Central do Brasil

Central do Brasil

Sou um homem quieto, extremamente convencional, aprecio me vestir com alguma elegância quando necessário e não cultivo a mínima pretensão de querer me passar por original, pois só pensar nessa possibilidade já me remete à falta de originalidade. Eu me defino como um homem comum, no entanto, atraio muitas situações incomuns para a minha órbita.

Nesta longa jornada, atraí personagens inesperados para a minha biografia, conheci alguns cáftens alfabetizados que se mostravam curiosos em me conhecer devido a minha escrita. Na verdade, nunca foram somente os cafetões, volta e meia alguém cisma em querer me conhecer por conta da forma como escrevo. É um incômodo para mim, mas um bom agouro à língua portuguesa.

Como citei por diversas vezes em diferentes tópicos, passei anos comendo mulheres em bordéis cujos donos não me permitiam pagar nada, o sexo e o consumo ficavam como cortesia à minha presença. Admito que aproveitei as facilidades da época e ainda hoje tenho gratuidade em uma casa quando desejo.

Sim, sou um homem convencional, conservador em muitos aspectos, mas me surpreendo quando vejo que a safra de foristas atuais consegue ser mais conservadora do que eu. Quase não vejo quem frequente bordeis, quem pegue mulher de pista, quem se aventure em boates, quem se arrisque em aplicativos, nada… Pegam freelas e privês, privês e freelas, em um tedioso ciclo que não rompe a curva.

Diante dessa juventude conformada, me vejo quase como um revolucionário, pois o meu ciclo é rompido até quando não estou com disposição para me aventurar em surpresas inesperadas. Foi o que ocorreu há poucos dias, um caso que torna necessário que eu em me empenhe nesta narrativa. A adrenalina me excita mais do que a simples ideia mecânica do sexo.

Fico constrangido de contar acontecimentos como o que narrarei agora, em um cenário de estagnação, em que qualquer ponto fora da curva pode parecer inacreditável. Definitivamente, não posso ceder ao mofo do forista sem fé, aqueles que não creem no que não vivem. Só encontraram os novos mundos aqueles que ousaram atravessar os oceanos traiçoeiros.

Noite, eu conversava com um amigo, lamentava pela minha atual limitação de tempo, quando, de repente, chega uma mensagem pelo meu site Os Libertinos https://oslibertinos.com.br .

“Boa noite, Dante. Sou conhecido como Talento aqui na Central, sou seu fã, leio tudo o que escreve no seu blog e no fórum. Se possível quero te conhecer. Por gentileza, me chame no whatsapp: 21 9999XXXX.”

Que tipo de criatura se apresentaria como “Talento”, ainda mais com base na Central do Brasil? Hesitei em cadastrar o zap, mas a curiosidade de um velho escriba é irrefreável. Decidi contactar o sujeito.

“Boa noite, sou o Dante.”

“Cara, que satisfação. Sou fã de carteirinha. Tá por onde?”

“Obrigado pela consideração. Estou na Tijuca.”

“Ah! Na bucólica Tijuca kkk… Porra, vem para a Central, o uísque é por minha conta e vou te apresentar a umas amigas.”

Acredite, forista sem fé. Se não fosse a frase “apresentar a umas amigas”, eu jamais teria tirado o pijama e embarcado em um táxi para Central, mas a libido é um demônio que não aprecia recusas. Troquei de roupa, peguei um táxi e fui para a Central perto da meia-noite.

………………………….

Talento pediu que eu o encontrasse em um boteco chamado Central Paradiso, próximo à esquina da Barão de São Félix. Pedi ao motorista que me deixasse em um posto que fica próximo ao local onde marcamos. Quem supõe que a Central é um lugar ermo e desabitado na madrugada, se engana. Há uma rodoviária, há camelôs, a Vans para a Baixada, há mulheres perdidas e o Bar Central Paradiso existe como mais uma dessas ilhas que aguardam náufragos.

Quando entrei no pé-sujo, uma figura jovem, ornada por pulseiras, cordão dourado, relógio cebolão e bigodinho bem aparado me abordou de imediato. O indivíduo assemelhava-se a um daqueles personagens cafajestes do Nelson Rodrigues.

— Tu é o Dante — afirma com tom mediúnico.

— Sim. Sou eu.

— Caraaaalho. Cara, faz tempo que queria falar contigo. Senta aí, vou pedir teu uísque.

E o uísque veio enquanto Talento me contava a história de sua vida. Paraibano, morador da Rua Senador Pompeu, completando uma penca de anos no Rio, me disse ser o “faz tudo” da área. Durante a explanação do Talento, não me furtei de observar o entorno, a frequência do Central Paradiso é heterogênea: velhos, velhas, coroas, travestis, putas e gente com cara de bandido. Todos ébrios.

Talento mostrou que possui network na região, o que em deixou mais tranquilo por estar ali naquele horário. Ele falou muito mais do que eu e nunca consigo evitar o pensamento de que ninguém quer conhecer o autor do Dante, querem o Dante, mas o Dante só existe no papel, o que gera o risco da decepção no campo da realidade.

— Espera aí que vou te apresentar uma princesa para você falar dela lá no fórum e no teu blog — Talento saltou com agilidade felina da cadeira e me deixou sozinho em terreno hostil.

Não demorou muito para que retornasse de mãos dadas com uma mulher que se materializava em uma imagem surreal. Uma menina branquinha, cerca de 25 anos, cabelos castanhos claros lisos e longuíssimos, alta, cinturinha fina, olhos esverdeados, um sorriso de espantar as trevas mais espessas do universo. Meus lábios chegaram a tremer diante da aparição inimaginável.

— Mestre Dante, essa aqui é a Daiane, direto de Nova Russas para os seus braços.

— Nova Russas? — perguntei.

— Nova Russas, no Ceará. Terra de mulher bonita.

A garota realmente impressionava pela aparência. Daiane sentou-se ao meu lado e Talento ficou na minha frente, era um cerco.

— Mestre, leva ela, escreve lá no site. Daiane tá precisando trabalhar, ganhar algum. Entende?

— Entendo, Talento. Só que o pessoal de fórum não costuma vir para esses lados. É difícil.

— Ah. Acaba vindo. Acaba vindo. Com o senhor escrevendo lá, acabam vindo.

Fiquei em silêncio, esperando que um dos dois me dissessem como seria o esquema.

— Leva ela pro motel, mestre. Paga um jantar porque ela não comeu ainda e dá o que o senhor puder como ajuda. Ela vai merecer, vai por mim.

Como eu poderia dizer não para um cara chamado Talento nas entranhas da Central do Brasi? Lembrei-me do Hotel Pompeu, na Rua Camerino, não muito longe dali. Perguntei a Daiane se topava ir, ela nem piscou ao aceitar.

— Vamos pegar um táxi ali no posto de GNV — sugeri.

— Que nada, mestre. Vai andando, é pertinho. Só seguir reto aqui. Vai que é tranquilo. Daiane é da área.

Lá fui eu, cruzando de cabo a rabo a noturna Barão de São Félix até a noturna e desabitada Camerino. Com o coração em abalos sísmicos e o cu na mão. 

Meu primeiro bordel

Meu primeiro bordel

Estava perto de completar os meus quinze anos de idade, a década de oitenta se aproximava (uma década que parece ter sido a mais veloz que presenciei). Na rua onde eu morava, havia um ritual em que rapazes mais velhos levavam os mais novos para perder a virgindade e conhecer a primeira mulher. Chegava a minha vez.

Foi em uma tarde morna de outono, o céu de um azul opressor emoldurava o Sol exibido e despudorado, um desses dias de temperatura agradável. O velho opala bege deslizou pelo Rio Comprido, subiu a cinzenta rua Barão de Petrópolis, atravessou um túnel construído no século 19 (o túnel mais antigo da cidade) e desembocou na rua Alice. Lá pela metade da rua, na curva da perdição, se descortinou a construção imponente, com leves ares de abandono: a famigerada Casa Rosa da rua Alice.

Soube, anos mais tarde, que a Casa Rosa foi fundada como puteiro de luxo na década de cinquenta, me coube conhece-la em seu crepúsculo, mas ainda se podia captar de suas paredes e mesas a atmosfera dos antigos cabarés. Sentamo-nos em torno de uma mesa no meio de um salão rodeado por janelas imensas pelas quais víamos árvores silenciosas e exuberantes.

Eu estava apavorado, não havia desejo, só pânico. Não sabia o que era uma mulher; nunca, até então, tinha tocado em nenhuma. A mulher para mim, no alvorecer dos quinze anos, se revelava como a geografia do mistério. Não, eu não estava excitado, tentava calcular como agir, o que fazer. Sem manual ou instrução dos amigos, eu era um coelho que aguardava ser lançado em uma jaula junto à loba experiente, minha missão seria devorar para não ser devorado. Naquela equação do desequilíbrio, o axioma revelava que eu não teria como derrotar a loba.

Meus amigos mais velhos escolheram a mulher que me batizaria, uma balzaquiana charmosa que fumava seu cigarro reflexivo e olhava pelas janelas de um olhar vazio para os janelões que davam para o nada. Telma era o seu nome, cabelos longos e lisos, um corpo sinuoso sustentado por coxas grossas, seios médios e bunda esférica. Quando dei por mim, estava atravessando uma roleta (tipo as de ônibus) e subindo a escada de madeira em direção a um dos quartos.

Quarto enorme. No fundo, perto de mais uma das imensas janelas escancaradas para o nada, uma pia para a higiene. A cama de madeira se anunciava mais como uma arena de execução do que como um palco para o meu deleite.

— É sua primeira vez? — perguntou-me Telma.

Fui sincero, respondi que sim, como se buscasse a solidariedade daquela mulher gélida, determinada a ganhar meu dinheiro da forma mais breve e menos trabalhosa possível. A pergunta revelava a intuição certeira de uma fêmea que sacrificou muitos outros virgens antes da minha patética chegada.

— Tira a roupa — ordenou Telma.

Despi-me desajeitado, expondo a minha nudez casta e tímida.

— Deita aqui.

Deitei-me ao lado de Telma desnuda e impudica, ela conduziu minhas mãos sobre seus seios, eu vislumbrava o corpo moreno, repleto de relevos e desvios, um deslumbre que se transformaria na fome insaciável da minha vida inteira, um território de enigmas que eu não desvendaria naquela tarde, mas que mapearia para revisitar com mais segurança em outras ocasiões.

Telma me tocou, alisou meu tórax e deixou que seus dedos escorressem até o meu jovem pênis ereto, literalmente uma pica nas galáxias. Quando envolveu meu membro com uma das mãos e o apertou levemente, eu explodi em um jato incontrolável, a vergonha da ejaculação precoce. Não entendi muito o que aconteceu, fiquei atônito, até que Telma me avisou que nosso encontro acabava ali, o combinado era uma gozada. Ela se levantou e saiu. Eu continuei na cama, com aquela sensação de perplexidade, pois o orgasmo é esse desabafo do corpo, semelhante a um último suspiro, a diferença é que um se chama prazer e o outro morte.

Descobri que o libertino não é aquele que segue, é o que retorna; não é o que busca o jugo, mas a libertação. Tantas mulheres conheci após aquela tarde em Laranjeiras, números de perder a conta, mas somente duas me amaram, me presentearam, quiseram me fazer feliz. Tantas putas mentiram para mim como se dissessem verdades inquestionáveis, o prazer de algumas prostitutas não é o orgasmo, mas a mentira que se faz acreditar; tantas putas disseram, me olhando nos olhos, que eram minhas enquanto se dividiam com outros homens. Na Casa Rosa nascia o libertino mal batizado por uma sacerdotisa chamada Telma. A Casa Rosa acabou, Telma se desintegrou no tempo. Depois desse dia, quantas vezes morri no corpo de uma mulher? Não sei, o que sei é que sempre ressuscito.

Matrimônio, celibato & luxúria — Filosofia de Boteco

Matrimônio, celibato & luxúria — Filosofia de Boteco

O filósofo Rousseau escreveu que “na juventude deve-se acumular o saber e na velhice fazer uso dele”, não sei se faço uso de algum saber que adquiri na juventude, levei vida de cigarra, debochando das formigas. Ao contrário de Rousseau, percebo que é na velhice que você aprende refletindo sobre a absoluta inconsequência dos tempos em que fomos jovens. Na adolescência e nos primeiros anos da fase adulta, eu preferia mais a sentença de Platão: tudo que ilude, encanta!

Como já confessei por diversas vezes, nunca me casei e sempre tive aversão a ideia de gerar filhos. Um libertino não se reproduz, é um Highlander que não se perpetua pela procriação, mas pelos rastros que deixa em sua própria história. A minha biografia inclui namoros incontáveis com moças de família (as civis), ficadas com um número incalculáveis de mulheres genéricas e casos breves com garotas de programas. Pode soar como um contrassenso, mas o sexo pago nunca foi a minha prioridade. Talvez, por isso, eu tenha conseguido desenvolver um lado mais intenso que me faz querer alcançar algum tipo de conexão com quem me relaciono, mesmo com as moças que anseiam somente por um cachê. Como cereja do bolo, também criei laços afetivos com uma atriz pornô quando ainda era atriz pornô, chamava-se Natasha Lima, um envolvimento efêmero, mas ardente.

Jamais compreendi o projeto precoce dos meus amigos de se trancarem no matrimônio. Sinceramente, é como se houvessem nascido com essa ideia programada no código genético. Queriam casar por casar. Por quê? Seguiam passivamente o apelo dos hormônios e da agenda biológica que nos induz a perpetuação da espécie. A racionalidade humana não é capaz de conter alguns instintos banais. Eu me contive. Sempre gosto de crer que, talvez, a filosofia e as minhas incansáveis leituras desde a infância me blindaram contra certas doutrinações sociais. Fui mais feliz por isso? Não, fui mais livre.

O libertino, pelo menos no meu caso, não nasce feito. Fui um jovem extremamente romântico, repleto de sonhos hollywoodianos sobre o amor, mandei flores com as quais eu montaria uma floricultura, fiz promessas puras, fui fiel e, no fim, fui corno. Sofri por amor com a pujança de uma tragédia grega, me arrastei, me humilhei por mulheres perdidas na inconstância feminina. Os meus martírios sentimentais aliados à insistência nos livros formaram o casulo que causou a minha metamorfose. Libertei-me.

Perdi a virgindade ao final dos 14 anos, num puteiro ilustre do Rio, a famigerada Casa Rosa, que se localizava na Rua Alice. A ejaculação precoce da primeira experiência não foi capaz de me seduzir para a continuidade das degustações libidinosas. Prossegui vivendo o amor casto por alguns anos mais após esse evento. Não sei determinar quando a minha transformação psicológica ocorreu, lembro-me somente de que, por indicação de um amigo, comecei a frequentar os inúmeros forrós que se espalhavam pela Zona Sul do Rio no final dos anos 80. Foi quando nasceu o meu alter ego, quando surgiu o Dante, codinome usado com as mulheres que eu seduzia e comia. 

Entrei em uma sequência febril de sexo, devo ter comido todas as empregadas domésticas da cidade, todas as balconistas, todas as diaristas, essas eram as mulheres que frequentavam os forrós na época. Jamais abandonei o meu bom gosto, escolhia os rostos mais bonitos, os corpos mais provocantes, foi um período em que fiz as mulheres de objeto como vingança contra aquelas que me fizeram de capacho. Foi correto agir assim? Não, mas um instinto irrefreável emergiu das minhas entranhas e fui dominado pela histeria da testosterona.

Como libertino descontrolado, não vivi mais amores, vivi paixões, daquelas que batizamos como “amor de pica”. Na estreia da libertinagem, também fui obrigado a descobrir que o “amor de pica” pode ser pior do que o amor romântico. O amor romântico é sofrido, o “amor de pica” é obsessivo. Foram poucas as paixões motivadas pelo sexo, mas foram perturbadoras. Em comum com o amor romântico, o “amor de pica” também nos faz suplicar por migalhas, por atenção, pela presença da mulher que nos subjugou na cama. Libertei-me incólume de várias dessas armadilhas e segui buscando o meu equilíbrio emocional.

Apenas o tempo apazígua o espírito. O avançar da idade e a estabilização da libido motivaram os meus passos evolutivos, virei um pervertido, um voyeur, que se não for o último capítulo de um libertino, é o epílogo. Depois que passei a frequentar swings e esbarrar com casais que conseguem assumir o laço libertino que fortalece a união, me peguei pensando na possibilidade de um casamento. Vi muitos casais reais que renovam a paixão vivendo juntos a luxúria e encontram uma satisfação muito maior nesse estilo de vida do que num casamento convencional. A pergunta é como encontrar um par que ofereça o sonho libertino da união promíscua?

 Mulheres promíscuas não costumam ser mulheres leais e eu guardo adoração quase religiosa pela lealdade. Não creio que se encontre com facilidade uma parceira ou um parceiro que nos proporcione uma relação aberta e leal, é uma busca que caminha pelo acaso, pela sorte. No swing, babo de inveja quando me deparo com casais que brincam juntos e voltam juntos para casa, provavelmente para curtir toda a excitação que a noite devassa ofereceu.

Inocência, promiscuidade e depravação, a tabela da evolução libertina. Libertinos são raros porque são promíscuos e leais, só podem dividir sua solidão com uma libertina também depravada e leal. Alguém perguntaria, isso existe? Pelo tanto que observei, existe, mas para encontrar é preciso ter fé. Se não for assim, casar para quê? Chego ao novo patamar da montanha um pouco cansado da existência de encontros fugazes, pois um libertino se entedia facilmente. Não quero a sorte de um amor tranquilo, quero a sorte de um amor libertino, o pódio da luxúria.

Valdirene

Estaciono o Sucatão na Av. Marechal Floriano, próximo àquele prédio do Exército, onde em frente está o Panteão de Caxias, dali em diante vou caminhando até a Central. Era alta madrugada, o grande Relógio acima da Estação marcava 1h:30 em seus ponteiros, a iluminação precária e o silêncio flutuante criam o clima de suspense. Andar por naqueles arredores é como circundar o Castelo de Drácula, é uma sensação que mistura receio com excitação. À medida que me aproximava da Estação da Central, o movimento aumentava, o ar ganhava mais vida.

As meninas ficam pulverizadas pela periferia da Estação. É possível vê-las, numa postura até que discreta, pelas calçadas, embaixo de marquises, perto de um posto de gasolina que há por ali e circulando pelas fronteiras da Rodoviária que existe atrás da linha dos trens. Também identifiquei alguns Travestis.

Fui andando e apreciando aquela Paisagem que me era pouco familiar. O aroma do churrasquinho faz o império do olfato, os camelôs iluminam o local com todo o tipo de bugigangas. Existe alegria na Central! Paro e observo tudo, tento reter na lembrança, estou embaixo de um ícone do Rio, o Relógio da Central, quase um arquétipo.

Nossos olhares se cruzaram nesse exato momento, Valdirene estava parada perto da saída lateral da estação. Prostitutas nunca usam Razão Social, quase sempre adotam o Nome de Fantasia. Percebi que era madura. Loira, magra, cerca de 1,60m, usava uma saia jeans surrada e uma camiseta rosa. O nosso flerte durou uns cinco minutos e eu resolvi me achegar.

Contou-me ser maranhense, mora no Morro da Providência, tem 45 anos e perdeu a conta de quanto tempo está na vida. Ela me olhava com face de espanto, parecia não compreender o que eu fazia na Central de madrugada. Seu olhar me fez entender que nem eu mesmo sabia o que estava fazendo ali… Porém, eu me sentia estranhamente integrado àquele universo, a bebida ainda circulava no meu sangue e minha loucura estava desamarrada.

Conversamos uns cinco minutos, foi quando um gesto tocante ocorreu, ela pegou na minha mão e disse que me tiraria dali, que era perigoso eu ficar parado naquela área, esperando por um assalto. Levou-me para uma barraquinha de Cachorro-Quente quase na esquina da Barão de São Félix, perguntou-me se eu estava com fome e eu respondi que nós dois iríamos comer. Ela aceitou e esboçou um olhar de ternura que me comoveu profundamente.

Enquanto lanchávamos, não nos falávamos, somente nos olhávamos e a comunicação fluiu como poucas vezes fui capaz de me fazer entender.

Novamente, ela segura minha mão e me conduz numa nova viagem em direção um Hotel próximo. O quarto me custou R$ 70,00 perguntei qual agrado ela desejaria receber, ela me pede apenas um mimo de R$ 80,00. Eu estava vindo de dois encontros quase consecutivos, não haveria energia para um terceiro. Mesmo assim, acompanhei-a ao quarto.

Que me chamem de Poeta! Que me rotulem de louco! Que me taxem como doente!… No entanto, deitado sobre lençóis rasgados e trancado entre aquelas paredes sujas, eu vivi um dos momentos mais doces da minha vida.

Expliquei à Valdirene que eu não desejava transar, queria apenas descansar um pouco em sua companhia. Ela me despiu lentamente, cheia de cuidados, recostou-se na cama e pediu que eu colocasse a cabeça em seu colo. Começou a me acariciar, fazer cafuné, alisava meu corpo, tocava meu sexo, beijava levemente minha boca e me olhava como se estivesse vendo algo de extremo valor.

Meu colega leitor, você é a única pessoa para quem eu posso tentar transmitir a beleza deste momento, mas não consigo encontrar as palavras e a forma que vão revelar esse acontecimento singular. De repente, quase 3h da manhã, eu estava num quarto paupérrimo, à beira da Central do Brasil, com uma prostituta envelhecida e descobria a luz do mais puro afeto, enxerguei a transparência de quem compreende as profundezas do amor.

Precisei me despedir, ela me deu um abraço e me pediu que não sumisse. Não sei quando irei voltar ou sequer se irei voltar. Talvez eu queira guardar esse instante da forma como o vi, da maneira como ocorreu pra mim.

Volto ao Sucatão, alguma coisa havia mudado em mim, ainda não sei explicar. Ligo o rádio e sigo a Marechal Floriano para retornar pela Presidente Vargas. Quando estou passando em frente ao Sambódromo, uma música da banda Barão Vermelho (O Poeta está vivo) transpira dos alto-falantes…

BARÃO VERMELHO

Acredite, leitor sem fé! A mágica ainda existe.

Lapa, o musical

LAPA, O MUSICAL

Estou amanhecendo de ressaca após uma noite infinita. Às vezes, tudo parece sem sentido. Engoli de um só gole a dose da Salinas, a cachaça desceu rasgando o esôfago. Não bebo sempre, sou esporádico com o álcool, mas quando bebo é uma comemoração pessoal, uma saudação pelo privilégio de ainda poder brindar à vida. O bar tocava What a Life com o som no alto volume, alguns jovens se moviam como pêndulos, outros dançavam sem inibição no meio da calçada da noite fria, as luzes também dançavam.

