de si mesmo. Adormece e não sonha.

Brisa

BRISA

A Help, saudoso e difamado inferninho, um épico de Copacabana. Cravada na Av. Atlântica, a boate confrontava orgulhosa o oceano, sem esconder a sua vocação libertina. Templo preferido das garotas de programa e dos gringos peregrinando em busca de aventuras sexuais.

Em muitas ocasiões, me serviu como refúgio, abrigando meus solos pelas madrugadas. Por dentro, uma festa psicodélica, guardava as dimensões de um coliseu, com paredes revestidas de lantejoulas azuis e a pista iluminada por estroboscópios refletidos em enormes globos espelhados. Sobreviveu à virada para o século 21 como um cenário imutável dos anos 80. Hoje, demolida, está perto de virar o Museu da Imagem e do Som. Ali jaz a luxúria, fossilizada e morna sob o mausoléu de concreto.

Foi entre amazonas, caçadores e forasteiros que ela despontou da arena erótica e me pediu uma cerveja. Morena e bonita, não neguei a gentileza. Bebemos e conversamos por algum tempo, até que a jovem me disse que não queria trabalhar naquela noite e me convidou para sentar à beira da praia e esperar o Sol nascer. Estranhei o chamado, mas aceitei. Acomodados na areia, me ocorreu que eu não havia perguntado o nome da mulher.

“Brisa” — ela me responde. Imaginando que fosse apelido de guerra, perguntei pelo nome real.

“É Brisa” — confirma mostrando a carteira de identidade com registro na Bahia.

Que força milagrosa carrega a natureza. Cultiva flores em desertos e sopra brisas poéticas na penumbra árida dos porões humanos. Consegue inspirar uma prostituta a abdicar da grana, apenas para assistir os primeiros raios do dia ao lado de um homem qualquer. Então, com um beijo delicado, a alvorada banhou-se no mar.