WHAT A LIFE

“Fuck what they are saying, what a life!
I am so thrilled right now
‘Cause I’m poppin’ (woo) right now
Don’t wanna worry ‘bout a thing (don’t wanna worry)
But it makes me terrified
To be on the other side
How long before I go insane? (Insane)”

No terceiro copo de Salinas, o sentido de tudo se revelava na falta de sentido, no caos. A mente filosofava em parceria com os acordes da embriaguez. Gosto da euforia artificial, da alegria ébria que me invade de repente. Um outro eu que se liberta do meu eu antediluviano bolorento e sóbrio. Escuto uma voz entusiasmada gritando meu nome.

— Dotô. Dotô Dante, o senhor veio — Baiano corre para me dar um abraço quase emocionado.

Sim, eu estava ali para visitá-lo após as tantas vezes que ele me atendeu carinhosamente no pé-sujo da Teófilo Otoni. Pelo WhatsApp, ele me informou que se mudou para outro bar, na Rua da Relação, perto da Lapa, porque este ficava aberto até tarde e poderia fazer mais dinheiro. Baiano me avisa que a próxima dose seria cortesia da casa, fico constrangido, mas aceito para não o decepcionar. Contou-me que ali também aparecem meninas promíscuas, mas que ele ainda estava mapeando o movimento. A verdade é que Baiano se comporta como um cafetão que ajuda clientes como eu, como se estivesse cumprindo uma missão humanitária.

Faz tempo que me transformei em um insone, durmo pouco, durmo somente na alta madrugada e acordo cedo. Virou um ciclo, um presente de grego da idade que avança. Shakespeare escreveu que há homens que ficam velhos antes de se tornarem sábios, sou um deles. Por que eu seria um sábio? A sabedoria é entediante, censura o desejo de viver. Sou um velho com todas as inconsequências da juventude.

Gosto de bares com música e o bar onde o Baiano está agora executa uma trilha sonora de primeira linha. Eu estava gravitando nos meus devaneios quando começou a tocar Disappear, do INXS.

DISAPPEAR

— Caralho. Que foda de música — a palavra obscena saltou espontaneamente dos meus lábios.

Senti uma inexplicável saudade da minha terra natal, o Rio Grande do Sul. Perdi a conta dos anos em que não visito as minhas origens, saudade das boates do interior gaúcho, das mulheres belíssimas que conheci por lá. Efeitos da bebida. A galera no meu entorno dançava frenética com copos na mão. O bar em que o Baiano está faz sucesso, tem uma pegada meio New Wave, meio retrô e é frequentado por jovens de tribos alternativas, mas também por coroas deslocados como eu. Vejo uma mulher animadíssima puxando a namorada e indo cochichar com o cara que mandava o som, o sujeito remexeu num bolo de CDs, num chaveiro de pen drives. Quando finalmente a música veio, o casal de lésbicas saiu pulando com gritos histéricos e correram para grupo que compartilhava o êxtase com elas.

FINALLY

A melodia de Finally tomou o ambiente como se fosse um chamado para a batalha, foi uma comoção geral. Neste momento reparei a imensa frequência da galera LGTB no meu entorno, qualquer bêbado esclerosado teria percebido isso antes de mim. Eu estava sozinho na mesa e fui puxado por um garoto imberbe que sinalizava com as mãos que eu também deveria dançar. Entrei naquela histeria coletiva.

— Foda-se — pensei.

Dancei muito. Quem me visse de longe talvez me confundisse com Priscila, a rainha do deserto. Eu me senti nos idos da Help, em Copacabana. Soltei a franga. Foi bom pra cacete. Que noite! As lésbicas me beijaram, o garoto disse que eu era um coroa enxuto e descarreguei a energia represada com passos de um dançarino com Mal de Parkinson. Que dinheiro compra esses momentos apoteóticos? De repente, Baiano me cutuca esbaforido com um celular na mão.

— Dotô, a mina quer falar com você. É quente, é quente. Fala aí.

Aqui, faço um breve intervalo. Sei que somos céticos quando nos deparamos com casos que ocorrem fora do cativeiro dos bordeis ou do sistema de lanchonete das frees, é compreensível, mas acredite, forista sem fé, a libidinagem e a promiscuidade também transitam pelos bares, pelos restaurantes, pelas ruas, pelas calçadas, pelo asfalto etc. “Isso realmente aconteceu, Dante?” — não é incomum algum amigo me perguntar, eu respondo que ele precisa viver para descobrir. A maioria das histórias que lemos nos fóruns refletem uma fatia mínima e viciada da luxúria carioca, mas ela é maior, mais ampla e foi sempre nessa outra face da Lua que preferi me aventurar.

— Alô, quem fala? — perguntei me esganiçando para superar o barulho ao redor.

— Mari. O Baiano falou que tu quer companhia. Vem pra cá.

— Onde?

— Em frente ao Bar das Quengas, na Ubaldino Amaral. Estou sentada aqui com uma amiga.

— E como você é? — perguntei.

— Vem pra cá que você vai ver. Vem logo.

Desliguei o celular e perguntei ao Baiano se ele poderia descrever a menina, ele me respondeu de forma vaga.

— Vai que é gata, dotô. Vai que é gata.

Paguei a conta, girei minhas botas para o destino e caminhei pela rua da Relação até a Ubaldino Amaral, não muito distante de onde eu estava. Quando alcancei a esquina da Ubaldino com a Men de Sá, em frente ao Bar das Quengas, avistei um boteco chamado “Beco da Noite”. Uma ninfa ruiva de cabelos compridos e pele alvíssima acenou para mim. Meus olhos devem ter brilhado…

Vila Mimosa

VILA MIMOSA

Giro a chave e o motor do Sucatão grita como uma fera que desperta faminta. Nem a chuva nem a noite alta nos intimidam, os pneus ganham o negrume do asfalto, não há destino, só vontade. Insiro um pen drive aleatório no aparelho de som e a música que transborda incendeia o meu entusiasmo.

HOT STUFF

O limpador de para-brisa abria o meu campo de visão, noite cinza cortada pelas luzes pálidas da cidade. Acelerei, deixei o vento acariciar a minha face, permiti que as gotículas que vinham do céu beijassem o meu braço. Sexo, essa fome interminável. Talvez, não seja interminável. Com a idade, arrefece, mas o desejo não morre. Somos vampiros de orgasmos.

Certa vez, vi dois sujeitos pararem um fusca no meio de um temporal de verão, desembarcaram do carro e começaram a dançar ao som de Hot Stuff, na voz de Donna Summer. Foi a imagem mais intensa de manifestação de liberdade que testemunhei. A música ficou na minha cabeça, gravei e fico a espera de um dia de chuva em que eu também tenha coragem de celebrar a minha libertação.

Rumei para um local que, no período de 2010, cheguei a frequentar quase todas as noites. Vivi romances, fiquei conhecido, criei uma página na Internet (Vila Mimosa Vip) e fiz história naquela época. O affair mais febril que vivi sobre aqueles paralelepípedos foi com uma atriz pornô chamada Natasha Lima (vide X-Videos), com direito a jantares, peças teatrais, passeios à beira-mar e trepadas monumentais. Terminou, pois como já preconizava Renato Russo: o pra sempre, sempre acaba.

Estacionei na penumbrosa Rua Ceará e pisei firme com as minhas botas naquele chão que guarda com um silêncio leal e inviolável a história secreta de tantos libertinos. A Vila Mimosa é uma sobra do que foi, vazia, triste, nostálgica dos tempos que não pretendem retornar. É um monumento do passado que insiste em resistir, decadente, abandonado e quase esquecido. Acredite, forista sem fé, eu não esperava encontrar nada que pudesse valer a pena, saí de casa sem pretensões, apenas para respirar e fugir da minha claustrofobia noturna.

Vaguei pelos corredores da Zona, o meretrício cru, lugar onde a mulher é real. Negras, ruivas, loiras, mulatas, morenas… Um desfile de olhares promíscuos, de convites libidinosos. Dizem que quando não se espera nada é que a mágica acontece, uma loiraça com dimensões de potranca emerge de uma casa num minúsculo biquine vermelho contendo a sua imoral nudez provocante. Sim, afeiçoado forista, eu salivei, talvez até um pequeno filete de saliva tenha escorrido pelo canto da minha boca. Percebendo que aquele colosso feminino não ficaria solta por muito tempo, me aproximei.

— Preciso saber seu nome — perguntei.

— Scarlett — ela me responde com um sorriso simpático.

— Como faço pra ficar com você…

— Só me deixar noventa reais de presentinho. Vale?

— Ôoo! Vale até mais.

— Eu aceito mais também — Scarlett ri.

— Você aceita ir para um hotel aqui por perto comigo?

— Por 200 pode ser.

Fiz a entrevista básica para saber sobre o possível desempenho sexual da moça e parti com ela para o Hotel Saionara, na Rua do Matoso, nos arredores da Praça da Bandeira.

Dentro do quarto, Scarlett entra no banho e retorna nua. Quase desfaleço numa crise de apneia. Que corpo absurdo. Rata de academia, treinos diários, a menina é toda definida, coberta por uma leve penugem dourada, cabelos lisos e compridos, boca carnuda, bunda que poderia me servir de jazigo numa morte feliz durante a ejaculação e uma sensualidade natural. Observando-a com mais calma, compreendi o nome escolhido, ela possui traços semelhantes aos da atris Scarlett Johansson.

— Minha filha, você linda assim… o que está fazendo na Zona? — solto aquela pergunta idiota que não pode faltar.

— Ali eu ganho dinheiro — respondeu com firmeza.

Beijos impudicos, roçadas perigosas, boquete profundo e consegui executar um sexo anal por cinquenta contos a mais no cachê. A garota vale, um achado raro na atual VM. Trabalha na casa 21 do corredor em U. Uma hora e uns quebrados depois, devolvo a menina para dentro da Vila e desemboco com o Sucatão no entorno da Quinta da Boa Vista, subo o viaduto que leva ao Maracanã e alcanço a Praça Xavier de Brito. Eu poderia entrar na garagem de casa e encerrar a noite, mas estacionei na margem da praça, inseri o pen drive no som e aumentei o volume.

Embalei os corpos de uns casais fumando erva e de meia dúzia de pinguços. Saltei do carro e puxei um cigarro que fumo em ocasiões bissextas. Sem filhos, sem esposa, não preciso de nada além de um corpo quente que alimente a minha fome de vez em quando. Liberto, livre, libertino. Libertine-se… 

DONNA SUMMER

Gisele

GISELE

“Se sentires as pernas cansadas, abre o peito e inspira fundo.”

—Friedrich nietzsche (1883)

O mar se movia com preguiça quando estacionei o Sucatão às margens da Praia Vermelha. A noite se fazia densa, o silêncio só permitia o sussurrar leve da brisa que soprava de algum ponto obscuro do horizonte. Não pensei que ela pudesse se lembrar de mim, até receber um súbito chamado pelo WhatsApp. Gisele voltou, mas ficará por poucos dias no Rio. Avisou-me que não estava no Centro, mas hospedada na casa de uma amiga na Urca. Marcamos e cheguei antes da hora. Eu transpirava ansiedade. Inseri um disco aleatório no cd-player, apoiei as costas na lataria do carro e um som antigo transbordou alto pelas caixas de som…

Kate Bush

Há momentos que são mágicos, enquanto a balada emoldurava a paisagem exuberante, avistei Gisele vindo em passos suaves pelo lado da Fortaleza de São João, ela me acenou com a leveza da bailarina que é, meus olhos quase marejaram ao confirmarem sua presença divina. Louraça, cabelos soltos se derramando pelos ombros, olhos que cintilavam à distância, pernas longas e torneadas, cintura fina, o rosto delicado de beleza imponente, tudo isso envolvido por um vermelho vestido vaporoso e decotado. Acredite, forista sem fé, o meu primeiro pensamento se materializou em uma frase: “estou sonhando, essa mulher não quer ser minha, não pode ser…”

A escrita é um instrumento que afinamos com exercícios diários, treinando, sentindo o som dos vocábulos, o ritmo, a respiração, a textura de cada sentença, porém, mesmo que eu fosse um virtuose da palavra, não conseguiria descrever Gisele de forma fiel, que retratasse o quanto ela é deslumbrante. Ela pertence ao grupo das jovens mulheres que nos causam apneia, minhas pernas tremeram diante da sua aparição. Fiquei ali, estático, esperando que se aproximasse o suficiente para que eu pudesse agarrá-la como um náufrago tentando não se afogar.

— Dante, como você está elegante. Isso tudo é pra mim? — foi sua primeira frase para este velho libertino.

Sim, afeiçoado leitor, sou um britânico nascido moreno e nos trópicos. Minha resposta foi um abraço e um beijo em sua boca, Gisele retribuiu. Ela me convidou para nos sentarmos um pouco na areia da praia, queria conversar, aceitei. Contou-me sobre as viagens que fez, disse que São Paulo é muito melhor do que o Rio para uma stripper como ela, confidenciou que sentiu saudades de mim (será?) e me lançou um olhar quase em brasas. Começou a alisar minha perna direita e subiu até o meu combalido pênis escondido sob a calça jeans, os sinais da ereção se manifestaram. Novamente, ofereceu-me a sua boca, a língua gulosa quase alcançou a minha traqueia, ela se deitou sem medo de se lambuzar na areia, puxou-me para o seu lado e levou minha mão a um dos seios. Transei na praia uma única vez na minha vida, mas fiquei receoso de continuar com aqueles amassos ousados em uma área militar, como é a Praia Vermelha. Perguntei a Gisele se ela teria tempo para irmos a um motel, ela disse que precisava fazer um show mais tarde no Palácio de Cristal, mas poderia ir se não demorássemos muito. Cavalo dado não se olha os dentes, parti com ela para o Bambina, em Botafogo.

Confesso, afeiçoado forista, dentro do quarto, ela se despiu e fiquei alguns minutos sentado à beira da cama contemplando aquela obra magnífica da genética e da natureza. Gisele é a minha Sharon Stone, uma loira que exala sem pudores o seu instinto selvagem. Ajoelhou-se e abocanhou Pikachu, o breve, em um boquete quase artístico, lambendo a minha glande com calma, explorando com a língua todos os detalhes anatômicos do meu pau, deslizando sua boca até o meu saco, chupando meu saco, subindo para engolir novamente o pênis, alternando o boquete com a punheta. Meu tesão era tanto que fiquei com receio de sofrer um AVC. Não sei qual é a técnica que ela usa, mas rapidamente senti aquela sensação vulcânica da erupção e gozei jatos intermináveis de sêmen na garganta da menina. Ela engoliu, lambeu os lábios e me deu um sorriso devasso que jamais irei sairá da minha memória. Devido a ejaculação precoce, o encontro terminou rápido.

Voltamos ao Sucatão, acelerei e partimos em direção ao Palácio de Cristal. Quando peguei o Aterro do Flamengo, a música de Simple Minds inundou a cabine…

Simple Mind

— Sabe que adoro você, Dante? — Gisele me diz de repente.

Pisei mais fundo no acelerador sem conseguir conter um sorriso de euforia. Outro pensamento intruso se manifestou em uma frase mental silenciosa: “Caralho, essa mulher é minha”.

GISA POLTERGEIST

GISA POLTERGEIST

Aos amigos que me acompanham, na viagem das palavras, pelas minhas andanças boêmias, inicio pedindo desculpas pelo tom gótico deste episódio. Porém, aconteceu! Como libertino e notívago, me imponho à obrigação de relatar.

Costumam me perguntar como um Professor, de formação avançada, pode se sentir bem dirigindo um táxi pelas noites do Rio. Eu poderia responder a questão invertendo os fatores, perguntando como um taxista pode se sentir feliz atuando como professor durante o dia. Mas o que realmente ocorre quando me fazem essa interrogação é que sou remetido ao final da minha adolescência, no início dos anos 80. Lembro-me de estar sozinho, sentado numa das poltronas do Cinema Carioca, na Saenz Peña, assistindo ao filme “Caçadores da Arca Perdida” e desejando que a minha existência se tornasse um grande baú de aventuras que me salvasse do tédio urbano. 

Aos 40 anos, comprando um táxi quase como quem compra um brinquedo, eu me tornaria o meu próprio herói. Visto meu uniforme para a noite, calça e blusa nos invariáveis tons escuros; aciono o motor do Astra amarelo; ligo o rádio; acelero lentamente e mergulho no asfalto. 

Uma idosa acena, eu paro, ela entra no carro e informa que o seu destino seria o Caju. Durante o caminho, a anciã se revela uma déspota rabugenta, só me chama de senhor, me maltrata, reclama o tempo inteiro da minha falta de conhecimento sobre a região portuária, cheguei a pensar que fosse desistir da corrida, cheguei a ter essa esperança, mas ela parecia determinada a me infernizar. Quando, finalmente, alcançamos o paradeiro da velha, ela salta do carro, me olha nos olhos e me manda comprar um Guia Rex. Senti um calor de raiva na face, mas sou um pacifista, fui criado na filosofia do respeito aos mais velhos, me contive e não cometi o ato onírico de respondê-la.

Retornando pelo mesmo caminho por onde cheguei, tal qual Teseu fugindo do labirinto de Minotauro, eu avistei o inusitado… Um grupo de garotas, vestidas em cores vivas, conversavam animadas em frente à entrada do Memorial do Carmo, um dos Cemitérios do Caju. Uma delas se precipitou à beira da calçada quando viu meu táxi se aproximando em velocidade de cruzeiro. Começando a desconfiar do que se travava, fui freando o veículo. Quando parei, a menina já estava debruçada sobre a janela do carona e se apresentando como Gisa.

Um ponto de mariposas em frente ao cemitério! Quando eu poderia imaginar isso se a minha nave não houvesse me levado pelos descaminhos da nossa cidade?

Gisa é uma ruiva muito branquinha, em frente ao cemitério poderia facilmente ser confundida com um Poltergeist, mas é mulher de carne e osso, com um jeito atrevido e um toque sensual. Deve alcançar 1,70m; pernas bem torneadas, expostas por um vestido curto e estampado num azul e verde ofuscante; sua voz tem uma rouquidão sexy; seus cabelos são compridos, pintados num vermelho forte.

Sua primeira frase não negava o ofício.

– Vai namorar a Gisa hoje? – Pergunta.

– Depende! A Gisa é uma namorada carinhosa? – Devolvo.

– Sou a mais carinhosa daqui.

– Gisa, encontrar uma mulher carinhosa dando sopa na porta do Cemitério é quase como esbarrar com Lázaro fazendo um Cooper aqui pelas redondezas. É um evento! Mas quanto preciso dar pelo carinho?

– No motel, X. Só o boquete, Y.

Não sei o porquê, mas sempre considerei a palavra boquete um vocábulo feio, com uma carga de vulgaridade intensa. Ouvir uma mulher falar boquete é algo broxante pra mim, mas sentir uma mulher fazendo um bom boquete é um sonho para qualquer homem… Contradições da nossa alma.

– Aonde poderíamos ir se eu quiser só o boquete? 

– Tem a garagem de uma Marmoraria ali atrás, é perto e ninguém incomoda. – Ela me esclarece.

Optei pelo boquete!…

A tal garagem era um recuado em terra batida, ao lado de um pequeno galpão e logo após o Cemitério do Caju. Um lugar penumbroso que poderia causar temor aos corações mais frágeis. Estaciono o amarelinho e deixo a lanterna do farol acessa para que eu pudesse enxergar alguma coisa.

Gisa é dessas que não perde tempo, afrouxou meu cinto, desfez o nó dos meus botões, puxou minha calça para baixo, deixou cair a cabeça sobre a minha virilha e encaixou seus lábios numa deliciosa sucção labial que envolveu todo o meu membro. A garota é boa no que faz, senti a eletricidade da sua sede me percorrer inteiro. Relaxei. 

Confesso que a chupada era gelada, o que fez o clima fantasmagórico crescer na minha imaginação, mas preferi creditar o toque da língua fria a alguma bala Halls que a menina estivesse trazendo à boca.

Quando olho para o meu lado esquerdo, vejo uma lápide, estava apoiada numa parede, atrás de uma grade e trazia a inscrição miserere mei (tende compaixão de mim) gravada na extremidade superior. Sim, meu amigo, aquilo me causou algum desconforto, mas a força do prazer nos faz suportar a maior parte dos incômodos.

Gisa continuava a me sugar como uma vampira erótica que necessitava despertar meu sêmen. Para todos os lados que eu olhava só conseguia ver cruzes e anjos erguendo-se para o céu. Senti que a minha explosão estava próxima… Gozei!… Foi um orgasmo barroco, cercado de todos os símbolos religiosos que habitam um cemitério tradicional. 

Quando abro os olhos, me recuperando do beijo fálico, consigo ler outra inscrição no alto de um jazigo que praticamente saltava pelo muro do cemitério: Mors ultima ratio (morte, o derradeiro argumento).

Abandonamos a toca sombria, eu com os membros aliviados e a mente extasiada. Recordei-me do trecho de um Poema que li quando ainda era muito jovem: O Noivado do Sepulcro, do poeta português Soares Passos. 

“E ao som dos pios do cantor funéreo,

E à luz da lua de sinistro alvor,

Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério

Foi celebrado, d’infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,

Já desse drama nada havia então,

Mais que uma tumba funeral vazia, Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém, mais tarde, quando foi volvido

Das sepulturas o gelado pó,

Dois esqueletos, um ao outro unido, Foram achados num sepulcro só.”

Muito além da meia-noite, deixei Gisa no mesmo lugar em que a encontrei, em frente à entrada do Memorial do Carmo. Aproveitei para perguntar se merecia o esforço fazer ponto ali, ela me explicou que aquela região é parada de caminhoneiros, por isso, as meninas se concentram nos arredores do cemitério. A elucidação comprovou que para tudo existe uma razão científica.

Acelero o Astra e ainda consigo identificar uma última inscrição que emerge sobre uma imagem, acima do muro do campo-santo: Dormit in Pace (descanse em paz).

Ligo o rádio, o som está alto, ganho a Av. Brasil ao som da batida de um refrão de música estrangeira: Set me free!…


FOG EM COPACABANA

FOG EM COPACABANA

Noite de sábado, deviam ser umas onze horas. A noite de sábado é como um templo sagrado para o libertino. E, como não poderia deixar de ser, lá estava eu: sábado à noite, esquina da Siqueira Campos com Praça Serzedelo Correa, saboreando um chopinho e perdido nos mais profundos pensamentos, num bar que tinha o nome de Temperado.

De repente, sou despertado abruptamente pela gargalhada fanhosa do Teixeirinha. Sim, ele mesmo! Meu inseparável escudeiro, porque todo solteirão necessita de um fiel escudeiro que o acompanhe pela night.

– Cara, olha isso! Que maneiro! Nunca vi isso! – Bradava meu amigo Teixeirinha.

Foi quando percebi que estávamos diante de um fenômeno que eu também nunca havia presenciado no Rio. Uma espécie de fog, uma neblina carregada, que havia invadido Copacabana fazendo o ambiente parecer uma Londres tropical. Chovia fino, mas não sei dizer o que pode ter ocasionado aquele nevoeiro noturno. Para completar, ouço um som, uma música maravilhosa que me envolveu. Era a primeira vez que eu escutava Summer Time cantada pela voz da Janis Joplin e foi acontecer ali, num bar da Siqueira Campos e numa noite de fog em Copacabana.

O Teixeirinha foi ao delírio:

– Cara! Que isso! Tô me sentindo em New York!

O interessante é que toda àquela atmosfera cool fazia realmente parecer que estávamos numa outra cidade que não fosse o Rio. Terminamos de beber e decidimos seguir o itinerário que traçado, iríamos ao extinto Forró de Copacabana, que ficava numa galeria perto da esquina da República do Peru, onde atualmente funciona a Mariuzinn.

Começamos a caminhar em direção ao destino. Quando estávamos atravessando a Hilário de Gouvêa surge uma mulata descomunal, armada de um top para lá de decotado e de uma minissaia que deixava à mostra um par de pernas saradas como raramente testemunhei na vida. Quando cruzou conosco, nos fuzilou com um olhar e sorriu. Bastou isso para eu escutar a manifestação quase histérica do meu escudeiro:

– Foi contigo, foi para você! Ela deu mole, porra! Vai deixar passar, vai deixar passar?! – Gritava.

Como eu já estava com a cabeça em maresia depois de brincar de laboratório químico no bar da esquina, ao misturar diversos teores alcoólicos, acabei me deixando contaminar pelo entusiasmo do Teixeirinha e decidimos seguir aquela mulata fantástica para que eu pudesse tentar me aproximar. Foi aí que a nossa aventura começou! A mulata caminhava devagar, causando burburinho no trânsito. Como ela veio do sentido oposto ao nosso, tivemos que inverter nosso trajeto.

– Pra onde ela deve estar indo? Ela tem jeito de cachorra! Será que cobra? – Tagarelava o Teixeirinha ao meu lado.

Ela seguiu a Nossa Senhora de Copa, entrou na Siqueira, contornou a praça e….. Veio a bomba!

Tente se lembrar de uma boate que havia entre a Hilário de Gouvêa e a Siqueira Campos chamada Incontrus (era assim mesmo que se escrevia). Pois é, foi onde ela entrou! Pode duvidar, mas eu não tinha noção do tipo de boate que era a Incontrus. Percebemos um movimento diferente na porta, mas como também havia muitas mulheres, nós não tocamos para o que nos aguardava. Começamos a cogitar que devia ser mais uma boate alternativa, no estilo da Bunker ou da Dr. Smith. Após um momento de indecisão, resolvemos corajosamente desbravar o local atrás daquele monumento que nos havia acenado com a possibilidade de prazer.

O lugar era engraçado e gerou um suspense de mau gosto até chegarmos à boate. Primeiro, você subia uma longa escada que levava até a bilheteria; comprado o ingresso, você agora descia uma outra escadaria em frente e se deparava com duas enormes portas, ao ultrapassá-las, desfez-se o mistério… Queria que alguém tivesse fotografado a minha cara e a do Teixeirinha assim que pisamos dentro na pista. Os antigos navegantes anunciavam terra à vista ao se depararem com um Novo Continente, mas ouvi o berro do Teixeirinha exclamar:

– Cara! Que mar de homens é esse?! Em que furada que a gente entrou?!

Verdadeiramente, estávamos numa furada! Havíamos invadido uma boate gay. Diria mais, estávamos dentro de uma arena gay onde homens se digladiavam, se agarravam, se beijavam e todas as demais performances que eu e o Teixeirinha, anti-heróis do convicto mundo hetero, sequer poderíamos imaginar presenciar. O mal estava feito…

Agora já entramos! Vai atrás da mulata e convida para outro lugar. Se você conseguir sair daqui com ela, me chama. Vou ficar te esperando no balcão do bar – Informou meu heroico amigo.

Parti para resgatar a mulata, o lugar estava lotado e mal se podia andar. Rodei, andei, procurei e nada. Para piorar a situação, eu não conseguia encontrar a beldade. Existia um segundo pavimento. Subi. Nesse ínterim, já haviam se passado uns trinta minutos desde que entramos.

Na parte de cima, a boate era uma espécie de corredor polonês, foi preciso cautela. Finalmente, avistei a almejada potranca. Definitivamente linda! Estava no final do corredor e fui ao seu encontro. Parei. Rondei. Dei um tempo fitando a menina e mantendo uma distância segura, mas ela me viu e novamente abriu um inacreditável sorriso. Acenou. Ela me acenou! Quando ousei me aproximar, percebi que um braço envolvia a sua cintura. Continuei. Estacionei ao seu lado e lancei a intimação.

– Olá! Que bom que me chamou, queria mesmo falar com você.

– Qual seu nome? – Ela me pergunta.

– Dante e o seu?

– Dara. Eu chamei você porque achei que o conhecia, pensei que fosse um amigo antigo meu, mas agora vi que me enganei. Desculpa.

– E será que agora eu não posso lhe conhecer? – Devolvi.

– Olha, vai ficar difícil. Foi só um engano mesmo, meu negócio é mulher. Além disso, estou com a minha namorada aqui.

– Xeque-Mate.

Afeiçoados leitores, confesso que cheguei perto de enfartar, meu sangue subiu. Olhei em volta e quis apenas desaparecer daquele inferninho alternativo. Aí veio o golpe de misericórdia! Quando olho do parapeito, vislumbro o meu amigo Teixeirinha absolutamente trêbado, girando a camisa acima da cabeça, dançando freneticamente entre vários boys e esganiçando a frase:

– O mundo é gaaaay! Reboquei no desespero o Teixeirinha, que hoje alega amnésia alcoólica. Por sorte, afirma năo lembrar (ou não querer lembrar) daquela noite fatídica, embalada pela voz da Janis Joplin e embaçada pelo único fog que assisti em Copacabana

FEITIÇO DO TEMPO 1

FEITIÇO DO TEMPO

Ontem me prometi não sair de casa, resistir à agonia de ficar enclausurado em um sábado à noite. Escolhi filmes, li um livro, comi uma pizza, mas nada disso foi suficiente para aquietar o espírito libertino. Eu precisava de alguma aventura ou, ao menos, da tentativa de me aventurar. Digo a você, afeiçoado forista, estou na fase da terceira idade em que durmo pouquíssimo, sou invadido constantemente por uma inquietude noturna que não me permite ficar aconchegado na atmosfera caseira. Vesti meu velho uniforme libertino (sim, libertinos são como heróis, usam uniformes), geralmente um vestuário em tons escuros, chamei um táxi (estou com a carteira de motorista vencida) e pedi para o piloto tocar para a rua do Senado. Passou-me pela cabeça ir para a Mosaico, na Vila Mimosa, mas fazia tempo que eu não visitava o Feitiço do Tempo. Decidi o meu destino.

Quanto mais o veículo se aproximava do Centro, mas a paisagem ia se tornando árida, deserta, silenciosa. As lâmpadas de vapor de mercúrio refletiam um cortejo de pálidas luzes amareladas, o asfalto nos conduzia pelo velório do vazio. Logo após a Praça da Cruz Vermelha, uma arena rodeada por velhos prédios carcomidos, pedi que o taxista parasse. Preferi ir a pé pelo resto do caminho. Finquei minhas botas na calçada, pisei firme e calmo, com a serenidade dos que conhecem os recantos furtivos e traiçoeiros da madrugada. Coragem não significa violência, mesmo porque violência muitas vezes significa covardia; coragem é sinônimo de ousadia e na maior parte das vezes é o contraponto à violência. Ninguém percorre tranquilo as ruas do Centro, mas a região da Cruz Vermelha é próxima à Lapa, também pontuada por bares e pés-sujos que compõe a fauna do local.

O Feitiço do Tempo é um inferninho que teve sua origem no entorno da Central do Brasil, depois o proprietário se uniu a um outro empreendedor e unificaram a firma nos arredores da rua do Senado. Neste último sábado, quando entrei na boate, tive uma surpresa que me deixou boquiaberto, o bordel está emplacando um perfil original, virando marca. Subi os degraus do antigo sobrado e quando entrei no salão tudo continuava iluminado à luz de velas, mas com velas estilosas. Do corte de luz, brotou a criatividade. A iluminação elétrica se restringia a umas poucas luzes coloridas colocadas em cantos estratégicos da pista. Avistei quatro casais, provavelmente se aquecendo antes de partirem para o Swing do Mistura Certa. De puteiro, o Feitiço do Tempo pescou a ideia de se firmar como boate temática de flash back. Achei genial.

Quando ainda estava buscando uma mesa para armar o meu acampamento, começou a tocar uma música de um passado muito distante (1987), meu melhor passado. Admito, colega forista, quando sou pego de surpresa com esses elementos que nos lançam para trás, fico a beira de me emocionar. Reconheci a música, reconheci a voz, reconheci a época. Patrick Swayze cantando She’s Like the Wind. Acredite, forista sem fé, foi neste ponto uma garota chegou perto de mim e me puxou para dançar. Morena, alta, corpo esguio que denunciava as curvas de uma falsa magra, cabelos longos presos com rabo de cavalo, um olhar intenso e sexy. A última vez que me lembro de ter dançado música lenta com uma puta foi na finada Discoteca Help, que fazia uma sessão romântica às 3h da madruga.

SHE’S LIKE THE WIND

Digo a vocês, foi foda. Que momento. Aquele corpo quente colado no meu, os passos lentos em que nos orbitávamos, as mãos dela acariciando a minha nuca, os acordes que transbordavam pelas caixas de som. O coração do velho precisou ser forte. De repente, do nada, ela me beija na boca. E aqui eu quebrarei toda a elegância do texto para poder descrever o pensamento que quase saltou nu da minha mente. Puta que pariu. Que beijo. Que cena. Nessas ocasiões é que me convenço de que a vida libertina é maravilhosa. Ainda existe magia, estimado forista. Permanecemos na pista quando o DJ emendou com Kate Bush.

KATE BUSH

— Dante, como você consegue lembrar desses detalhes? — Perguntaria o forista incrédulo.

Impossível é esquecer, meu cético camarada. E se algum forista se mostrar insatisfeito com este relato, se considerá-lo repleto de informações inúteis, descartáveis e afirmar que eu não falo do principal, o que poderei responder? Lamento pelo humano estéril que você se tornou, meu caro. O prazer está na percepção do abstrato.

Sentei-me com a mulher que me levou por uma viagem que irei me recordar até o último suspiro. Revelou-me que seu nome é Laura, tomamos umas cervejas, conversamos, namoramos e decidi convidá-la à alcova. Pedi que nos deixassem no quarto por uma hora e meia. O fim desta história resumo com sussurros, gemidos e orgasmos. Fui feliz.

FEITIÇO DO TEMPO 2

FEITIÇO DO TEMPO 2

Creia-me, estimado leitor. Venho saindo com meninas que atendem por conta própria, dando preferência as que possuem local. A minha colheita tem sido de boas experiências, um saldo positivo e surpreendente para quem antes priorizava como preferência às termas. Apesar disso, nunca me sinto totalmente satisfeito, falta sempre algo que a minha natureza sexual exige desde que o sexo deixou de ser um mistério para mim. Sim, na juventude o sexo ainda guarda aquela aura de mistério, um elemento que contribui para a nossa excitação incontrolável, mas é na fase mais madura que precisamos encontrar um afrodisíaco que substitua o mistério que se extinguiu. No meu caso, eu substituí o mistério pela adrenalina, pela aventura, pelas fronteiras desconhecidas.

Se em tempos remotos a grande façanha humana foi cruzar oceanos em busca de novos horizontes, de novos continentes, para o homem moderno a maior proeza é se enveredar por experiências sexuais que nos renovem, que nos façam sentir o pulsar do corpo, do existir. Não nego, afeiçoado leitor, tenho a necessidade de farejar mulheres como tubarões farejam sangue. É a caça que me excita, o desafio.

Estou trocando de carro, mas até que se formalize um desconto a que tenho direito para o meu novo veículo fiquei dependente de táxis, até duas semanas atrás. Um porteiro da minha rua, com necessidade de dinheiro extra, me ofereceu seu automóvel para alugar enquanto espero o desembaraço do meu imbróglio burocrático. Aceitei a proposta e aluguei a viatura do porteiro, um fusca bem cuidado, cor de vinho, com rodas de modelo antigo e rádio com toca-fitas e entrada para CD. Não sou afeito a luxos, prefiro ser prático. A verdade é que um fusca andando pelas ruas chama mais a atenção do que um BMW último modelo. É o que estou reparando nos meus rolés ocasionais.

Sábado à noite, beirando a madrugada. Fiquei na dúvida se seria conveniente sair durante este período de toque de recolher, mas a minha inquietação noturna me lançou às ruas. Para quem possuía um Corolla, entrar num fusca é um experimento quase claustrofóbico. O carro não tem ar-condicionado e o rádio é um provedor de estática. Como não possuo fitas cassetes dignas de utilização, levei uns CDs para não dirigir no silêncio. Encaixo a chave na ignição, piso na embreagem, aciono o acelerador e o fusquinha grita agudo, como se despertasse de um sono secular. Os pneus se movem e ganhamos o negrume do asfalto. A partir de agora, qualquer aventura é possível…

Ligo o rádio e introduzo um CD qualquer. A música invade a cabine, inunda meus ouvidos e faz meu coração acelerar empolgado. A voz de Annie Lennox faz o lobo velho e adormecido que me habita reagir a inércia que tenta domesticá-lo.

Sweet Dreams

O sangue ainda pulsa, eu estava de volta aos sete mares em busca de alimento para a minha alma sem direção. O roteiro noturno de um Rio interditado pelo vírus não nos deixa muitas opções. Peguei a Praça da Bandeira, entrei na Rua Ceará, a minha primeira visita seria ao território onde os homens que mijam em pé: A Vila Mimosa.

Senti dificuldade com a direção do Herbie (o fusca), em determinados momentos parecia que guiava uma carroça puxada por cavalos indomados. Aos poucos, fomos ganhando confiança um no outro, o afeto foi surgindo, até que deslizávamos em harmonia pelos recantos sombrios da cidade. Custei a conseguir estacionar o pequeno fusquinha. Rebelde e de volante pesado, as manobras me custavam um suadouro intenso. Assim que acomodei o carro, pisei com minhas botas gaúchas sobre os paralelepípedos da zona, território sagrado dos libertinos.

Fiquei em dúvida se estava na Mimosa ou no deserto do Saara. Havia tão pouca gente no lugar que era possível dizer que não havia ninguém. O único movimento vinha dos caminhões saindo e entrando do frigorífico. O céu cinza, o ambiente melancólico, tudo fazia com que eu me sentisse personagem de um romance policial, um detetive em busca da loira má. Não demorei muito na Vila, voltei para o fusca e partimos para a Lapa.

No caminho, o CD exala outro som que me empolga. Pitty cantando “Pulsos”. A guitarra faz meu envelhecido coração vibrar junto com os acordes, abro mais as janelas e não me seguro. Cantei.

“Tenta achar que não é assim tão mal, exercita a paciência, guardo os pulsos pro final. Saída de emergência…”

Pulsos

Você está certo, leitor sem fé. O sentimento de existir me invadia, me puxava para fora do corpo, me ressuscitava. Direi algo que poderá parecer um clichê, mas a noite é mágica. Enquanto alguns dormem, outros acordam.

Alcancei a Lapa, me enveredei pela Rua do Rezende na esperança de avistar as mariposas no ponto em frente ao hotel Andorinha. Nada. Estacionei o Herbie, agora com mais facilidade. Deixei o carro e fui caminhar. O boteco da esquina estava com meia porta aberta. O silêncio no entorno encobria a atmosfera com um tom sepulcral. Imaginando que não cruzaria com nenhuma Lei Seca, pedi uma dose da Salinas. Sorvi a cachaça como os Deuses sorvem a ambrosia. Imediatamente, as luzes ficaram mais brilhantes, as vozes mudas se tornaram audíveis. Tomei outro gole e foi quando a vi, a mulher rara de despudorada, flamejante e fugaz: a felicidade.

Das caixas de som do botequim emergiu uma música que eu não escutava há anos: Summertime, com Janis Joplin. Os acordes fizeram a noite ganhar um clima underground naquele pé-sujo com lâmpadas florescentes e homens naufragados.

Summertime

Percebi que não conseguiria nada na Lapa anestesiada por estes tempos hostis. Retornei ao fusca e deslizamos para outros territórios. Pego a rua 20 de Abril e quando me aproximo da rua do Senado vejo balões e a entrada de um sobrado com circulação de vida inteligente. Veio-me a sensação de descobrir um planeta após vagar pela escuridão fria do universo. O Feitiço do Tempo desafiava decretos e imposições, estava aberto.

Alojei Herbie no meio-fio e caminhei em direção àquela colônia mundana. Recebo uma comanda e subo os degraus infinitos. Quando entro no salão, me deparo com um ambiente escuríssimo, as mesas iluminadas por velas, poucos clientes e um número razoável de meninas que eu não conseguia identificar se eram humanas devido ao breu que encobria o lugar. Um cenário de taberna da Idade Média. Sinto dificuldade para enxergar em locais pouco iluminados, fui tateando para encontrar um assento. Esbarro em uma menina que me explica a falta de luz elétrica.

— Bebê, senta ali. A Light cortou a luz, mas o dono já acertou e eles devem religar daqui a pouco.

Sentei-me. Como eu disse, não conseguia enxergar muita coisa, via vultos, alguns arredondados e outros esguios. Uma senhora quase idosa se aproximou, minhas pernas tremeram, perguntou se eu queria beber alguma coisa, pedi uma cerveja. No terceiro latão, uma magrinha jeitosa acomodou-se ao meu lado. Bonita de rosto, mas o corpo de faquir. Naquela altura do campeonato, não importava muito, tudo era divino, tudo era maravilhoso. Sim, leitor sem fé, Belchior transbordava das caixas de som para explicar por que o nome do bordel é Feitiço do Tempo. E ao som de “Apenas um rapaz Latino-Americano“, iniciei o diálogo comercial com a magrinha.

Feita a entrevista básica, decido subir à alcova. Quarto pequeno, estilo cabine, dava para escutar a trilha sonora que vinha da boate. Cauby Peixoto cantava “Bastidores”. A alcova mergulhada nas trevas absolutas. Como conseguiria transar sem enxergar meu combalido pênis e ouvindo Cauby como som ambiente? A magrinha disse que ia pegar suas “coisas” e voltava logo. Fiquei ali, jogado na escuridão, com receio de ser currado. A porta se abriu, só reparei por causa de um fecho de luz de vela que entrou junto com a magrinha. Ela tira a roupa e me espantei um pouco com as costelas salientes da garota, parecia uma daquelas fotos de figuras famintas da Etiópia. Tentei não me concentrar naquilo. A magrinha avançou para o ataque, foi tirando minhas roupas, beijando meu peito, apertando minha bunda, perguntando do que eu gostava com um tom meio satânico. Não nego, amigo leitor, aquilo me assustou.

De repente, a vela apaga, fui lançado novamente à escuridão sem nem sequer saber onde minhas roupas estavam. Senti uma boca no meu pau, quis acreditar que era a magrinha, tentei apalpar a cabeça da menina e encontrei os cabelos. Talvez, haja quem goste, mas a sensação de trepar no breu absoluto não me foi muito agradável para mim. Eu tentava agarrar a magrinha e só abraçava o ar. Foi como sodomizar um fantasma. Comecei a sentir um comichão nas costas, havia alguma coisa no colchão. Formigas? Até hoje não sei. Do nada, senti a magrinha sentar no meu pau, era como se eu estivesse transando com a mulher invisível. Não enxergava nada. Só sensações. A garota se remexia em cima de mim e eu lembrei que poderia usar a lanterna do celular para clarear as trevas, o problema é que não fazia ideia onde teria ido parar as minhas roupas. A magrinha saiu de cima, senti novamente a boca no meu pau. Alguns segundo de boquete e ela me pede.

— Me come de quatro.

Eu ouvia a voz, mas sem saber de onde vinha. Parecia um filme religioso, em que o personagem ouve a voz de Deus, mas não o vê. Tentei achar a menina para comê-la de quatro, palmeei o colchão com receio de ser picado por algum inseto. Depois de uns quarenta segundos, esbarrei em algo que não sabia se era a perna ou o braço da garota, pois ambos tinham a mesma espessura. Fui acompanhando o contorno e finalmente esbarrei com alguma coisa que se assemelhava a uma vagina. Mais quarenta segundos para conseguir colocar a camisinha. Posicionei meu pau, já um pouco exausto da busca, e o introduzi naquela cavidade morna e úmida. Eu poderia estar fodendo com um melão que não saberia. Não havia uma ponta de luz dentro da cabine. Ouvi a menina gemer, imaginei que tinha acertado o alvo. Gozei e é provável que meus espermatozoides ainda estejam perdidos e assustados naquela escuridão.

Fui tateando pela cabine inteira até encontrar a minha calça, tirei o celular do bolso e acendi a lanterna. Foi quase uma reencenação bíblica da Gênese. Faça-se a luz! Eu me vesti e fui me guiando pelas sombras das velas que escorriam nas paredes. Ao pisar no salão, tocava “Como eu quero”, na voz da Paula Toller, algo um pouco mais contemporâneo. As putas, que mostravam saber de cor todas as letras, faziam coro.

“Longe do meu domínio, você vai de mal a pior. Vem que eu te ensino a ser bem melhor…”

Desci as escadas e reencontrei a rua. Respirei profundamente. Alegria de ver as lâmpadas de vapor de mercúrio, pálidas e tristes, se refletindo no Herbie. Acionei o motor, as luzes brilhantes do Relógio da Central serviram de bússola. Insiro um CD e a música transborda. Evanescence com Lithium

Lithium

O sangue pulsava, o coração tocava ao ritmo da bateria e a euforia tomou conta de tudo. Não duvide, a partir de agora qualquer aventura é possível… O libertino vive.

FANTASMAS

FANTASMAS

TREVAS

Chovia fino, o vento gélido cortava os meus ouvidos como fantasmas sussurrando o passado de outras noites chuvosas e frias. Meus passos não estavam certos da direção a seguir, eu caminhava a esmo entre a av. Presidente Vargas e a Marechal Floriano, cruzando com indigentes e outros desorientados. O céu cinza e escuro estava baixo, querendo nos engolir na melancolia atemporal da cidade em decomposição. Não me intimidava, seguia firme, pisando com as minhas botas como um detetive de novela noir. Mergulhado em meditações inúteis, percebi que havia chegado a Rua Leandro Martins, decidi dar uma olhada no Clube 05.

Prestes a escalar o primeiro degrau do sobrado, alguém me pega pelo braço, me surpreendo com o gesto, giro o pescoço e vejo uma negra escultural encaixada em uma justiça roupa de ginástica, dessas muito colantes.

— Vem conhecer a casa em que trabalho — diz a negra bonita.

— Qual casa? — pergunto um pouco confuso.

— É ali mais na frente. Vem…

Eu fui, a menina me puxando pela mão e eu seguindo desconfiado. Ela aponta para um sobrado decrépito, mais para a metade da rua.

— É ali.

Acredite, forista sem fé, a sensação é de que eu estava prestes a entrar no castelo de Drácula e não foi por falta de ver morcegos dando rasantes sobre as poucas árvores que sobrevivem na região. Assim que fui alçar o primeiro degrau, vi uma mancha vermelha imensa na entrada, a garota percebeu o meu foco.

— Isso aí foi uma facada que deram em um cara há duas semanas, mas ele pediu. Vacilão.

Costumo me manter calmo e racional em situações que exalam perigo, procuro não recuar subitamente para não transmitir o medo que possa me tornar vulnerável. Fui subindo com a menina que disse se chamar Adriele. O prédio denunciava o próprio abandono a cada lance da escada, teias de aranha, um odor de mofo, creio que avistei até percevejos se arrastando pelas paredes. Alcanço um salão escuríssimo, um cheiro de erva tão forte que chegou a me tontear, me vi como o capitão Kirk desembarcando em um planeta hostil. A escuridão só me permitia identificar vultos, receei que fosse uma cilada, seres de desenhos arredondados cruzavam o espaço diante de mim.

— Fica à vontade. Se quiser ficar comigo me chama, mas pode ficar à vontade — Adriele tenta me confortar.

Impossível ficar relaxado naquele breu. De repente, sinto uma lata gelada encostando em meu braço.

— Taí a cerveja, patrão. Dez reais. Paga agora — uma voz nas trevas me cobrava pelo que não pedi.

Paguei, bebi e saí de fininho tentando encontrar a saída através do tato. Ficar dentro daquele ambiente quase me exigia um tanque de oxigênio, a atmosfera insalubre que misturava o mofo à maconha se fazia quase irrespirável. Quando ganhei novamente a rua quase gritei de alegria por ter sobrevivido. Retomei a ideia original de ir ao Clube 05.

CLUBE 05

Da porta às margens da calçada, o Clube 05 migrou para o alto de um sobrado, talvez seja tradição da área obrigar o cliente a praticar alpinismo. Subi ao topo do sobrado, alcancei a pista sem fôlego e transpirando 50% da água do meu velho corpo. Há algo interessante que ocorre ao atingirmos idades mais avançadas, a mente não envelhece e o corpo demonstra-se vingativo dessa juventude espiritual que não acompanha a sua decadência.

A geografia interna do 05 mudou, um imenso bar no centro do salão ocupa quase todo o espaço da boate, deixando disponíveis apenas os pequenos vãos do seu entorno. Uma gorda graúda passou a me encarar insistentemente assim que entrei, eu tentava não dar trela, circulei o bar, olhei as mulheres disponíveis, me deparei com um self-service de feijoada no meio do caminho, exposto a cuspes, moscas e outros bichos, sendo devorada vigorosamente por alguns sujeitos. A gorda me seguia com os olhos, sorria quando meu olhar cruzava com o dela, aquilo era mais assustador do que o castelo assombrado do qual eu havia escapado. Ao me ver acuado entre a feijoada e o banheiro, ela se aproxima.
— Dante? Tá lembrado de mim, não?

Busquei me recordar dos pesadelos que tive durante a minha vida de sono, mas nem neles encontrei uma mulher como aquela.

— Sou a Marina, trabalhei no 47 lá da Praça da Bandeira. Lembra?

Marina foi uma mulata descomunal que eu saí por quase um ano inteiro, trabalhava no extinto Clube 47, que ficava na Av. Maracanã. Conhecido pela alcunha de Clube da Rabada, abrigava mulheres que tinham o sexo anal como especialidade, Marina era uma delas. Olhei aquela mulher de grandes proporções e quase não consegui reconhecer as recordações da bela Marina ocultas sob aquele excesso de células adiposas.

— Oi, moça. Quanto tempo. Você está diferente.

— Engordei, né? — responde-me sorrindo.

— … — Preferi o silêncio a confirmar a tragédia.

— E como você tá? — me pergunta.

O papo se estendeu, relembramos os bons tempos, volta e meia ela virava espontaneamente a bunda para que eu avaliasse. Incrível, Marina estava enorme, mas a bunda continuava irretocável, linda, suculenta, coisa de capa de revista.

— E aí? Vamos matar saudade? — ela me provocou e virou a bunda novamente.

Sim, afeiçoado leitor, aquela bunda causou em mim um efeito hipnótico e me convenceu a relevar a carga pesada que a carregava.

— Ainda rola o anal? — perguntei.

— Claro. Para você, sempre rola.

ALCOVA

Não sei o que aconteceu com Marina nesses anos em que nos perdemos de vista, mas quando ela tirou a roupa exibiu uma barriga inchadíssima, algo fora do normal. Mudei o foco para não brochar diante daquela deformidade. Os seios e a bunda da mulher não foram afetados e foi neles que me concentrei. Marina se enroscou em mim com um ardor afobado, num golpe rápido, digno de sumô, me pôs deitado e veio por cima para cavalgar no meu tronco. O peso imenso esmagava a minha virilha. Quando ela arriava o corpo para me beijar, o mundo quase se apagava pela asfixia. Não perdi muito tempo, pois o tempo poderia representar o meu obituário prematuro, pedi que Marina ficasse de quatro, ela atende a minha vontade. A vista dela de quatro se mostrava mais saborosa, o rabo arrebitado, redondinho, ela se enxarca de KY e penetro naquele orifício que abrigou gerações penianas. O altar é o cu, preconizava o Marquês de Sade. Embalo nas estocadas, Marina geme baixinho, gozei com a ansiedade de quem escolhe terminar rápido com a história.

Conversamos mais um pouco, trocamos telefones que jamais serão contatados e nos despedimos. Saio da boate com a av. Marechal Floriano deserta e encoberta por penumbras, minhas botas não me deixam na mão e aceleram a velocidade, entro em um táxi parado num ponto da Uruguaiana. As luzes passam se refletindo no para-brisa como as horas que escorrem em uma ampulheta. O libertino vive.

DONA GIOCONDA

DONA GIOCONDA

– …O Amor é calmaria que sucede a tempestade da Paixão, é o tédio inevitável.

De antemão, perdoo-lhe o ceticismo, mas quem emitiu essa frase tão elaborada foi uma antiga rameira, veterana da Vila Mimosa, nos tempos em que esse meretrício ficava no Estácio, próximo ao que hoje é a estação do metrô.

Dona Gioconda, assim ela ficou conhecida na Vila, uma prostituta que devia navegar pelos sessenta anos e continuava na ativa. Diziam que ela não fazia mais programas, que havia alcançado a fama com o apelido que recebeu dos intelectuais de prostíbulo: o oráculo da zona.

Seu talento como psicanalista de bordel espalhava-se, de boca em boca, entre os neuróticos e amantes desiludidos da Grande Tijuca, encontraram nela uma terapia alternativa para os destemperos da vida. Contava-se que os clientes a procuravam somente para desabafar e ouvir conselhos.

Dona Gioconda ganhou vulto de conselheira sentimental para homens, seu consultório funcionava numa baia dentro da própria Mimosa. Registra a lenda que ela tinha formação superior em psicologia, mas preferiu continuar ali, naquele covil do sexo, o grande celeiro de perturbados, seu manicômio particular.

Eu ainda não poderia imaginar que, ao descer em carreira desgovernada por uma ruela do morro do Tuiuti, estaria iniciando o meu caminho até essa senhora.

O episódio começa num sábado à noite, dia em que eu me esgueirava pelos Forrós do Rio, cumprindo a sina de predador sexual.

Poucos conseguiriam superar o estilo brega que eu, um carioca, criei na minha fase de forrozeiro. Eu vestia meu uniforme de caça: o tom era sempre escuro (preto ou cinza, a camuflagem da noite), camisa social fechada até o último botão da gola, calça de linho, sapatos brilhando na graxa e um blazer para completar o visual. Fico quente só de lembrar. Às vezes, aparecia alguém para me perguntar se eu era pastor.

Os forrós do Rio, no meu tempo, não tinham ar-condicionado e, com essa indumentária, no verão, eu virava uma massa liquida, empapado de suor, circulando pelo salão sob a trilha sonora do triângulo e da sanfona.

Eu estava abraçado com a cerveja e esperando o Teixeirinha, que nunca era certeza de aparecer. No nosso último contato, ele avisou que iria negociar a compra de uma coleção de discos do Cauby Peixoto com um camelô de Copacabana.

O Teixeirinha é um conservador, sua filosofia consiste em crer que só as antiguidades possuem virtudes. Tem repulsa ao moderno, seu carro é um Corcel dourado antiquíssimo e seus discos são os velhos longplays. Trata com aversão os CDs, só ouve vinil ou fita cassete.

Beijava a terceira garrafa de cerva quando percebi uma fêmea quase ao meu lado. Meu fetiche por mulheres altas e esguias ativou todos os alarmes. Uma morena de cabelos cacheados que desabavam pelas costas, calça justíssima delineando suas ondas perfeitas e um sorriso largo à Julia Roberts. Apelei para a falta de criatividade e pratiquei o uso da lábia cretina.

– Oi, eu juro que não é cantada, mas eu tenho certeza de que conheço você, estou aqui tentando lembrar… A gente não se conhece?

– Não sei, quase não venho ao Rio, sou de Cabo Frio.

– Hum… Qual seu nome?      

– Suzana.       

– Toma uma cerveja comigo, Suzana?         

– Pode ser.     

A receptividade foi total. Essa era a vantagem dos forrós, não havia mulher impossível.

O período da conversa durou por umas quatro garrafas de cerveja e alguns segundos do Martini que ela pediu para arrematar. Suzana era boa de copo. Ela me disse que precisava ir embora e perguntei qual seria o seu destino.

– São Cristóvão, na São Luiz Gonzaga, quase chegando em Benfica, Largo do Pedregulho.

– Posso levar você? Não estou de carro, mas vamos de táxi, moro perto.

– Ah! Não é preciso, eu volto com uma amiga, de ônibus.

– Que isso! Vou com você. Está muito tarde e é perigoso andar de ônibus.

– Tudo bem! Vou falar com a minha amiga e já volto.

Regressou sem a amiga, que estava encarrapitada a um cearense e não pretendia deixá-lo. Saímos nós dois.

Chegamos à rua e vejo o meu herói, o Teixeirinha, enlaçado a uma garrafa de batida e recostado no seu Corcel salvador. Era a minha carona! Levamos Suzana até São Cristóvão e conquistei a recompensa de alguns beijos que devoraram parte do meu coração.

Entrei em casa apaixonado, passei toda a semana seguinte pensando em Suzana, tentei encontrá-la no telefone que havia me deixado, era um número para recados, mas ela nunca me retornava. Fiquei obcecado.

Na noite de sexta-feira, insisti com o Teixeirinha para que ele me levasse a São Cristóvão, onde a menina falou que morava. Eu ia tentar a sorte.

Confesso que tive uma impressão sombria do Largo do Pedregulho, a única referência deixada por Suzana para que eu pudesse tentar localizá-la.

Estacionamos em frente a uma barraca de cachorro-quente, constatei que seria quase impossível rever minha musa. Foi quando o milagre aconteceu e o Teixeirinha, numa intervenção divina, interrogou a dona de um carrinho de hot-dog.

– A senhora conhece uma garota chamada Suzana, ela mora por aqui? É alta, magra, cabelos cacheados…

– Suzana? Conheço sim! Ela mora do outro lado, tem que subir aquela entradinha ali.

A entradinha era um acesso ao morro do Tuiuti. É engraçado como nomes inocentes tomam a dimensão de uma placa com o aviso de “afaste-se”. No geral, alguns nomes de morros sempre me pareceram ter um som atemorizante: Borel, Juramento, Chapéu Mangueira, Complexo do Alemão, Urubu, Jacarezinho etc. Quem batizou esses lugares?

Sob os protestos do Teixeirinha, decidi subir. A moça do cachorro-quente indicou que era o primeiro sobrado rosa do caminho, que não tinha perigo. Confiei!

Toquei uma campainha e ouvi uma voz feminina vindo de cima, de um terraço.  

– Quem é?      

– Eu estou procurando a Suzana.

– Quem quer falar com ela?

– Um amigo.

– Mas a Suzana daqui é a mulher do Lobão! É com ela mesmo que deseja falar?

– Huumm, Ahmm, Huumm… Acho que estou no endereço errado. Desculpe! – gelei e fui tomado pela súbita consciência de que estava, literalmente, na toca do lobo.

Em seguida, passa ventando por mim, numa correria ruidosa, uma fila de homens com cara de poucos amigos. Desciam a ladeira numa marcha tribal e assustadora. Não me viram. Decidi segui-los no mesmo ritmo, como se fosse um deles.

Desemboquei no Largo do Pedregulho novamente, suava frio.

– Teixeirinha, liga o caro. Vamos vazar daqui, vamos vazar!

O susto havia me devolvido a razão, não queria mais saber daquela história. Eu havia descoberto que vivia num mundo onde ovelhas se casavam com lobos.

– Cara, sai dessa depressão! – dizia o Teixeirinha tentando me consolar durante o percurso para Tijuca – vou te levar pra falar com uma pessoa que me ajudou na época que briguei com a Carla (namorada do Teixeirinha).

– Pô, amigo! Não quero falar com ninguém sobre isso. Passou! Vamos embora!

Quando vi, estávamos parando o carro perto da Vila Mimosa.

– Teixeirinha, vai pegar mulher aqui?

– Você vai conhecer uma amiga minha.

– Que amiga?! E, por acaso, você tem amiga na Zona?

– Nunca lhe contei, mas tem uma mulher aqui que é um espanto. Dona Gioconda! Conversa com ela, você vai gostar de conhecer.

A casa era logo no início da Vila. O Teixeirinha anunciou no balcão do bar que desejava uma consulta. Dona Gioconda estava ocupada, teríamos que esperar.

Nossa vez! O Teixeirinha me mostrou o caminho. A baia da Dona Gioconda era algo semelhante a uma loja de produtos esotéricos. O cheiro de incenso dominava a atmosfera. Havia uma cama de solteiro repleta de almofadas e com uma poltrona ao lado. Budas, Gnomos, crucifixos, imagens de São Jorge e da Nossa Senhora de Aparecida espalhavam-se por todos os cantos.

Dona Gioconda era uma mulata cinquentona, gordinha, entalada num espartilho preto, os cabelos num corte Chanel e pintados de um loiro platinado que davam um toque futurista a sua imagem.

– É a primeira vez comigo, meu filho?

– É sim.          

– Sabe que aqui a cama é para a conversa, não é, meu filho?         

– Sei, me disseram – o Teixeirinha havia me adiantado o esquema.

– Deita, meu filho – deitei e ela recostou-se ao meu lado, me fazendo cafuné – o que está incomodando o seu coração, menino?

Dona Gioconda tinha uma voz rouca e maternal, fazia você ter vontade de se abrir.

– Está tudo dando errado, Dona Gioconda. Nada dá certo. Não consigo firmar com nenhuma mulher.

Dona Gioconda então se levantou e ligou um toca-fitas, um som de batuque invadiu o ambiente.

– Vou chamar o “Dr. Fróidi” pra conversar com você, moço. Relaxa que vou chamar o Dr. – e o som do batuque que exalava do toca-fitas ficava cada vez mais frenético.

Imaginei que ela fosse chamar outra pessoa para entrar no quarto, mas não era isso.

Dona Gioconda realizava um ritual em que acreditava ser possuída por Freud. Isso mesmo! Ela baixava Sigmund Freud!  Sentava na poltrona ao lado da cama, fechava os olhos, balançava o corpo no ritmo da batucada e ele descia: o “Dr. Fróidi”.

– A Gioconda me disse que seus relacionamentos são sempre fracassados. Por que você acha que isso acontece? – o Dr. havia chegado, a voz de Dona Gioconda era outra, tinha sotaque e tudo.

– Não sei, acho que sou inseguro – respondi com voz trêmula.

– Você não deve declarar guerra aos seus complexos, rapaz! Deve entrar em acordo com eles – eu estava sendo analisado por Freud dentro da Zona. Era o apocalipse!

– Eu só quero encontrar uma mulher que aconteça, Dr.! Uma mulher pra amar, formar família… – Entrei no clima.

– Somos feitos de carne, meu jovem, mas temos que viver como se fôssemos de ferro. Para que amar? Viva suas paixões, elas são a vida. O amor é calmaria que sucede a tempestade da paixão, é o tédio inevitável.

A mulata sacudiu o corpo, soltou um suspiro longo e estava de volta. O “Dr. Fróidi” se foi.

– Falou com o Dr., meu filho? Ele ajudou? 

– Falei! Ajudou! Obrigado!  

– Vá em paz, meu menino.

O velho Shakespeare tem razão: “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.”

Dona Gioconda era dublê de Freud.

Fiquei grato ao Teixeirinha por me proporcionar tal visita. Foi a loucura que me trouxe equilíbrio às ideias.

Segui minhas paixões sem nunca mais esquecer daquela enfática lição: o amor é o tédio inevitável…

DIÁRIO DE BORDO

DANTE E BEATRIZ

Se um drone realizasse uma panorâmica aérea, veríamos um minúsculo ponto se deslocando pelas calçadas semidesertas do Centro da Cidade, habitado somente por almas esquecidas dormitando sob as marquises. O minúsculo ponto é o libertino que caminha indômito, como quem cumpre uma missão, descobrir novos prazeres, encontrar novos bordeis, indo aonde o homem comum jamais esteve. Eis que vemos o libertino acompanhado da sua solidão, da sua essencial solidão, da sua indissociável solidão.

Saí tarde da bucólica Tijuca, a Lua cheia ia alta, imponente no céu, refletindo seu brilho prateado no verde adormecido dos alpes tijucanos. Acelerei o Sucatão e o ronco do motor abriu caminho através da poeira negra do asfalto. Insiro o pen drive no aparelho de som do carro e a música que brota das caixas é a mesma que ouvi dias antes na boate Palácio de Cristal, na Lapa.

I Wanna Go

Abro as janelas e deixo que o vento morno me atravesse, o corpo balança com as batidas do som, a vida passa como num filme frenético se descortinando no para-brisa. Quem pensou que eu desistiria, fracassou. Dante is alive. Estaciono na deserta rua Buenos Aires e finco minhas botas na calçada em direção a 65, na rua do Rosário. Quando fui me aproximando da entrada da Termas, tudo me pareceu tão desolado que desisti, dei meia volta e espichei meus passos até a Uruguaiana.

Subo os degraus do sobrado 210 e encontro a casa com pouquíssimo movimento, com mais carrancas do que mulheres. Uma mulata, que foi colossal no passado, que tanto maltratou meu coração, se aproxima para me cumprimentar, mal a reconheço, gordinha, cabelos desgrenhados, um ar de melancolia… o mundo gira e é redondo. Vejo uma novinha bunduda, bonita de rosto, pergunto se faz programa fora, pois não suporto os quartos da 210. Não faz. Não sobrou nada para ver na 210, ganho novamente as ruas.

Caminho até a rua da Alfândega, o relógio marcava 21h. Vou até o Clube 119, subo os infinitos degraus, quando alcanço o salão, quase as vias de um infarte, não havia ninguém, nenhuma mulher, apenas um sujeito com semblante depressivo bebendo à beira do balcão. Corri dali. Voltei ao Sucatão e à bucólica Tijuca. Entro em uma pizzaria e substituo os prazeres da carne pelo sabor de uma pizza brotinho de muçarela. Segunda-feira, definitivamente, não é dia de puteiro. Uma melodia transpirava como música ambiente: Moby – Extreme Ways.

Extreme Ways

Dante is alive.

O CLONE

O CLONE

— O senhor não é aquele ator da Globo? Aquele… Aquele antigo… Antigo, mas o senhor está bem de aparência, tá?… Francisco Cuoco. É o senhor, né? Tira uma selfie comigo?

Olhei ao redor para confirmar se mais alguém ouvia o absurdo que a menina de topless estava cometendo, não havia ninguém olhando. Aceitei fazer a selfie como Francisco Cuoco. Por que eu iria estragar um sonho?

— Minha vó não perdia as suas novelas. Até hoje ela comenta sobre o senhor.

Como o assédio começou a ficar um pouco inconveniente, dei boa tarde e subi ao próximo andar. Havia um movimento grande no local; uma quantidade maior de mulheres também, desde a minha última visita. O número de garotas jovens exibindo peitinhos-agulha é enorme. O topless virou um atrativo diferencial na Rua Uruguaiana, 24. Fui procurar uma garota com quem eu saí diversas vezes antes da pandemia, infelizmente não a encontrei. Trashes mais pesados como o 24 da Uruguaiana são um risco para o libertino idoso, muitas garotas ali fazem sexo como quem prepara um sanduíche de mortadela, vai no automático. Eu, no entanto, estava disposto a arriscar.

Subir todos os andares do prédio, girando naquelas escadas em caracol, é tarefa dura para os meus precários músculos cardíacos, mas fui indo. Cheguei a me imaginar levando uma barraca de camping para poder dar um intervalo de descanso entre um andar e outro. Este trash da Uruguaiana é um Pico Everest do sexo. A vontade, quando se chega ao último andar, é fincar uma bandeira e comemorar explodindo uma Chandon. De repente, vejo uma loirinha com um par de seios que pareciam um photoshop vivo, ela também me vê e sorri. Não precisei me aproximar, ela se aproximou (a coisa tá feia).

— Nossa. Como o senhor parece com aquele “repórti” da “Grobo”.

Tá de sacanagem, ser confundido com terceiros duas vezes no mesmo dia é demais, o florista vai dizer que é mentira. Acredite, forista sem fé, é verdade. Não é a primeira vez que acontece comigo.

— Que repórter, minha filha? — tento descobrir, mas já sei quem é.

— Num lembro o nome dele.

— André Luiz Azevedo? É esse?

— Esse! Esse! É o senhor??? Tá sumido.

Quando ela disse “está sumido”, não entendi. Se referia sumido da Globo ou do 24? Preferi não esticar o assunto e emendei na entrevista. A moça se mostrou receptiva, confirmou oral sem capa, beijo na boca e um anal se a ereção permitisse. Amélia é o nome que usa. É, você leu certo, o nome é Amélia. Decidi me embrenhar com ela numa das baias da boate. O problema do 24 é que as baias ficam no mesmo espaço da pista, então você faz sexo com trilha sonora, geralmente é Belo, Chitãozinho e Xororó, Anitta e outros bichos. É necessário manter uma concentração sobre-humana para a peteca não cair.

A menina iniciou o assunto com um boquete espetacular, viajei na Enterprise, entrei em velocidade de dobra e quase usei o teletransporte para o Éden antes do tempo. Segurei a onda dela antes que me causasse ejaculação precoce. Pedi para que ficasse de quatro. Quando eu ia meter, aumentaram o volume do som lá fora.

”Prepara que agora é a hora
Do show das poderosas
Que descem e rebolam…”

Puta que pariu. Dei uma rateada, mas Pikachu conseguiu reestabelecer a força auxiliar e alcancei a sagrada penetração. A menina gemia no ritmo do “Show das Poderosas” e eu fazia um exercício budista para não perder o pau ereto. Meti afobadamente, o objetivo era gozar com aquela batida sonora na minha cabeça, um desafio olímpico. Gozei. A menina se levanta, sai da cabine sem dizer nada (de praxe nesses locais) e eu me visto para ir embora.

Ganho as ruas e o anonimato, respiro aliviado. Caminho até a Casa do Café Capital, na nostálgica Av. Marechal Floriano, peço um cafezinho e me sento para contemplar a vida. Do outro lado do salão, um velhinho me encara como se me conhecesse…

— Porra. De novo não. 

CEMITÉRIO DO CAJU

CEMITÉRIO DO CAJU

O número dos que nos invejam confirma as nossas capacidades.

—Oscar Wilde

O silêncio se erguia tão absoluto que poderia ser comparado ao eco de um abismo insondável. Fazia frio, eu vestia um antigo sobretudo que me cobria quase até os joelhos, as botas reverberavam meus passos sobre a calçada e a noite cinza insinuava rejeitar o brilho das lâmpadas sobre o asfalto. Sozinho, sem saber o que procurar, eu fugia da maldição da insônia. Talvez, não procurasse uma mulher, mas um espelho que me obrigasse à redescoberta de mim mesmo, que me resgatasse daquela deriva urbana. O libertino não é alguém que atravessa a noite, ele é a noite, a sombra, a calmaria que camufla o caos, é alma derivante que busca, mas jamais encontra um porto. O libertino é um corsário do sexo.

Há anos não me arriscava por aquele perímetro do cemitério onde conheci Gisa, uma ruiva quase albina que marcou minha memória e o meu combalido pênis com o seu boquete sobrenatural. Acredite, forista sem fé, não se esquece uma mulher como Gisa, você pode tentar evita-la, mas um dia retorna ao local do crime. Se eu não tenho medo de andar por lugares como o Caju? É claro que tenho receio, mas como revelei por diversas vezes, atualmente o meu prazer está mais na adrenalina do que no gozo. A mesmice serve bem aos que não chegaram aonde cheguei, eu tento restaurar o mistério e o pulso acelerado que habitaram a juventude da luxúria.

— Que isso, Dante? Existe ponto de putas perto do cemitério? — pergunta-me o forista cético.

Afirmo que sim, existe há muitos anos. Os poucos que se aventuraram me escreveram surpresos por terem realmente encontrado mariposas rondando no território da última página de todos os homens, mulheres que se movem em revoada pelo entorno do campo santo. O cético enxerga o céu, mas duvida das nuvens. Vá e veja. É um ponto destinado aos caminhoneiros e taxistas que transitam por ali. Os uivos não brotam das assombrações, emergem da garganta de alguma criatura destemida que atingiu a ejaculação pelos lábios de uma puta carpideira.

Estacionei o Sucatão próximo a uma floricultura em que estavam descarregando coroas de flores. Nas ocasiões anteriores, sondei o local de dentro do carro, não desembarquei, mas desta vez preferi ir a pé e ver por outro ângulo as moças que trabalham nos arredores do Caju. Não pense que eu seja um valente, afeiçoado forista, sinto medo, mas é o medo que bombeia o sangue, dilata as pupilas, é ele que me excita. Avistei uma pequena colônia de putas quase em frente à entrada do Cemitério de São Francisco Xavier, percebi olhares que estranharam um homem bem-vestido vagando na área, meu faro me empurrou em direção a uma menina de corpo curvilíneo e seios à mostra. Apressei-me para abordá-la.

— Como eu faço para sair com você?

— Anjo, é setenta o boquete e cem o programa.

— Pode ser no carro? Estou estacionado na floricultura.

— Pode, mas melhor parar em frente a marmoraria.

Reparei que o estacionamento da marmoraria onde fiquei com a Gisa pela primeira vez ainda funcionava.

— Qual seu nome? — perguntei.

— Kelly e o seu?

— Dante, me chamo Dante. Vamos? Aceito o boquete.

De topless, Kelly caminhou comigo até o Sucatão; ao nosso lado, as grades vazadas do cemitério revelavam covas, jazigos e anjos heroicos. Não identificava imagens do demônio, ele estava ao meu lado. Entramos no carro, Kelly me ofereceu os seios irretocáveis e mamei como um moribundo imaginando beber a ambrosia dos Deuses, a menina fechou os olhos, gemeu, girou as mãos sobre a minha calça, afrouxou o cinto, abriu o zíper, pegou meu combalido pênis e o engoliu com ânsia. Um boquete inenarrável, sem preguiça, que dissimulava tesão legítimo. Escalava a minha glande com a língua e despencava como uma praticante de rapel até a raiz do meu pau. Eu estava em delírio, vendo crucifixos imensos e torres góticas despontarem diante do para-brisa. Gozei num último suspiro, meus espermatozoides flutuaram como fantasmas, lambuzaram os lábios de Kelly, o painel do carro e o meu abdômen. Paguei a garota, ela saiu e eu tentei controlar a respiração para recuperar o fôlego.

Refeito, girei a chave do automóvel, pisei na embreagem, acelerei e ganhei a Avenida Brasil. Inseri um disco aleatório no cd-player, um som nada celestial inundou a cabine e minha cabeça dançou desafiando a finitude. A vida não tem reprise.

Culture Beat – Mr. Vain

O Sucatão zunia contra o vento frio que vinha de todos os lados. Se existe vida após a morte, ela faz ponto em frente ao cemitério. Creia, a partir de agora qualquer aventura é possível.

#Libertine-se

CARTA DE UMA PROSTITUTA SUICIDA

CARTA DE UMA PROSTITUTA SUICIDA

1

Há pouco, caminhei pela areia até a beirada da praia, sempre gostei de sentir as lambidas das marolas cansadas molhando meus pés, a água está morna e convidativa.

Nunca apreciei escrever, mas decidi improvisar estas palavras, rascunhar meus últimos pensamentos num guardanapo. Toda vida é um rascunho.

Nasci aos 27 anos, quando cheguei de Juiz de Fora para morar em Copacabana. Quem me pariu foi a maresia da praia do Leme. O mar me deu consciência do mundo, plantou em mim o infinito, a minha alma.

Havia economizado algum dinheiro, era pouco. Consegui me instalar no quarto de um apartamento na Barata Ribeiro, a dona era uma loira com olhos de ganância, se chamava Vera. Pelas mãos dela, fui levada às boates e às luzes da noite. Rápido, me acostumei ao toque lascivo dos homens, aprendi a cobrar pelo prazer que eu podia lhes proporcionar. Um dia me chamaram de prostituta e descobri o que eu era.

Falavam da minha beleza, elogiavam meus olhos, meu corpo, meus cabelos…  Deram-me um nome e esqueci meu próprio nome. Virei outra.

Conheci os vícios, aqueles que nos fazem conseguir ser o que não somos.

Um dejà-vu me atormenta, tudo me parece irreal. É a solidão. A solidão é o prefácio do existir. Só me estranho quando estou sozinha.

Daqui da areia vejo os prédios que margeiam a orla, pontos de luz que fogem pelas janelas, denunciando vidas que não são a minha, constelações artificiais sobre o asfalto. Eu fracassei. Queria alguém agora que me chamasse de prostituta, eu precisava lembrar-me do que eu era.

Aos 35 anos, conheci Omar, foi Vera quem nos apresentou. Ele quis reescrever meu rascunho. Levou-me para uma quitinete, me deu uma aliança e disse que cuidaria de mim. Chamava-me de filha. Era velho, nunca recebeu uma visita. Zelei por ele durante dois anos e o encontrei morto numa tarde de sábado. Ele me deixou seus bens: sua quitinete, uma mísera pensão e uma poupança modesta.

Certo dia, reencontrei Vera no calçadão, fazia uma década que não nos víamos. Ela se emocionou, me abraçou forte e tocou meus lábios num beijo roubado. Estremeci como se um projétil houvesse me atingido. Nunca nenhum toque me abalara tanto. Marcamos de nos ver no dia seguinte, mas ela não apareceu, jamais descobri seu paradeiro. Normal para quem é da vida. Prostitutas evaporam como a água que entra em ebulição.

O espelho revelou meus olhos confusos, perdidos entre sulcos e rugas de um rosto precocemente arado pelos anos. O tempo me fez outra novamente. Necessitava de alguém que me reconhecesse como prostituta. Nunca compreendi o fim da minha beleza.

Sou um calendário de dias vazios, todos iguais. Dejà-vu do nada num caldeirão de néon em Copacabana. Como não sei o que virá pela frente, vou descrever como imagino o meu epílogo…

2

Depois de alguns devaneios, ela ingere alguns comprimidos com aquela serenidade de quem se decidiu. Entra no mar e sente o carinho aconchegante das ondas. Lembrou-se do abraço forte de Vera a puxando para junto de si, sente o beijo que a fez pensar ter descoberto a paixão. Ficou boiando alguns minutos, parada, quis apenas sentir a sedução da água envolvê-la. De um lado, havia o negrume de um horizonte escondido. Do outro, a praia e o brilho do asfalto. Quis lembrar-se de alguma coisa, mas a mente já embotava. Só a recordação de Vera e do beijo insistiam em ser seu epitáfio. Os seus membros iam sendo dominados pela dormência, ela reagiu com braçadas fortes em direção a escuridão. Uma paralisia a tomou, avistou o céu e as verdadeiras estrelas, sua visão escureceu. O oceano gelou… Do calçadão, quem olhava para o mar não via ou ouvia nada além do breu pontilhado pela pálida espuma das vagas que quebravam surdas na areia. O silêncio era a luz da escuridão…

CANCELA PRETA (BANGU)

CANCELA PRETA (BANGU)

E assim, ao sair de mais uma visita à Vila Mimosa, decido imbicar pela Leopoldina e percorrer a Av. Brasil, para conferir a dica de um amigo Taxista, um lugar chamado Cancela Preta.

A Cancela Preta não chega a ser outro Planeta, mas é quase um Satélite da Terra, tal sua distância. Fica no limbo, embolada entre Padre Miguel, Realengo e Bangu. Não sei especificar sua localização, mas chega-se lá pela árida Av. Brasil e é indicada pelas sinalizações.

Quando caí no acesso da Brasil que desembocava na penumbrosa Cancela Preta, me dei conta que talvez fosse um lugar mais propício para caçar Vampiros do que mulheres. Não tinha jeito, após meia hora cruzando o asfalto, eu estava na Cancela Preta e, logo de cara, tive uma visão.

Creia, leitor sem fé! Num recuado de pista, dentre várias meninas, havia uma loira saradíssima, vestida com top e calça de ginástica, fazendo ponto num local batizado como Cancela Preta. Eu nem sei se acredito em mim mesmo quando conto isso, mas é a mais pura, translúcida e nutritiva verdade.

Seu nome é Laura, pedi que entrasse no carro e começamos a conversar.

Com este corpão, você deve fazer academia todos os dias! – Inicio minhas perguntas cretinas.

Não tenho dinheiro para a Academia. Comprei uns pesos na Casa & Vídeo e malho em casa.

Impressionante! A força de vontade faz milagres! Não me emocionou pelo rosto, mas pelo corpaço.

Tratei com ela o presente. O Sucatão mergulha no breu até o Motel Carbonara, também na Brasil, altura de Bangu. Peço um apartamento simples.

Introduzo a chave, abro a porta do quarto, acendo a luz e ouço um grito estridente… Era a menina que berrava e corria desesperada para o banheiro, perseguida por uma nuvem de mosquitos canibais que despertou quando entramos. Ao verem o primeiro ataque frustrado, a mosquitada partiu raivosa para cima de mim, agora era eu quem gritava e corria. Protegi-me com o cobertor, ao mesmo tempo, agitava o travesseiro para espantá-los. Consegui abrir a janela e ligar o ar-condicionado.

Em poucos segundos, fui semidevorado pelos hematófagos, mas venci uma das sete pragas da Cancela Preta.

Exausto, bati à porta do banheiro para avisar que a mosquitada havia feito um recuo estratégico. Laura abre a porta e sai de calcinha minúscula e com os pequenos seios durinhos expostos. Que delícia!

Uma perna malhada da moça devia dar duas da minha; barriga tanquinho; bunda de pedra e arrebitada; braços fortes e pele macia.

Começamos nos beijando, ela tem um beijo gostoso. Depois, desceu lambendo minha barriga, abocanhou meu membro e sugou-me como os mosquitos hematófagos que tentaram secar meu sangue.

Peço a minha posição favorita e ela fica de quatro. A visão daquela bunda trabalhada com pesos da Casa & Vídeo me deixou atordoado. Comecei a meter, a garota não gemia, arfava. Senti que ainda resistiram alguns mosquitos desertores da tropa que invadiu o quarto, volta e meia eu era assolado por picadas, mas o tesão era forte e gozei sem medo.

Deixamos o hotel e eu desovei a Laura novamente na Cancela Preta.

De volta à Av. Brasil, acelero o Sucatão. Tive a impressão de ver uma nuvem de insetos nos seguindo. Não, não podia ser! Era o trauma da situação vivida que me iludia. Voamos de volta para casa!

Até o próximo episódio…

Boate Sinônimo (Lapa)

BOATE SINÔNIMO (LAPA)

*Adentrando pela velhice, quando num dia tardio eu desaparecer, restarão os arquivos dessas memórias escritas nos fóruns e no livro que deixei sobre a vida mundana (O Paraíso de Dante). A morte de um Highlander nunca pode ser descartada, vi foristas falecerem de súbito, boêmios que hoje são lembrados somente por aqueles que compartilharam da companhia de quem muitas vezes levava uma vida dupla. Somos folhas caindo da árvore da existência.

Estava aos pés da madrugada tomando meu conhaque num pé-sujo na esquina da obscura Rua Ubaldino Amaral com Mem de Sá, na Lapa. O movimento intenso da calçada era ignorado pelos bêbados do balcão, todos debruçados sobre a vitrine de ovos coloridos e de uma gordurosa rabada que prometia um infarto fulminante a quem a ingerisse. Eu estava feliz agarrado ao copo, observando o entorno, misturado à alienação dos ébrios. Certa vez, um ancião de alto teor etílico me ensinou que o dia é a rotina, o trabalho, a preguiça da praia; já a noite é o imprevisível, o gozo, a pele em contato libidinoso, é o mistério, a perversão.

Eu tinha bebido tanto que começava a sentir dificuldade em focar os olhos num ponto fixo. A felicidade do álcool atordoa, obstrui os sentidos. O meu estado de suspensão animada não me impediu de ver a mulata que passou me encarando, quase me desafiando para um duelo sexual. Paguei esbaforido a bebida e saí no encalço da menina que pingava sensualidade a cada rebolado que a impulsionava para frente. Confesso, afeiçoado forista, eu fazia um esforço sobre-humano para me manter em linha reta, lutei heroicamente contra a sinuosidade dos meus pés. A garota parou em frente a um sobrado rosa, entregou um papel e entrou. Avancei na intenção de permanecer no seu encalço.

O sobrado rosa era uma boate de nome “Sinônimo” (a criatividade dos nomes ainda me espanta). Comprei um ingresso, entreguei ao porteiro, fui revistado e entrei. Gays, simpatizantes e provavelmente alienígenas me aguardavam no interior. O lugar tinha dois andares, dois ambientes. No térreo ficava o bar com música ao vivo, gente apinhada, um cara perto do caixa me mostrou a língua como se fosse uma serpente erótica. Assustador. Por alguma dessas coincidências sacanas do destino, o caixa da “Sinônimo” era um antigo barman da Mosaico, precisei de uns dez minutos para convencê-lo de que eu não pertencia ao mundo gay e que estava ali por acidente de percurso. Não sei se ele acreditou. Subi ao segundo andar à procura da mulata e até hoje não me esqueço, tocava uma música do The Cure (Lullaby).

Acredite, forista sem fé, não achei a mulata, mas avistei uma ruiva de cabelos cacheados, pele alvíssima e um corpo estonteante executando o que meu amigo Teixeirinha chama de “a dança da enguia”. A menina se contorcia, se agachava quase se arrastando no chão, levantava com as mãos os cabelos vermelhos num coque sexy. Vestia um top e uma calça justíssima de um tecido preto e brilhoso que devia ser couro. Fiquei hipnotizado, talvez até apaixonado. Como já expliquei, amigo forista, dileto companheiro dessas viagens psicodélicas pelas noites cariocas, o libertino não é aquele que não ama, o verdadeiro libertino ama demais, numa sequência quase vertiginosa de paixões que nascem e morrem. O libertino é um náufrago de amores interrompidos.

Quando estou bêbado, sou cara de pau. Não tirei mais os olhos da ruiva e esperei o momento conveniente para me aproximar. Assim que ela se afastou um pouco da muvuca, cheguei junto e perguntei se ela topava beber comigo. O noturno imprevisível aconteceu, ela aceitou. Seu nome era Raquel e sua primeira pergunta foi para saber se eu era gay, bissexual ou coisa que o valha. Novamente, me peguei explicando que eu não era gay, que havia entrado ali por acidente, para procurar uma pessoa. Não adiantou, amigo forista. Quando você entra numa arena gay, ninguém crê que você não seja gay. Relaxei, mas com receio de em algum momento Raquel me convencer a me assumir. Seria inusitado se isso acontecesse, me tornar o Seu Peru da Tijuca. Sentados num canto reservado da boate, ficamos conversando. A menina não teve pudor em me revelar que era bi.

As horas passaram, dançamos rodeados por monas, gays e travestis eufóricos. Foi uma baita experiência. Ela me apresentou a alguns amigos ou “amigas”. Bebemos todos. Estava perto de inventar que meu nome era Dantielle Morgan, só para não me sentir deslocado. Quase as quatro da manhã ela me disse que ia embora, me ofereci para levá-la. Andamos até o Sucatão e partimos. A menina morava sozinha numa quitinete da Rua República do Peru, em Copacabana (o destino é ou não é um sacana?).

– Quer subir pra saideira? – Ela pergunta.

O apartamento minimalista tinha metade do seu espaço tomado por uma mesa de passar roupa aberta. Sentei-me num pequeno sofá e ela entrou numa área reservada que devia ser o quarto avisando que iria ficar mais à vontade. Pediu que eu tirasse os sapatos. Voltou do quarto flutuando num parco baby-doll e acomodou-se no meu colo. Sim, profético forista, a transa aconteceu e foi magnífica ou ao menos é assim que me recordo dela.

Deixei o prédio trôpego e entrei no Sucatão. Começava a amanhecer e a sensação de ressaca se insinuava em minha cabeça. Desconheço se a boate Sinônimo ainda funciona. Passei um bom tempo sem conseguir contato com Raquel, mas um dia ela me ligou perguntando se eu poderia pegá-la no Grajaú. Fui. Depois disso nunca mais nos vemos. O libertino é um náufrago de amores que surgem como miragens e desaparecem no horizonte inalcançável.

ISA — SOBRE AS ILUSÕES DO ROMANCE

ISA — SOBRE AS ILUSÕES DO ROMANCE

Passei as últimas semanas com pensamentos engasgados. Eu precisava fazer este último relato, o último registro. As palavras brotaram dos meus dedos como a música que jorra sob a batuta de um maestro. Peço que sejam tolerantes com este velho escriba e que me perdoem por qualquer pieguice indefensável.

Foram quase nove meses, cerca de duzentos e quarenta dias, que me dediquei a estar com uma única mulher. Desde junho de 2022 até janeiro de 2023. 

Confesso que me esforcei mais para ser mais amigo de Isa do que simular algo semelhante a um namoro. Ao final, fui levado a compreender, de supetão, que um namoro seria impossível. Sem problemas, meu afeto nunca mudou, manteve-se firme.

Ontem, vi que o anúncio da Isa no ar saiu do ar e senti uma pontada de melancolia. Para o maior entendimento de todos, Isa é uma garota de programa, o que na minha visão nunca foi demérito.

Foram oito meses em que ela me telefonava todas as manhãs, muitas vezes a tarde e algumas à noite. Oito meses em que me acostumei a esperar sua última mensagem antes de dormir. Oito meses de conversas longas, às vezes divertidas, outras vezes tensas. Habituei-me, ela não.

Não conseguia tirá-la muito da sua ilha, da sua pequena sala, para onde me dirigi por incontáveis tardes vadias, durante inenarráveis semanas consecutivas. 

Acostumei-me a levar pão, frios e café da padaria da esquina para tomarmos juntos. Admito, o sexo se tornou secundário, meu carinho por Isa era o carinho por uma menina que eu poderia querer cuidar por oitenta meses e por muito mais do que duzentos e quarenta dias.

Desde que voltei a escrever crônicas eróticas, foi a mulher que mais permiti que visitasse a minha Fortaleza da Solidão na bucólica Tijuca. Foi a única que brincou com a minha cachorrinha e se apegou a ela. Lembro-me de um fim de tarde em que fomos para o meu escritório, confidenciamos e escutamos juntos as nossas músicas favoritas. Como esquecer?

Eu a chamo de menina porque havia nela uma face pueril, um ciúme fútil e dissimulado, uma vontade de se conectar que, ao mesmo tempo, era malograda pela necessidade imperiosa de se proteger, de se resguardar e de desconfiar. 

A ilha de Isa era um castelo quase inexpugnável. Muitos sabiam da história pessoal que ela compartilhava, mas pouquíssimos foram os que souberam de fato onde encarnavam as raízes dos seus verdadeiros amores.

Era doce, era feroz, era infinitamente atenciosa e aplacava a própria carência se apoiando em quem escolhia como referência na sua rotina de trabalho. Não sei se era somente para mim que ela telefonava todos os dias, se era só a mim que ela convocava para as tardes inesquecíveis ao seu lado e em sua pequena caverna. Preferi me convencer de que eu possuía esse privilégio, que eram somente meus esses gestos tão imensuráveis de atenção.

Estar com Isa por tanto tempo significava velejar por um lago sereno, sob um céu azul imaculado, ou naufragar nas ondas de um mar furioso e devastador. Tudo era intenso. A alegria por estar em sua companhia foi afogada, em muitas ocasiões, pelas marés da inconstância do seu temperamento. Felizmente, nunca nenhuma turbulência foi capaz de sufocar a minha perseverança.

A única frustração intelectual que senti ao seu lado ocorreu quando anunciei o relançamento de um dos meus livros e ela não exibiu qualquer interesse pela parceria para me ajudar. Porém, isso não a fez pior para mim. Nada era imperdoável.

Nas últimas semanas antes das suas férias, pressenti pela primeira vez que estávamos nos harmonizando, no afeto e na intimidade. As névoas pareciam se dissipar. Ela ria mais ao meu lado, cismava menos, demonstrava confiança e o desejo de criar um elo. Ou, quem sabe, nada disso aconteceu e eu é que me entreguei aos delírios da ansiedade. Seja como for, sou um otimista e sempre creio no melhor da vida.

Até o último dia em que trabalhou, nos falamos diariamente. Na última semana antes da licença, não consegui visitá-la. Não me aborreci por isso, a dedicação ao trabalho proporcionaria a ela um descanso merecido e sem preocupações. Assim pensei.

Logo nos primeiros dias das férias, Isa silenciou. Minhas manhãs não se iluminaram mais pela sua voz; minhas tardes deixaram de ser temperadas pelo pão-francês, café e frios em sua companhia; meus sonhos se esvaziaram sem as mensagens de boa noite. Tudo cessou. Sem nenhuma explicação, nenhum retorno. Simplesmente desapareceu, como uma estranha que não me reconhecia.

Por que não confessar que sou um velho sentimental? Eu sou. A falta de qualquer sinal de Isa me entristeceu, me ressentiu. Não me desapontei apenas por ter o orgulho ferido ao concluir que fui um mero objeto descartável, lamentei por toda a idealização e deferência pelas quais eu a enxergava.

Isa foi uma das raras mulheres que desejei admirar, é difícil entender o porquê de ela ter preferido se revelar como miragem no último capítulo. Restou-me retornar à aridez da promiscuidade.

Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado — escreveu Marx.

O propósito deste relato, para ser considerado um relato, está em contar que nas últimas semanas, antes do desolador sumiço. Eu e Isa nos conectamos. Se não foi real, não nego que acreditei que fosse. Estávamos próximos, arrisco-me a dizer que estávamos felizes por finalmente dividirmos emoções em comum. Pela primeira vez, em oito meses, ela me presenteou com dois livros comprados em uma visita que fizemos juntos a Biblioteca Nacional.

Como somos duas criaturas que encontram prazer na luxúria, fomos mais do que nunca uma dupla nas brincadeiras libertinas. Mergulhamos nas provocações eróticas. Foi divertido para mim e creio que para ela também.

Nossa fronteira eram os limites da sua sala. As restrições que cercavam Isa se mostravam intransponíveis, tanto pelas dificuldades burocráticas como pela aparente falta de vontade dela em se libertar. As barreiras, no entanto, nunca me impediram de continuar cultivando a ternura.

Como eu disse, sou um velho sentimental. Diante do maremoto do desgosto, sempre escolho guardar as melhores lembranças: o sorriso que me iluminava, o olhar delicado que me observava.

Quem sabe, na minha ingenuidade, eu ainda não esteja esperando para descobrir que entendi tudo errado, que tudo foi real, que nada é miragem. A porta pode se fechar, mas mantenho as janelas abertas para permitir que entre alguma aragem capaz de me consolar.

Que me julguem como ridículo, mas os maiores orgasmos que experimentei na vida derramaram-se do coração.

Se eu não sinto falta dela? Ainda sou um homem que não perdeu a sensibilidade, sinto falta do hábito que tínhamos de conversar, de nos vermos de vez em quando. O que ficou agora é aquele vazio de quem acreditava no outro e o tempo vai mostrando que o sentimento era unilateral. É provável que tudo fosse uma mentira erguida por Isa, um momento de diversão para preencher o tédio entre um programa e outro, a pequena tragédia estava na minha crença de que era real.

Não tem problema, eu transformo decepções em arte. Que se destaque neste texto o valor irrevogável que dou ao afeto e aos que se tornam próximos de quem eu sou. Que a memória seja infinita enquanto dure…

Andarilho da Lapa

O ANDARILHO DA LAPA

Cansado… é a palavra que me vem à mente muitas vezes, quando estou prestes a entrar em uma sala do AA37 ou quando estou perambulando pelo Centro. Compreenda, entrei no meu primeiro bordel em 1980, depois disso me tornei um lobo desgarrado buscando saciar a fome da libido. Acredite, forista sem fé, mais do que uma necessidade, toda fome é um vício.

Foi a última noite em que saí para caçar, a mais recente, antes da invasão da falsa alegria do Carnaval. Confesso que sempre fui um velho misantropo, bem antes de me tornar um velho pela idade. Nunca gostei de muvuca, de calor humano ao meu redor, sofro de antropofobia. A única vez em que me senti bem no meio de uma multidão foi no Comício das Diretas em 1984, havia um romantismo idealista que unia e confortava quem esteve no miolo daquela turba.

Foi minha incansável insônia crônica que me jogou nos braços da madrugada, cogitei ir para a Vila Mimosa, mas concluí que seria um destino deprimente, a Av. Francisco Eugênio também não me apeteceu. Aonde ir? Copacabana já era, as frees estariam dormindo ou cuidando dos filhos. O que resta? A Lapa, o último reduto libertino, não que seja um lugar que me motive, apesar de toda a história boêmia que repousa naqueles sobrados. A Lapa continua resistindo às transformações do tempo, morrendo e ressuscitando através dos séculos.

Para o leitor casado ou àquele que está abandonando o casamento na tentativa de recuperar a juventude perdida, que se limita somente aos encontros nas salas dos corredores sombrios da rua Álvaro Alvim ou em prédios decadentes da cidade, para esses ainda é difícil recordarem-se de que o maior tesão do sexo está na adrenalina que o precede, nada que é programado favorece à adrenalina. Talvez, por isso, eu me sinta um pouco entediado atualmente, me deixei contaminar por um ritmo que não é o meu. Retomar a liberdade, o meu desejo por descobertas, é me libertar do bolor sexual dos outros.

Sei que para alguns é complicado crer que existe um mundo mundano além das salas de mulheres com anúncios, não é à toa que um ou outro forista me pergunta, após ler alguns dos meus relatos com mulheres aleatórias: “ela existe mesmo, Dante?” — Foi assim com a Gisele, com o Palácio de Cristal e com outras situações. No caso das minhas visitas ao Palácio de CristaL, dois foristas estiveram lá e me deram retorno, gostaram. No fórum não há essa cultura da rua, da caça aleatória, mesmo que envolva garotas de programa. Essa é a única modalidade que realmente me interessa agora.

Quem frequenta a Lapa com olhos de ver deve ter reparado que não é incomum sermos repentinamente abordados por mulheres que se apresentam como promoters em muitas das casas de diversões que ali estão instaladas, algumas a gente olha e sente a saliva pasma de desejo escorrer pelo canto da boca, são mulheres bonitas. O que pode acontecer é demorarmos para percebermos que algumas dessas mulheres estão ali para jogo.

Larguei um pouco a cachaça Salinas e voltei a abraçar o Black Label, o uísque é a única bebida alcoólica que opera uma transformação psicológica em mim, fico mais eufórico, mais solto, mais descontraído, chego a me sentir feliz. Após rodar para cima e para baixo na Av. Men de Sá, pedindo uma dose do Black em cada esquina em que vi um bar, decido entrar em um estabelecimento que fica entre a rua do Lavradio e a Gomes Freire, na mesma calçada da Up House. Tocava um funk quando passei em frente e me chamou a atenção uma cortina que me impedia de ver o que rolava lá dentro. Fiquei na tocaia, até que alguém saiu, a cortina se moveu e pude observar que o interior do lugar era pequeno e estava lotado. Entrei e fui recepcionado ao som de Michael Douglas…

MICHAEL DOUGLAS

PARTE 2

Saber escrever é perigoso. Você pode despertar admiração, competição ou recalques; pode erguer mundos, descrever cenários, conquistar a eternidade; pode enaltecer ou implodir pessoas; desmascarar mentiras e falsidades; pode dar fama ou relegar ao anonimato qualquer criatura ou situação que sirva como tema. A palavra é poderosa, é a arquiteta do nosso espírito, aprendo e confirmo isso à medida em que me aprimoro na articulação da língua.

É inegável que a idade pesa, mesmo que antes eu não tivesse essa melancólica noção sobre o princípio da velhice. Fui um guerreiro dos mais ativos, minha conta sobre a quantidade de ocasiões em que fiz sexo já se perdeu há tempos. Eu não poderia ter aderido ao matrimônio quando mais novo, pois seria mais um adúltero patético povoando as penumbras envergonhadas da prostituição e não suporto viver uma face de mentiras. Meu único ato de juízo foi me manter como um celibatário.

Hoje, percebo que estou maduro para um relacionamento mais estável. Talvez, por isso, eu esteja também mais suscetível às ilusões sentimentais. A experiência nem sempre nos faz imunes à malícia. Ser uma alma libertina não me priva de ainda possuir um tempero romântico. Sou da velha guarda, da safra dos boêmios que ainda amam.

Afirmo sempre que o libertino não é aquele que não ama, mas é o personagem que não se encaixou em qualquer espécie amor. É um errante, um náufrago do afeto, agarrando-se às pequenas boias que flutuam nesse imenso oceano das miragens, boias que logo afundam e o obrigam a continuar nadando. É uma vida solitária, mas em que a solidão não é castigo, é dádiva. Na ausência do amor, ama-te sem reservas ou pudores.

A passagem do tempo tenta impor aos que envelhecem um tipo de deslocamento geracional, sobrevivem aqueles que sabem se inserir em todas as épocas que testemunham e atravessam. Com o avançar da idade, precisamos escapar dos nossos próprios preconceitos e da armadilha tosca que o etarismo arma para nos encurralar. Após os quarenta anos, é preciso revolucionar-se diariamente para não se tornar um proscrito condenado pela frieza homicida do calendário cristão.

PARTE 3

O que ainda me empurra para a noite? Não tenho certeza, talvez a ansiedade, uma ponta de angústia, o breve incômodo por estar sozinho quando gostaria de me compartilhar com uma mulher que estivesse à minha altura.

O universo da luxúria é frio, principalmente no que diz respeito às mulheres. Uma prostituta tem seu lado social, de família, é onde ela preserva seus melhores sentimentos. Por outro lado, quando está com o homem que paga pela sua presença, não é incomum que assumam uma face maliciosa, que gira pelo interesse monetário, que não se importa com o outro, que quer apenas usar, se divertir com carências de forma muitas vezes implacável. As mulheres que cedem a essa bifurcação do caráter se perdem, se afogam em si mesmas. Nunca vi um final feliz em casos assim. O afeto não salva, mas atrai energias melhores.

Naquele buraco em que entrei, no meio de um bando de jovens saltitantes, envolvido pelo funk nas alturas, me senti um Matusalém. Não querendo ser pernóstico, mas sou um homem clássico, frequentador do Teatro Municipal, da Sala Cecília Meirelles, um adepto da música clássica, leitor sofisticado, me visto com sobriedade, considero-me um exemplar elegante da minha geração e cultivo tudo isso com dedicação. Estar no meio daquela arena selvagem me oprimiu, senti o impacto do choque de gerações, da ruptura com meu próprio tempo. Não suportei ficar cinco minutos naquele ringue juvenil, escapei dali como um presidiário desesperado pelo oxigênio das ruas. Também possuo meu limite de tolerância.

Voltei a perambular pelos descaminhos da Lapa, pensei em revisitar o Palácio de Cristal (PALÁCIO DE CRISTAL), mas a ausência da Gisele acentuaria o meu desânimo. Com as pernas cansadas, os olhos turvos pelo uísque, decidi encostar a carcaça no primeiro abrigo que avistei, um lugar chamado Cavern Pub. Estava cheio, uma banda de rock se apresentava, me embrenhei e pedi mais um Red Label que matei em um único gole. Creio, estimado forista, bebo pouco, mas quando saio para beber costumo compensar todos os dias em que não bebi.

A mágica acontece quando menos esperamos. Uma mulher de uns quarenta anos, trajada em um estilo gótico, surgiu do nada e se aproximou de mim.

— Desculpa perguntar. Você está bem? Achei seus olhos tristes?

O destino me pregava mais uma peça. Girei o pescoço para ver quem falava comigo e me deparei com uns olhos azuis que também teriam roubado o paraíso de Adão. A resposta à pergunta que me fez ficou entalada na minha garganta, pois me pareceu a oportunidade exótica de falar sobre toda a minha vida. Ela continuou me encarando. A banda começou a tocar Something, meus olhos quase marejaram…

SOMETHING

FINAL

Sou um insurgente. 

Sim, ao contrário do que alguns insistem em suspeitar, talvez por estarem mergulhados na ignorância da inexperiência, não escrevo ficção por aqui. Tenho na minha face de jornalista a inevitável simpatia por narrar histórias que brotam da vivência verídica do dia a dia ou do noite a noite. Aos que tentam me reprovar por escrever relatos com apelo sexual, respondo com os versos do inigualável poeta português José Régio:

“Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…”

—————————-Continuação—————————————–

— Se quiser conversar, sou psicóloga — me informa a coroa gótica.

O fato de se dizer psicóloga mais me desanimou do que motivou, no entanto, a torrente incessante do destino me oferecia a oportunidade de uma conversa inesperada. Perguntei se eu poderia pagar uma bebida, ela pediu uma caipirinha e aceitei o convite do acaso, despejei minhas infelizes experiências recentes no ouvido da suposta psicóloga. Ao terminar, lembrei-me de que não sabia o nome dela.

— Demmy, não estranhe. Sou filha de americanos — ela me responde.

Pela cor imaculada do azul dos olhos, tomei como verdade a origem do nome. Pareceu-me que estávamos os dois no mesmo patamar de embriaguez, Demmy foi muito simpática, demonstrou uma capacidade rara de ouvir sem julgar. Permanecemos ali, debaixo de um toldo com a inscrição “Boemia da Lapa”, trocando as nossas impressões sobre o vertiginoso ato de existir.

Com a conversa esgotada, me despedi de Demmy e segui no meu périplo noturno pela velha Lapa. Segui até ao Bar das Quengas, que nos meus tempos mais juvenis era um pé-sujo democrático frequentado por putas e travestis lutando pela sobrevivência. Busquei um lugar vago e sentei-me, pedi outro uísque. Sinceramente, perdi a conta de quantas doses de uísque tomei naquela noite, mas eu continuava um ébrio dono da razão.

— Tá sozinho, rapá? — perguntou-me um sujeito na mesa vizinha.

Respondi que sim.

— Tu é carioca? Senta aqui com a gente, somos de Manaus e estamos visitando essa cidade da porra.

A contragosto, mas por cortesia, troquei de lugar e me acomodei na mesa do amazonense, ele estava acompanhado de duas mulheres, uma delas grávida. Falei sobre o Rio, sobre a minha origem gaúcha, ele dissertou sobre Manaus e sobre sua própria vida. Contou-me que já tinha sido morador de rua em São Paulo, mas hoje é um orgulhoso empresário na área de informática. Expansivo, apresentou-se como Edvaldo, apontou para a morena bonita agarrada ao seu ombro, revelou ser sua namorada. Teceu elogios à grávida do meu lado, futura mãe solteira.

O interessante é que não detectei qualquer sotaque nos manauaras, talvez amazonenses não tenham sotaque, foram os primeiros que conheci de perto.

— Conhece algum lugar bom para a gente ir? Para virarmos a noite na farra? — me pergunta Edvaldo.

— Olha o lugar que conheço aqui por perto talvez você não aprove, é uma boate. Uma boate de swing.

O grupo se entreolhou e Edvaldo solta a exclamação.

— Homem, é tudo que a gente queria. Conhecer as sacanagens dessa cidade. Por isso, viemos à Lapa. Vai com a gente? Swing é casal, temos que formar dois casais.

— Mas ela também vai? — apontei para a grávida.

— Claro que eu vou — a própria gestante respondeu.

Quando dei por mim, estávamos os quatro entrando na boate Mistura Certa, com a grávida segurando em meu braço. Chamava-se Kássia, uma loira bonita que me fez lembrar a atriz Cheryl Ladd quando jovem.

Edvaldo encheu a mesa de bebidas. Eu estava entrando no começo desconfortável das vertigens alcoólicas, mas não quis estragar a festa. A namorada do Edvaldo era uma morena realmente lindíssima, cabelos longos, rosto de traços finos, olhos negros e expressivos, um corpaço de parar trânsito. Edvaldo cochichou ao meu ouvido que se tratava de uma garota de programa, amante de um advogado e que topou viajar para o Rio com ele pela “modesta” quantia de sete mil reais.

— E a grávida? — perguntei.

Também era uma garota de programa que deu mole e engravidou de um cliente que se comprometeu a bancar o filho.

No meu íntimo mais profundo, eu pensei: definitivamente, putas e libertinos se atraem como o mercúrio. Depois da Demmy psicóloga, a casualidade quase previsível me coloca no meio de um putanheiro com duas garotas de programa a tiracolo. Quem sabe ainda me livro dessa sina me submetendo a um descarrego?

Edvaldo e a morena fizeram a festa no labirinto da luxúria. Eu, que nunca havia ficado com uma grávida, me meti em uma cabine e recebi um dos boquetes mais arrepiantes da minha carreira, além de uma sequência de beijos na boca capazes ressuscitar Lázaro.

Fim de festa, o excesso de doses de uísque agora me provocava náuseas mais incômodas, preferi me despedir do grupo. Perguntei quanto devia a menina, Edvaldo disse que nada, tudo por conta dele, incluso nos sete mil reais. Por via das dúvidas, puxei duzentos e cinquenta reais e entreguei na mão da gestante, que me deu outro beijaço na boca como agradecimento.

Despedi-me de todos eles. Antes de sair, ouço a derradeira pergunta de Edvaldo.

— Homem, não seu teu nome, nem perguntei.

— Dante, meu nome é Dante.

VINHETA

Fiz sinal para um táxi, desfaleci na minha cama e quando acordei nem eu mesmo acreditei nas memórias que transbordavam em mim

Black Or White

BLACK OR WHITE

“Sou um organismo cibernético, tecido vivo expandido em um endo-esqueleto de metal. Ciborgue T-800, sistema Ciberdyne, modelo 1-0-1. Fui capturado e reprogramado para essa época no ano de 2029, com o objetivo de garantir a sobrevivência de John Connors, líder da resistência humana contra a Skynet. Venha comigo, se quiser viver.” (Terminator)

EXTERMINADOR DO FUTURO

Os pneus do automóvel, com marcas cruas de lanternagem, chiavam sobre o negrume do asfalto, o céu cor de chumbo respingava lágrimas sobre as paisagens esquecidas do Rio de Janeiro. Atravessar a Tijuca em direção ao bairro de Bonsucesso é semelhante a uma viagem de trem fantasma ou a um trailer do Exterminador do Futuro, cuja música não me saiu da cabeça durante o percurso. Um libertino não teme, mas também não perde a noção do perigo. Meu destino era a Black White, onde encontraria outros replicantes da minha mesma espécie.

A passagem pelo bairro do Rocha, Benfica, a travessia pela Avenida Leopoldo Bulhões, um cenário urbano que nos faz pensar que aquelas regiões sofreram alguma hecatombe recente. A penumbra de um semideserto, com velhos casarios em ruínas e prédios malcuidados, erguem-se em sombras de mistério e solidão. A única luz de vida que pude avistar no trajeto veio do bar Velho Adônis, local que ainda preciso conhecer de perto. Favela do Arara e Manguinhos tracejam diante dos meus olhos curiosos.

Chego ao destino. Entro em uma boate vazia, mas que rapidamente foi recheada por muitas mulheres, mas os clientes continuaram poucos. Bebo, misturo Brahma com Ice, o que me garantiu uma desagradável dor de cabeça no dia seguinte. Algumas garotas se apresentaram para mim, dispensei todas, não porque não fossem interessantes, mas pela minha preferência de ficar livre até escolher a fêmea para o abate. Abate talvez seja uma expressão forte, pois Pikachu, o breve, se mostrava indisposto naquela noite e provavelmente me renderia pouco sexo e um grande vexame.

A BW tem um clima simpático, algumas garotas realmente interessantes, perdidas na Zona da Leopoldina. O comandante da casa, muito educado, veio me cumprimentar, perguntou se estava tudo bem, sabia até que sou escritor. A fama corre. A princípio, fiquei em dúvida entre três moças, depois entre uma loira atraente chamada Lolita e uma morena extremamente sexy que usa o nome de Melissa. O papo com a Melissa fluiu, a menina se mostrou sem restrições, me deu um beijão de língua na pista e foi mais rápida para me convencer a escolhê-la. Alcova.

O período de uma hora na BW na suíte não é barato, mas considerei que Melissa merecia e subimos. No quarto pude vislumbrar seu corpo despido do minúsculo biquíne, um corpão de empolgar defunto cremado. Cintura finíssima, bundão esférico, barriguinha zero e um par de seios de adolescente que me fez salivar mais do que faz um sunday do McDonald’s.

Beijos fartos, roçadas perigosíssimas, chave de perna, gemidos estonteantes de Melissa e um boquete que faria inveja à despudorada Linda Lovelace. Entre gargantas profundas e esfregas de alta tensão, quase caí na armadilha da ejaculação precoce, mas para não sucumbir pedi que Melissa ficasse de quatro e tremi daquela paisagem que poderia ser confundida com a descoberta do novo mundo por um marujo desavisado. Ajoelho-me e penetro com respeito religioso naquele templo úmido e quente, a vagina. Estocadas leves que aumentam com o entusiasmo. Pikachu, o breve, se vê obrigado a atuar com disposição diante daquele monumento tropical que é Melissa. Gozei horrores, ejaculei a tabela periódica, a minha árvore genealógica e o tratado da evolução de Darwin. Despenco arfando no colchão que guarda com o silêncio de um monastério todas as fodas que sustentou e testemunhou naquela pequena suíte.

Encerrado o embate, ficamos abraçados, eu e Melissa, conversando sobre a vida. Ela ainda parecia estar cheia de fogo, enquanto eu não passava de um trapo tentando voltar a respirar no ritmo normal. Hora da despedida. Retorno à bucólica Tijuca pela Avenida Brasil, funil onde nossas vidas convergem. Ali, não existem belas paisagens, o que predomina é a realidade, feia como podem ser as realidades, retrato da nossa degradação. I’ll be back

Blue House e o existencialismo libertino

BLUE HOUSE E O EXISTENCIALISMO LIBERTINO

O rádio tocava Something In The Way, do Nirvana. O táxi escalava em marcha lenta, num quase sem fôlego que cobiçava o alto da estrada Grajaú – Jacarepaguá.

Something In The Way

Pela janela, eu contemplava a cidade, cemitério de vivos, se reduzir a pequenos pontos de luz, luzes brancas e amareladas, um pálido véu de estrelas falsas contemplando a imensidão enigmática do cosmos. Qual o sentido da vida que morre? Não conseguia evitar filosofices enquanto os pneus sofridos giravam em direção ao destino que escolhi. Viver sem buscar sentido, talvez seja a resposta. Meus olhos mergulhavam na mata árida, na favela que só encontra significado na miséria, na escuridão que me espreitava se misturando ao meu semblante interrogativo. As batidas da música me afogavam em mim mesmo.

Da Tijuca até a Blue House é um estirão. O taxista tagarelava reclamando dos passageiros, do trânsito, da vida. “Qual o sentido da sua vida?” — senti vontade de perguntar —, mas a resposta ele me oferecia com o seu papaguear interminável: é o caos que não aspira sentido algum.

Descendo a serra, minha mente submergia num Rio de Janeiro profundo, uma Gotham City sem Batman. Comungado com os pneus, com ritmo da canção estrangeira, eu corria em direção ao caos que me faz esquecer que não há sentido em nada, pois não pode haver sentido em vidas que morrem. Talvez, o único sentido da vida seja o orgasmo, a explosão de prazer que anseia germinar outras vidas sem sentido, num ciclo interminável de nascimento de natimortos.

A estrada de Jacarepaguá exibia bares luminosos, lotados de gente se alcoolizando, para esquecer, em busca do gozo que, numa duração de poucos segundos, nos eterniza neste planeta condenado.

— A boate está perto, é mais ali na frente — me avisava o taxista tagarela.

Eu vestia uma calça jeans, uma blusa escura e calçava as minhas botas inalienáveis. Ser libertino é o meu sentido, ser essa sombra que vaga pelos cabarés e pelos corpos mornos das prostitutas, sou a sombra que brilha. De súbito, o motorista diminui a velocidade. Chegamos. Pago os cinquenta reais da corrida e finco minhas botas na terra que circunda aquele território desconhecido.

Na recepção, sou recebido por um sujeito mal-encarado que pede o meu celular e mete pedaços de esparadrapos nas câmeras do aparelho.

— É por segurança. Já tivemos problemas — ele me explica por entre os dentes.

Recebo uma comanda, outra porta se abre e estou dentro da boate. Mesa de sinuca, pequenos sofás, bebidas espalhadas por bancadas redondas e triangulares. A luz tênue da boate projeta silhuetas com pouca roupa dançando, o espaço não é grande. Mulheres na pista, mulheres chegando, a atmosfera de flertes gananciosos e olhares lúbricos compõe o enredo do inferninho.

Uma loira altíssima, de corpo cavalar, me encara. Decido me aproximar. Ela me conta que também cumpre expediente na 65. Pergunto o nome, pergunto o que faz na cama. “Não beijo na boca” — a resposta me faz descartá-la imediatamente. “Uma mulher que custa 400 contos na 65 e não beija na boca” — murmurei com tom de indignação. Malandra, antes da resposta fatal, conseguiu me tirar um drink caríssimo como brinde.

Vaguei pelos cantos do lugar tentando encontrar uma presa, eu estava determinado a foder. Mulheres que não me interessam se aproximam, eu as descarto sem permitir que se demorem na abordagem. Ela veio caminhando em passos lentos, mulata de 1,70m, cabelos curtos, dotada de curvas vertiginosas e olhos que pingavam sensualidade a cada passo que ela dava. Vinha em direção ao bar, na minha rota de interceptação. Não hesitei, interrompi a rota da mulher.

— Preciso saber seu nome — perguntei.

— Bárbara. E o seu?

— Dante. Meu nome é Dante.

Perdoe-me pelo trocadilho infame, afeiçoado forista, mas a Bárbara é bárbara. Uma beleza sem exuberâncias nos traços do rosto, mas o corpo curvilíneo, a bunda empinada que poderia estampar capa de revista, os olhos de ressaca que causariam inveja à Capitu de Machado de Assis… Bárbara é o abismo do tesão. Conversou comigo sem pressa, bebemos juntos, ameaçamos beijos públicos e impudicos, ela esfregava sua pele na minha e roçava seu rabo irretocável no meu combalido pênis. Pedi uma alcova. Quarenta minutos por 180 reais, no cartão sai por 220 pilas.

Ela me conduz ao quarto, um quarto amplo, com box e chuveiro, poderia ser o aposento de algum motel barato e de boa qualidade. Gostei. Bárbara me avisa que irá pegar seus apetrechos, aguardo. Ela volta rapidamente, se despe do minúsculo biquine e me beija com a sede de uma mulher que atravessou a secura de um deserto. Nossas línguas se enroscam, Bárbara geme, me abraça com força, esfrega-se em mim, roça sua vagina em meu pau.

“Que porra de mulher maravilhosa” — eu pensava.

Acredite, forista sem fé, Bárbara é realmente maravilhosa. É daquelas que se entrega completamente, goza, chupa desejando sugar o nosso sémen. Alertou-me de que não fazia anal, mas no quarto conduziu meus dedos para o seu cuzinho macio e apertado. O altar é o cu — asseverava o Marquês de Sade com a propriedade do maior libertino que existiu. 

Bárbara cavalga em mim com o rosto virado para o meu, me beija, me lança seus seios duros e bicudos para que eu os lamba; me cavalga de costas, pede que eu enfie o dedo em sua bunda, geme alto, parece gozar; fica de quatro, eu ajoelho diante daquele templo sexual e o penetro rezando um Pai Nosso.

Bárbara pede que eu a chupe e caio em sua vagina como um mouro orando à Meca. Ela se contorce, grita, goza outra vez. Abre suas pernas e me convida para a mais básicas das posições, subo por cima do seu tronco, penetro novamente em sua boceta e meto enquanto nossas línguas se entrelaçam num nó cego. 

Gozei sentindo o infinito dos segundos em que os espermas saltam para a armadilha dos instintos. Desabei esgotado ao lado de Bárbara, semimorto. E naquele vazio depois do orgasmo, naquele breve momento em que deixamos de existir, lamentei por aqueles espermatozoides que jamais encontrarão um óvulo, senti a solidão ancestral de todos os libertinos, essas sombras que brilham. 

Bebel Sucuri

BEBEL SUCURI

Loucuras não se explicam, se cometem!

Foi numa sexta-feira, início da noite. Eu estava confortavelmente acomodado no escritório de casa assistindo umas fitas de um seriado antiquíssimo que um amigo da TV Globo conseguiu gravar: Xazan e Xerife. Alguns irão lembrar, era um programa com o Flávio Migliaccio e o Paulo José. Nostalgia braba. De repente, o telefone toca tão alto que chego a me assustar.

Teixeirinha do outro lado da linha.

– Dante?

– Fala, Teixe! O que manda?

– Preciso da sua ajuda hoje.

– Pô, mas hoje? Já estou até de pijama!

– Tem que ser hoje.

– Diz.

Eu havia tirado carteira de motorista há pouco tempo, me sentia inseguro ao volante. O Teixeirinha, com o pretexto de me ajudar a praticar mais a direção, me pediu para levá-lo até um

Motel na Av. Brasil, alegando que uma namorada insistia em conhecer o tal recanto. Ele, no entanto, queria ver primeiro onde ficava o prédio de alcovas.

– Mas Teixeirinha, por que você não vai com o seu Corcel e já leva logo a mulher?

– Cara, o Corcel está parado, quebrou a cruzeta!

– Quebrou o que, Teixe?

– A cruzeta!

– Cruzeta?!

– É, mas deixa para lá! Coisas do Corcel! Estou quase indo num Antiquário para poder consertá-lo. Mas vamos logo!

– Tudo bem. Vou me arrumar e passo na sua casa.

Bastou meia hora e eu estava na Av. Vinte Oito de Setembro pegando o Teixeirinha e depois ajustei o leme para a Av. Brasil.

O céu estava carregado. Chuva anunciada. Quando passamos em frente ao Caju, o Teixeirinha me informa que sua intenção era localizar o Motel Carbonara, ficava em Bangu.

-Pô, Teixeirinha! Você quer ir até Bangu só para saber onde fica um Motel?! Que isso?!

– Cara, preciso saber onde fica esse troço. Motel na Brasil eu não confio.

– Caramba! Mas a sua namorada não tem tara por um motel mais perto, não? Querer transar num motel de Bangu nem é mais tara, é perversidade sexual!

– O importante é que ela quer me dar, Dante! E se a fantasia dela é transar em Bangu, alugo até um barraquinho lá, o que não posso é perder a mulher.

Viajamos por quase quarenta minutos para aplacar a obsessão do Teixeirinha. O Carbonara ficava na altura do Conjunto da Marinha, a entrada era pela Brasil. A cena foi ridícula, identificamos o Motel aos gritos histéricos e fanhosos do meu amigo. Costumo descrever a voz do Teixeirinha dizendo que ela não está muito longe de uma dublagem do Pato Donald e é bem por aí mesmo.

– É o Carbonara! É o Carbonara, Dante!

– Beleza! E o que a gente faz? Entra e tira um cochilo?

– Perde o amigo, mas não perde a piada, né? Vamos voltar.

– Voltar? 

– Voltar. O retorno é ali na frente.

E voltamos. O Teixeirinha, cheio de sono, me orientou sobre o trajeto antes de começar a madornar do meu lado.

– Dante, não tem erro. É uma reta! Quando perceber que estamos saindo da Brasil, você me acorda. A gente pega a Francisco Bicalho e vamos sair na Praça da Bandeira. Molinho! Coisa de criança! Você me chama se ficar enrolado. E dormiu…

Na altura de Irajá, em direção ao Centro, uma tempestade desabou sem pedir licença. Eu mal podia enxergar meio metro à frente do carro. Fui prosseguindo devagar no caminho. Nisso, o Teixeirinha desperta por alguns segundos.

– Com essa chuva é que vou ficar constipado de vez! – Diz meu amigo.

– Constipado, Teixe?! Isso é o que?

– Estou ampliando meu vocabulário.

– Praticando o boiolês.

Com o meu copiloto novamente apagado, alcancei Manguinhos, onde a chuva havia perdido parte da força. Mantive-me na reta.

– Teixeirinha! Acorda! Estou subindo um viaduto. Faço o que depois?

– Viaduto?! Que viaduto?! – Fala o Teixe enquanto se espreguiça.

– Você é que tem que me dizer! – Respondo.

– Cara, que merda! Isto não é viaduto! É a Ponte Rio – Niterói!

– Putz! E vamos fazer o quê?

– Relaxar e aproveitar a paisagem. Não tem mais jeito.

– Pô! E onde a gente vai parar?

– Advinha? …

– Esquece! Já sei.

E, como nem eu e nem o Teixeirinha tínhamos um conhecimento profundo sobre a geografia de Niterói, fomos nos embrenhando pelo seu interior.

– Teixe, onde a gente está?

– Não sei, Dante. Vamos procurar alguma placa que nos tire daqui.

Placas eram ficção no lugar onde estávamos e, sem saber como, fomos desembocar em Charitas. Resolvemos parar o carro e tomar uma cerveja num bar próximo à praia.

– Vamos ter que comprar um mapa para sair daqui. – Digo.

– Cara, vamos seguir as placas!

Acontece que todo libertino sofre de um fenômeno conhecido como a Síndrome do Mercúrio. Ou seja, um libertino sempre atrai outro libertino e, juntos, são atraídos por um Bordel.

Não deu outra. Quando tentávamos encontrar a trilha de volta para o Rio, embicamos por uma Estrada sem nenhuma indicação que nos fornecesse seu nome. No meio do desvairado percurso, avistamos uma Casa toda iluminada, como se estivesse decorada para o Natal. Na fachada, uma placa:

“Não percam! Hoje tem Show da Mulher Serpente! Duas cervejas grátis! ”

– Dante, vamos entrar aí. A gente aproveita e pergunta como encontrar novamente a Ponte.

Estacionei e entramos.

Apesar da aparência faraônica, a casa por dentro era simples. Assemelhava-se a um bar de beira de estrada. Mesinhas de ferro espalhadas num salão espaçoso, sinuca, chão de cimento e, ao fundo, um tablado que serviria de palco para a grande apresentação da noite. A música do ambiente era vibrante, moderna e dançante. Mulheres circulavam por entre as mesas trajadas em shortinhos jeans e tops. A maioria era bagaceira, umas poucas atraentes. Serviam para acentuar o contraste no momento em que adentrava a Estrela da noite.

Uns quarenta minutos depois que chegamos, com o Teixeirinha chapado, um Mestre de Cerimônias anuncia a sensação da noite: A Mulher Serpente.

– E, com vocês, a nossa Feiticeira. Segurem seus corações porque ela os arranca com os olhos. Que entre a Rainha de todos os Sonhos, a Mulher Serpente!

Surge então uma mulher alvíssima, alta, cabelos negros cacheados escorrendo abaixo da cintura, um par de olhos azuis incandescentes. Lindíssima! Ao som de Erótica (Madonna), vestida numa justíssima roupa de couro acinzentada e atravessada por decotes ousados, ela começou a dançar sinuosamente fitando cada um dos presentes no salão. Era hipnótica.

– Cara, o que é isso?! – Meio que exclama o Teixeirinha.

– É a Mulher Serpente, Teixe.

– Dante, finalmente sei o que é o Amor.

– Segura a onda, Teixeirinha.

– Cara, eu estou apaixonado.

– Você está é mamado, Teixe.

– Cara, o meu coração está naquele palco, eu tenho que ir lá pegar.

– Pô, Teixeirinha, fica quieto aí.

Minhas objeções não o impediram. Logo ele estaria postado à beira do palco com um olhar babão para a dançarina. Ela não demorou a perceber e sinalizou para ele subir. Aqui, chegamos ao clímax, amigo leitor.

O alucinado Teixeirinha estava no palco. A beldade o fez deitar no tablado e começou a despi-lo. A cada peça arrancada dele, ela também deixava cair uma. E foi neste ritmo que os dois alcançaram a nudez absoluta. Ela em pé sobre o meu embevecido amigo deitado entre suas pernas. O Teixeirinha parecia um bebê no berço, maravilhado com um móbile suspenso diante dos seus olhos. Ria sem jeito cobrindo os genitais. A galera presente foi ao delírio, ria e zoava numa verdadeira farra.  Agora, o Teixeirinha era a Estrela.

A Mulher Serpente saca uma garrafa de vinha e olha para o Teixe como se pedisse seu consentimento para algo que está por vir. Inicia um banho de vinho sobre o corpo inerte do nosso herói. Depois, agacha-se por cima dele e começa a lambê-lo por onde o vinho corria. Aplausos, gritos, assobios e o Teixeirinha rindo, rindo sem parar.  O show termina, ela cochicha algo no ouvido do nosso protagonista e ele vem ao meu encontro na mesa com um sorriso largo e ar de vitorioso.

– Vou precisar que você me empreste R$ X,00.

– Como é? Mas para quê? – Questiono.

– É o aluguel da suíte aqui em cima. Ela me convidou para ficarmos juntos.

– E o convite custa R$ X,00?

– Custa R$ X,00. Preciso dos seus R$ X,00 para inteirar os meus R$ X,00.

– Teixeirinha, você aloprou de vez!

– Nem pense em me negar isso, cara!

– Mas e o Carbonara com a sua namoradinha?

– Dante, a minha Gordinha perdeu a prioridade para este monumento.

– E como o monumento se chama? Você perguntou o nome?

– Não sei se devo falar. Você vai querer sacanear.

– Quer o dinheiro? Vai falando.

– Bebel Sucuri. Foi como que ela se apresentou.

– Bebel Sucuri?! Perdi até o tesão, Teixeirinha.

– Não importa o nome, o importante é a qualidade do produto.

Emprestei o dinheiro e o Teixeirinha desapareceu pelas escadas que levavam ao andar de cima do sobrado. Esperei por uma hora até que o avistasse descendo os degraus com um semblante de poucos amigos.

– O que houve, Teixe? Desembucha! Como foi o desempenho da garota?

– Cara, não teve desempenho de ninguém!

– Xiihh! Não acredito! Qual foi a merda que deu?

– Vamos sair daqui. No carro eu conto.

Dentro do carro, retomando a nossa Odisseia em busca da Ponte Rio – Niterói, o Teixeirinha passou a narrar o drama.

– Vai, me conta o que aconteceu, Teixe!

– Você nem vai acreditar…. Uma tragédia!

– Conta! Deixa de melodrama e conta.

– Vou resumir.

– Resuma.

– Chegamos à suíte, bonitinha até, tomei meu banho e deixei a Bebel no chuveiro. Voltei pra cama. Em cima de uma cômoda vi um potinho de creme, abri, cheirei, achei o aroma gostoso e resolvi esfregar um pouco no pau e no saco. Quis dar uma moral, deixar tudo cheirosinho pra gata.

– Mas e aí?

– Aí é que são elas. Assim que terminei de passar o creme comecei a sentir uma sensação estranha, uma dormência no saco.

– Peguei o pote novamente para ler o rótulo.

– E que creme era esse, Teixeirinha?

– Cara, era xilocaína. Meu pau não subiu nem com guindaste. Morreu! Morreu tudo!

– O que é isso, Teixeirinha? E como se resolveu com a Sucuri?

– Lá vem você querendo me sacanear. Não estou para isso! Falei que estava me sentindo mal, fiquei deitado por uma hora e saí fora.

– E o dinheiro?

Nem quis saber. Cara, eu estou inválido até agora por causa da merda da xilocaína e você vem me falar de dinheiro, porra! -O tom do depoimento era dramático, mas tive um acesso de risos que só terminou quando cheguei ao meu ansiado lar. Findava a Odisseia. Deitei exausto na cama e antes de fechar os olhos ainda pensei: o mundo é surreal!

Ariel

ARIEL

Insone crônico. Já perdi a conta do número de anos que padeço da dificuldade para dormir à noite, não é uma das experiências mais agradáveis perceber que o dia amanhece sabendo que ainda não cerrei os olhos. Não é fácil se acostumar a condição de vigília involuntária, já fiz tratamentos, consultei neurologista, até psiquiatra, mas nenhuma solução oferecida foi mais poderosa do que a minha resistência ao restaurador sono noturno. Nesta última sexta-feira, eu estava assim, desperto, inquieto, precisando atender à convocação das ruas, do céu cinza, da ameaça opressora da chuva. Esperei o temporal estiar, embarquei em um táxi e comuniquei o destino ao motorneiro.

— Camarada, me deixa na Rua Ceará.

Os pneus cortavam os bolsões d’água chiando como lobos no cio, enfrentaram os obstáculos aquáticos da Praça da Bandeira como bravos bandeirantes desbravando um território hostil. Quando alcançamos a esquina da rua Hilário Ribeiro com a Ceará, desembarquei. As nuvens voltaram a chorar com o volume de um temporal. Abri o guarda-chuva e fui atravessando os fluxos de correnteza que se formavam em direção à entrada da Vila Mimosa. Minhas botas encharcaram, as meias cuspiam a água de procedência suspeita, mas segui impávido, marchando firme sob os paralelepípedos do colosso da vida mundana.

Dezenas de copos de plástico boiavam sobre as sarjetas, camisinhas flutuantes giravam no desesperado balé das vidas sem sentido, rios artificiais se formavam com força do dilúvio, homens e mulheres de corpo ensopado passavam por mim procurando abrigo. Eu seguia indiferente, não buscava o sexo, mas caçava a exaustão que me trouxesse os sonhos do adormecer. O guarda-chuva não me protegia muito dos pingos graúdos que o vento lançava contra o meu rosto.

— Caralho. O que estou fazendo aqui? — um lampejo de juízo esbofeteou meu cérebro.

Penetrei no primeiro corredor da Zona, o chão alagado, um cheiro de fossa transpirava do piso, mulheres se amontoavam como se evitassem o contato com o ambiente insalubre. As adversidades enfrentadas até aquele momento não prometiam um desfecho promissor. Digo com sinceridade, afeiçoado leitor que me acompanha neste passeio, eu não fui ali para gozar, estava em fuga, talvez de mim mesmo. Rodei pelos dois corredores principais umas cinco vezes, não via nada que me interessasse. Minha libido estava pálida, apática. Se avaliarmos com honestidade, todos os relatos de fóruns são iguais, uma profusão de tédios que terminam no gozo ou na ausência dele. Somos máquinas narrando a produção industrial de espermas inúteis.

Uma voz de mulher me puxa do meu redemoinho mental.

— Vamos brincar hoje, tesão?

O convite saltava da boca carregada de batom de uma coroa loira que me soou familiar de outras eras da Vila. Os seios espremidos pela compressão de um decote precário alertavam que poderiam explodir a qualquer momento; com um brilho diabólico de quem conhecia a alma de todos os homens, os olhos verdes me encaravam aguardando resposta; os cabelos ruços da marafona estavam arrepiados como que desfeitos por uma ventania.

— Hoje não estou disposto para brincar, estou mais para um bater papo. Qual seu nome?

— Tá no lugar errado, né, tesão? Procura um padre — terminou o deboche com uma dessas gargalhadas de puta velha que devem ter ouvido na Central do Brasil — meu nome é Ariel.

A aparência carcomida pelo tempo não me despertava atração pela mulher, mas aceitei subir a uma alcova para receber o matador boquete sem camisinha que me prometeu. Ela pediu setenta reais, ofereci cem mangos para conversarmos um pouco e quebrar o gelo antes do ato. Aceitou e subimos a estreita escada em caracol da casa 21. A coroa me contou que mora em Santa Cruz, tem três filhos e um está preso em Bangu por roubo, que começou na vida com dezoito anos (tem 55) e ficará até quando der, que ainda faz um bom dinheiro. Parou de falar de repente, me olhou fixo e disse que eu tenho os olhos tristes. Desamarrou meu cinto, arriou a minha calça, sentou-me sobre o lençol puído da cama e abocanhou meu pau como se quisesse arrancá-lo pela raiz. Com movimentos de quem conhece a arte dos orgasmos, me fez gozar em dois minutos. Gozei forte, de olhos fechados, minha respiração transmitia o tufão pulmonar que me assolou. Quando abri os olhos, não havia mais ninguém na cabine, a coroa saiu em silêncio e me deixou só. Vesti a roupa, desci a escada tortuosa e ganhei a rua. Continuava a chover, não abri o guarda-chuva dessa vez, a água corria pelo meu rosto, invadia meu corpo, gelada, fria como a coroa que me chupou. Caminhei com as roupas alagadas até um ponto de táxi próximo à Mosaico.

— Me deixa na Praça Xavier de Brito, motorista.

Encostei a cabeça no vidro da janela e, por um instante, adormeci.

Anhinhanha

ANHINHANHA

Disse-me um amigo, após saber deste relato, que eu deveria procurar uma benzedeira. Talvez, seja um bom conselho.

Tarde quente, o suor inevitável molhava meu rosto, estaciono o Sucatão e decido conhecer o tal Paraíso das Panteras, conforme denominava o painel exposto acima de uma casa. Para amenizar a sensação térmica, decidi tomar três doses cerveja antes de entrar, quis buscar inspiração. Meus poros ficaram sobrecarregados diante da quantidade de água que eu expelia pelo corpo. Mais um pouco e eu me tornaria a nascente de algum rio caudaloso.

Entrei na Termas. Ao passar pela recepção, disseram que eu não precisaria pagar entrada. Penetrei no salão penumbroso, era fim de tarde, não havia muitas meninas. Pelo que me informaram, o movimento forte começaria a partir das 19h30. Sentei-me, pedi um Red Bull para debelar a sede e uns petiscos para alimentar a fome. Fiquei observando o salão quase vazio e avistei uma loira ajeitada que me chamou a atenção. Consegui contato visual, mantive o flerte por uns cinco minutos e então ela se aproximou…

Cerca de 1,60m; falsa magra; pernas grossas; bundinha arrebitada; lábios carnudos; cabelos abaixo dos ombros; rostinho de anjo. Graciosa!

Oim – Ela me cumprimenta.

Sim, leitor sem fé! Como você, eu também senti uma leve entonação do M no final do OI, mas não dei importância. Afinal, o que é um minúsculo M diante de um tamanho Tesão?

– Tudo bem? – Respondo.

– Tundo! – Agora, foi um N que surgiu, talvez seguindo a regra do “antes de P e B.”

– Qual seu nome? – Emendo com outra pergunta.

– Anhinhanha – Foi isso que ela pronunciou.

– Qual?! – Peço um replay para tentar entender.

– ANHINHANHA! – Ela eleva o tom de voz.

O que fazer num momento desses? Qual manual ensina a nos livramos desse tipo de embaraço? Eu ainda não havia compreendido o nome da menina, no entanto, não tinha coragem de perguntar novamente.

– Diferente seu nome! Bonito! É de origem indígena? – Ah, hipocrisia! Doce hipocrisia, como a vida seria mais amarga sem as suas sábias intervenções.

– Oncên anchã? Que nhada! Tão comum nheu nhome!

Era o início do meu pânico, eu não conseguia compreender o estranho dialeto nasalado que brotava daqueles lábios tão delicados. Porém, meu cavalheirismo e minha esmerada educação me obrigavam a agir como se tudo aquilo fosse a manifestação mais límpida da língua portuguesa.

– In o seun? – Ela desejava saber meu nome.

– Dante. Prazer!

– Jã conhenhia a cãsan?

– Como? – Tive que perguntar de novo.

– Jã conhenhia a cãsan?

Refleti por uns segundos para decodificar…. Ela me perguntava se eu já conhecia a casa! Era quase uma emoção traduzi-la.

-Não. Primeira vez!

-Tã gostanho?

O que seria gostanho? Gostando! É isso!

– É legal! Gostei! – Respondo para agradar.

Não precisei de muito mais para saber que a loira, além de gostosa, era fanha. Sim, incrédulo leitor, a loira era fanha! Nem no paraíso encontramos a perfeição, esbarrei com uma pantera fanha dentro do Paraíso das Panteras.

Prosseguir naquele diálogo estava me causando náuseas, era como manter o cérebro ligado a um tradutor simultâneo. Preferi encurtar o caminho e avisei que gostaria de ficar com ela. A menina abriu um sorriso que me fez perdoar todos os tiles (~), emes e enes que recheavam sua linguagem quase incompreensível. Fomos para o quarto. As dimensões eram pequenas, mas havia o conforto básico. Minha cabeça girava pelo efeito da bebida. Sem a roupa, o corpo da garota me impressionou ainda mais. Seios firmes, chana completamente depilada, bumbum emoldurado numa marquinha de biquíni minúscula. Beijos, boquete, bolinação. A menina era quente! Fica de quatro e tenta me provocar.

-Menhe na sua canchõrra! – Tradução: Mete na sua cachorra.

Aquele idioleto nasal estava me enlouquecendo, decidi precipitar o fim do encontro: meti!

– Aim, aim! Isso, come nhua canchõrra! Aim! Aim!

Sim, colega leitor! Eu concordo! Isto é incrível! A puta era fanha até para gemer! O gemido da mulher parecia grito de cachorro espancado, aquelas onomatopeias que vemos nas revistas de quadrinhos: caim, caim…. Eu me senti sodomizando o Bidu, o personagem canino da Turma da Mônica.

A tragédia se fez, não consegui gozar! A cada “aim” que a moça proferia, emergia a imagem do Bidu em minha lembrança. Joguei a toalha!

– Não vaim gonza? Gonzaaaan, gostonso! – Insistiu a fanha.

– Não estou bem…. Bebi muito! Estou cansado. – As velhas desculpas de quem só ansiava por fugir.
Paguei a conta, mas continuava intrigado. Não conseguia traduzir o nome da menina. Arrisquei perguntar mais uma vez.

– Desculpa, me repete seu nome? Esqueci…

– Ponxã! Jã esqueceum! É Anhinhanha!

– Ah! Ta! Não esqueço mais! – Eu não poderia esquecer o que continuava sem entender.

Mas de que vale um nome? Resgatei o Sucatão e voltamos a sobrevoar o negrume do asfalto da Av. Suburbana.

Amor de Pinóquio

AMOR DE PINÓQUIO

Para mim, a experiência do amor romântico sempre foi uma porta para a humilhação. Talvez, por ter demorado a intuir que o impulso da paixão é uma espécie de loucura momentânea, eu enfrentava problemas para controlá-lo e, principalmente, para lidar com episódios de rejeição sentimental. Tonar-se libertino, como eu gosto de definir, é uma metamorfose que nasce do simulado sofrimento das relações românticas. Não existe amor romântico, existe a química que dá ao desejo sexual uma aura de fascinação que não existe de fato. É uma armadilha, afirmava Schopenhauer.

Se atravessei muitos desses amores românticos? Sim, atravessei e atravessei mal. Viver a ilusão do romance com a convicção de manter o celibato e a regra de não procriação é um conflito interno sangrento. Devido a isso, provavelmente, o que encontrei nessas relações sentimentais não foi o lado onírico, mas a realidade concreta da traição, da deslealdade e, não poucas vezes, da rejeição e do aviltamento voluntário. A dor emocional mata ou liberta, no meu caso encontrei a libertação. 

Não posso contestar indivíduos que acreditam no casamento, mesmo quando eles atuam para demonstrar que o casamento é uma farsa burocrática. O indivíduo quer acreditar no matrimônio, quer crer que a procriação e a ideia de família completam a existência, mas ele busca prostitutas e desvia o dinheiro que deveria servir para consolidar sua fé em todas essas crenças.

Os cônjuges são criaturas que se agarram na mentira e fazem de si mesmos personagens hipócritas dissimulando a idiotice. Tudo isso resume uma doença psicológica derivada da insistente fé no amor romântico. O amor é uma mentira que a mente impõe para atingir objetivos vulgares, o homem vulgar a adota como valor absoluto, ignora a confirmação da mentira que ele demonstra em todos as ocasiões em que se desvia dos princípios que poderiam justificar seus fundamentos.

Atingindo a meia-idade, afirmo que nunca casei e não tenho filhos, essa sentença faz de mim um homem livre, não um homem triste; essa sentença comprova que escapei do destino ordinário de grande parte da humanidade, revela um sucesso, não um fracasso. O fracasso estaria na cena patética que revelasse um personagem se esgueirando por bordéis e salas penumbrosas do meretrício, consultando o relógio, desligando o celular, buscando prostitutas e enganando uma companheira que também se enganou ao acreditar na veracidade da união romântica. Repito, não existe amor. A parte mais divertida da ideia do romance é premeditar a traição. O amor só é capaz de conceber bebês e grandes canalhas.

Alegria do Catete

ALEGRIA DO CATETE

Existem noites que são perpétuas, um libertino é forjado nessas noites intermináveis, atravessando a cidade, farejando feromônios, desejando o roçar de peles. Há uma fase da vida em que o Sol é um incômodo frio e a Lua uma carícia que arde. Foi uma dessas noites dos meados da década de 80 que descobri um lugar que me proporcionaria incontáveis encontros sexuais, descobri por ouvir falar, peguei o metrô, desembarquei no Largo do Machado, fui caminhando incerto pela Rua do Catete, perguntei num boteco se conheciam um forró naquelas redondezas, engoli um fogo paulista e encontrei o templo onde uma parte das minhas melhores noites se perpetuariam na memória.

Alegria do Catete, que nome poderia ser melhor para um forró, para um bate coxa, como chamavam na época. Instalado em um prédio baixo, onde até pouco tempo funcionava uma loja do Ponto Frio, na esquina da Rua do Catete com Buarque de Macedo. Quando entrei pela primeira vez, me deparei com uma multidão dançando ao som do triângulo e da sanfona, um mar de mulheres predominantemente nordestinas, homens que não negavam a origem simples. Atravessei o salão vestido de príncipe, denunciando para os olhos desconfiavam que me seguiam que aquele não era o meu habitat natural. No início senti algum desconforto, depois não mais me importei, percebi que a minha pompa no vestir e na postura é que me abriria um o harém onde eu me tornaria sultão por um bom período.

Eu não tinha carro, minha grana podia ser contada em poucas notas heroicas na carteira surrada, mas eu sabia me vestir, estava no auge da energia de um universitário bem nutrido, sabia me expressar com classe, começava a aprender a arte de seduzir e aquele forró seria a minha primeira grande escola, de sexo e de vida. Saía de casa, pegava o metrô empolgado, a testosterona explodia pelo meu corpo e eu não abandonava a arena sem antes conquistar uma fêmea qualquer do lugar. A volta se mostrava mais complicada, saía do forró com o céu refletindo os primeiros raios de luz, andava até a Praia do Flamengo e esperava algum ônibus que me levasse de volta à bucólica Tijuca. Muitas vezes enfrentei a solidão da madrugada esperando a condução, os perigos da cidade eram menores, mas a melancolia da dureza que me impedia de pegar um táxi sempre foi igual.

Sim, eu fui um tímido e os forrós me ajudaram a superar um pouco a trava do acanhamento. Às vezes eu intercalava a frequência nos forrós com idas a boate Circus no Leblon, dois mundos paralelos e heterogêneos. Na Circus, eu não pegava ninguém; no forró, me tornei rei. Havia ocasiões em que eu entrava no Alegria do Catete e mulheres colocavam bilhetinhos no meu bolso, me encaravam despudoradamente, ofereciam-se exibindo a libido devassa. Precisei eleger motéis próximos que coubessem no meu orçamento, encontrei o Alameda (na rua Cândido Mendes) e outro muito precário que havia na rua Bento Lisboa. Quando a minha carteira estava mais recheada, eu lambia os beiços no Hotel Único que ficava praticamente ao lado do forró.

No princípio, eu contava o número de mulheres que comia, foi quando iniciei minha coleção de coitos até perder a conta. Não demorei para conhecer mais dois forrós que fariam das minhas noites de fim de semana um campo de caça farto de lebres. Os forrós me fizeram homem, já que eu não recebia grandes patrocínios da família, sempre precisei apelar para a minha criatividade, meu espírito de aventura e minha ausência de preconceitos. Jovem, eu possuía uma disposição inabalável, varava madrugadas seguidas, chegava em casa com o sol no rosto, me viciei na arte de amar.

Outros tempos… Fui uma espécie de Indiana Jones libertino, durante o dia eu explorava sebos atrás de toda espécie de livros; à noite, rompia becos e penumbras atrás de qualquer tipo de mulher que eu pudesse tentar conquistar e levar para a cama. Na década de 90 surgiu o forró do Asa Branca, na Lapa, minha existência ainda se equilibrava com pouco dinheiro, não era incomum me postar na porta do local para pegar um dos ingressos gratuitos que eles distribuíram, eu precisava economizar de todas as maneiras para conseguir consumar o sexo com alguma mulher que eu conhecesse. 

Que infinidade de mulheres eu provei numa época em que as putas não me eram acessíveis. A dureza me fez desenvolver a criatividade que me permitiu curtir a vida mesmo diante das limitações de grana. Aprendi a ser simples sentindo minhas pernas cansarem no meio-fio enquanto aguardava a esperança de uma condução, sacudindo em ônibus pelas madrugadas, comendo empregadas domésticas e me apaixonando por elas, percebendo que ter dinheiro é bom, mas não ter estimula o cérebro. De lá para cá, envelheci, mas não é tão ruim envelhecer, o ruim é testemunhar um mundo que envelhece mal, mas ao mesmo tempo constatar que os fóruns permanecem com a mesma infantilidade desde os primórdios em que escrevi a primeira frase no primeiro

A despedida

Anoitecia em Copacabana, fim de tarde de céu avermelhado e límpido. O trânsito estava intenso naquele início de dezembro de 1994, eu desfrutava das férias ao lado de Karin, apaixonado. Esperávamos o táxi que a levaria ao aeroporto, ela decidira voltar à velha Europa, primeiro para a Espanha e em seguida para a Inglaterra, de onde ela tinha sido deportada anos antes. Prometia voltar, mas a minha paixão intensa por ela dilacerava qualquer inocente esperança. O táxi aportou, ela embarcou carregando a única mala que levava e eu a acompanhei.

Já escrevi sobre Karin, uma gaúcha bonita ao seu modo, inteligentíssima, que conheci por um anúncio nos classificados do finado Jornal do Brasil, uma mulher que hoje eu poderia classificar como acompanhante de luxo. Morava na rua Tonelero quando a conheci pelo telefone, o nosso primeiro encontro também foi a nossa primeira noite juntos. Talvez, ela tenha gostado de mim, fomos ficando, dormíamos juntos, ela não me cobrava, não me exigia nada e cultivava a minha presença. Os quase três meses que passei ao seu lado, me envolvendo visceralmente com ela, resultou na inevitável paixão febril que me tomou o corpo e a alma.  

Karin tinha uns 25 anos, sofisticada, classuda, um corpo irretocável, cabelos loiros, olhos verdes e um sotaque do Sul ainda forte. Falava inglês fluentemente, fluência que conquistou nos seus anos morando em Londres. A garota foi um sonho, décadas se passaram e a memória dela ainda exala frescor em minha mente.

Ousei, apresentei-a a minha família, levei-a em minha casa e planejava, secretamente, uma vida com ela. Entre nós, havia a Europa e a profunda rejeição de Karim pelo Brasil. Convidou-me para ir com ela e eu, num gesto que me arrependerei até o fim dos meus dias, recusei-me a ir, aleguei que preferia esperá-la e preparar uma estrutura para quando ela retornasse. Nunca retornou, casou-se com um inglês, teve dois filhos e mora no interior de Londres.

Karin uniu em mim o amor romântico e o desejo da carne. Eu agonizava de uma atração abissal por ela. Nossa despedia foi um jantar triste, em um restaurante extinto de Copacabana, que se localizava em frente à Praça Serzedelo Correia. Quando cruzo por ali, não vejo mais a praça, não vejo a rua, não vejo os carros nem os pedestres, só vejo o jazigo de uma parte de mim. Existem pessoas e lugares que se tornam buracos negros da nossa existência.

A paisagem até o antigo aeroporto do Galeão ia se desfazendo em sombras diante dos meus olhos, tudo se desconstruía conforme o automóvel avançava. Eu ia de mãos dadas com ela, em silêncio, como lançado em uma oração inútil perdida entre todas as orações inúteis. Se um dia amei alguma mulher, essa mulher foi Karin, uma garota de programa que amava mais os próprios projetos, a própria ambição e a futilidade de querer ser uma inglesa que jamais será inglesa de fato.

Feito o check-in, ela precisava ir para a área de embarque. Seus olhos verdes, seus cabelos loiros, seu corpo impecável, no fundo eu sabia que aquela seria a última oportunidade para contemplar a sua presença. Um abraço, um beijo amargo na boca e ela começou a caminhar enquanto o abismo se abria entre nós. Antes que desaparecesse, olhou para trás, olhou para mim e sumiu na névoa labiríntica dos desencontros. Cartas, alguns telefonemas, uma ausência que me esmagava. Nunca mais, nunca mais — me gritava o corvo de Edgar Alan Poe.

Nunca mais. Ficou-me a cicatriz, um desses poucos ferimentos capazes de dizimar um libertino. Por sorte, em mim foi um ferimento que sangrou, sangrou de morte, mas fortaleceu a carcaça das minhas emoções. Não demorou para que a minha natureza mundana imperasse sobre o sofrimento poético. Mesmo assim, todas as vezes que atravesso Copacabana, que passo pela rua Tonelero, ouço o corvo me amaldiçoar…

— Nunca mais, nunca mais…

A catraca

A CATRACA

Hoje, só sobrevivem do tal lupanar o trauma de ex-virgens acuados e as reminiscências dementes de idosos nostálgicos da distante e desbotada virilidade.

Aconteceu no meio de uma tarde ensolarada. Bateram à minha porta e avisaram que havia chegado a hora. Como se tudo já estivesse combinado, o pai empilhou uns tostões na minha mão, me colocaram num carro e parti para o desconhecido.

Quem visse o meu semblante tenso, poderia supor que me conduziam à força para o DOI-CODI, nunca imaginariam que aquela viagem tinha como destino o crepúsculo da minha insossa inocência pelo alvorecer temperado da luxúria. O trajeto, por caminhos tortuosos, embalou na subida de uma ladeira no Rio Comprido, mergulhou num túnel esquecido e desembocou na enigmática Rua Alice.

Como se não bastasse o pânico do novilho ameaçado pelo abate, incomodava-me a ideia de um randevu localizado numa via batizada com o mesmo nome da minha bisavó. Para um garoto recém-catequizado, a sugestão do pecado ganhava sons incestuosos e desestimulantes. Não demorou para que estacionássemos em frente àquela fastuosa mansão cravada às margens do nobre bairro de Laranjeiras. Que vista! Rodeada pela paz da paisagem bucólica, erguia-se a rosácea e imponente construção, cercada por um muro que lhe dava o aspecto de fortaleza. Se me afirmassem que era um convento, eu acreditaria. No centro da murada, um arco apresentava o portão destrancado, acesso que se abria para os mistérios da carne. Ignorando as minhas pernas trêmulas, a boca seca, a voz afogada, meus companheiros me empurraram para o interior da arena das leoas. Entrei em cena como um personagem inútil, jogado de última hora nas páginas do Decamerão.

Recordo, com certo pudor, que as minhas primeiras manifestações libidinosas ocorreram quando eu assistia ao seriado “Jeannie é um gênio”. A imagem erotizada daquela odalisca loira piscando os olhos me causava a precoce mágica incompreendida e constrangedora da ereção. Talvez, Barbara Eden tenha sido o símbolo sexual de uma geração de ingênuos.

Por dentro, o casarão de Laranjeiras lembrava um cabaré rústico de filmes do velho oeste americano. O piso de madeira, mesas espalhadas por um amplo salão de grandes janelas escancaradas que revelavam a curiosidade de árvores indiscretas. Sentamos e nos serviram uma cerveja. A alguns metros de nós, uma bela balzaquiana, de pele clara e longos cabelos lisos, fumava abstraída do ambiente. Um dos meus camaradas mais desembaraçados a selecionou como protagonista da minha temida estreia. Nunca me esqueci do nome da mulher: Selma.

Ela se aproximou, perguntou o meu nome e me estendeu a mão… num ato de submissão, não resisti. Caminhamos juntos até a beira de uma longa escadaria que levava aos aposentos superiores, Selma me soltou, seguiu por uma brecha lateral e apontou o local por onde eu deveria subir. Estaquei perplexo diante da visão: uma catraca, semelhante às roletas que reinavam nos ônibus antigos.

Com a mente perturbada por aquele momento crucial, ao qual me lançavam sem manual de instruções, me apaguei a imagem da catraca. Fiquei fascinado. Como poderia um puteiro alcançar tal inteligência? Freud sofreria orgasmos antes do sexo ao perceber que a catraca assumia o significado mais perfeito da prostituição. Como são cruéis as traduções exatas do universo. Um sujeito cruzou meus olhos e atravessou insensível os braços abertos da roleta, eles estalaram e imediatamente o contador em sua base fez girar os números que se assemelhavam a uma carreira de dominós caindo uns sobre os outros. Não havia romance, não transpirava amor, apenas a fria e exata sequência matemática. Aquele vislumbre mecânico aquietou meus sentidos e como a Selma me aguardava no topo da escada, entreguei-me ao abraço gélido da catraca. Fui mais um dígito intrépido acrescentado ao milhar. Subimos à alcova…

Um imenso quarto de teto alto, uma velha cama de casal, uma pia com sabão de coco e papel higiênico formavam o kit libertino. Selma perguntou se era a minha primeira vez, não sei se ela compreendeu a resposta, pois eu só conseguia balbuciar. Ela tirou a roupa e imitei a coreografia. Ela se deitou e eu me joguei ao seu lado olhando para o teto, que parecia estar a quilômetros de distância. Ela toca no meu segredo, na profunda intimidade do meu ser. Sinto uma forte descarga elétrica percorrer o corpo, um torpor de todas as sensações. Acabou. Não havia mais nada a fazer, a não ser pagar.

Ao sair, não precisei passar pela catraca. Dígitos descartados não contam. Os amigos perguntavam como tinha sido a experiência, continuei balbuciando. Não perdi a virgindade naquele dia, mas descobri a ejaculação precoce. Estive na Casa Rosa e a catraca não me deixa mentir. Jurei sobre o sêmen que escreveria este capítulo. A catraca é o mundo.