DESCONEXO

DESCONEXO

1

Quando o Sol se libertou da breve nuvem desgarrada que interrompeu o seu monólogo, raios intempestivos e furiosos atravessaram a atmosfera para fustigar os olhos de Tobias, que naquele momento despertou de si mesmo, numa sensação de quem caiu da nuvem que se desfez. De súbito, foi lançado sobre a partitura labiríntica da vida. Os automóveis roncando, sons de buzinas nervosas, a poeira que subia do asfalto, as faces estranhas e indiferentes, tudo parecia um açoite a atacá-lo com sanha implacável. Ele se acomodou no banco da praça, coração acelerado. Tentou buscar o sossego da mente controlando a respiração e seguindo conselhos do médico.  

Tobias tinha aquela praça bucólica e ruidosa, à margem de uma pista movimentada, como um santuário. Ali, tudo lembrava a infância distante, foi em um daqueles bancos que experimentou o seu último amor romântico. Jamais esqueceu Lúcia, não se negava a admitir que regressava sempre à praça para esperá-la no cenário do derradeiro encontro. Mais de trinta anos se passaram, ele não desistiu. Foi na praça a última vez que a viu, o adeus. O que especialistas chamavam de obsessão, Tobias entendia como paixão. Sentava-se como se guardasse a crença não confessada de que o tempo poderia retroagir, mas o tempo só seguia o curso inabalável do desprezo pelos homens. Tobias ficara acorrentado ao passado sem conseguir conter o avanço do calendário. Na sua percepção não existia o presente, somente o amanhã que rejeitava e o outrora que idealizava. Pairava num limbo pessoal.

Esforçava-se para visitar diariamente a praça, não perdia a esperança de reencontrar Lúcia sentada no banco que fez o palco do romance que viveram. Lúcia o menosprezou, soprava a voz que ele renegava. Se não amou, esteve perto de amá-lo – era o que Tobias respondia à voz que cochichava dentro dele. Geralmente, chegava à praça no meio da tarde e mirava o banco vazio. O banco refletia um vácuo na paisagem frequentada por casais juvenis e crianças agitadas. Se algum curioso percebesse a presença quase diária de Tobias, veria um senhor grisalho remexendo no celular e mirando ocasionalmente para a mesma direção, um par de olhos perdidos num universo desconexo e destituído de gravidade.

Seus poucos conhecidos agora se resumiam a contatos virtuais pelo WhatsApp e Facebook, não possuía emprego, morava com a irmã viúva e nela se apoiava para sobreviver. Existia numa rotina claustrofóbica. Tomava remédios contra a sua tendência depressiva, mas nunca sentiu efeito algum que indicasse a melhora da condição. Gostava de se vestir com roupas escuras, o que denunciava o seu comportamento fechado e formal com todos que se aproximavam. Falava pouco. Um solitário engolido pela nostalgia crônica dos seus melhores dias.

Não havia mais referenciais em sua vida, ele cultivava com fervor aquela lembrança órfã, agarrava-se à memória de Lúcia. Perdeu a conta de quantas vezes assistiu ao filme “Em algum lugar do passado”. Deitava-se na cama e tentava viajar no tempo usando o mesmo método do personagem do Christopher Reeve. Tobias havia submergido num mundo imaginário, onde a lembrança de Lúcia era uma fotografia velha e desbotada que se fixava como única representação tolerável do cotidiano.

Ele levava no bolso um pequeno recipiente de vidro com um líquido que inalava como se consumisse uma droga. Mistura de almíscar com odor de rosas, o perfume usado por Lúcia quando conviveram. Aquele aroma o transportava, sua máquina do tempo, sua ponte para a irrealidade. O universo inteiro que almejava cabia num frasco de perfume, onde suas melhores recordações estavam dissolvidas.

A irmã nunca conheceu Lúcia, ouviu algumas vezes Tobias conversando ao celular com alguém que afirmava ser a sua namorada. Nunca conseguiu escutar a voz dela. Certo dia, tentou procurar o perfil da mulher nas Redes Sociais utilizando o nome e o sobrenome que leu furtivamente na agenda do irmão. Mostrou a ele a foto de uma senhora que tinha com ela amigos em comum no Facebook e perguntou se aquela seria Lúcia. Tobias fitou a imagem do rosto gasto, emoldurado por fios brancos de cabelos mal arrumados e sustentados por um corpo esférico. Uma náusea vertiginosa subiu-lhe do estômago. Em seguida, sem dizer qualquer palavra, levantou-se e se trancou no quarto. Não suportava a erosão da face, das curvas.

Planejava retornar ao Mosteiro de São Bento, uma construção do século 17 que marcou o primeiro passeio com Lúcia. Ficaram frente a frente no pátio da igreja. Por entre as árvores frondosas, os raios de sol reluziam sobre a pele alva da amada. Inesquecível. Os lábios rubros de Lúcia, o sorriso insinuado. Tobias guardava aquela visão como o quadro mais valioso da sua galeria de reminiscências pessoais. Agora, por alguma razão que ele desconhecia, tudo parecia um devaneio.

Houve a ocasião em que ela o chamou de louco. Louco?! Louco por que não aceitava o adeus? Louco por fingir não a flagrar beijando outro homem num lugar público, numa hedionda traição ao seu amor silencioso? Quando falamos em loucos imaginamos sujeitos agressivos, perigosos, descontrolados. Tobias é educado, passivo, frágil e ingênuo, mas se considera determinado. Insistiu em Lúcia até que ela desaparecesse.

Além de Lúcia, quantas pessoas o chamaram de louco? Telefonavam à sua irmã para dizer que ele tinha problemas. Só podia concluir que amar demais é loucura, que insistir no amor é desvario. Tobias se alimentava das paixões febris, Lúcia foi a maior delas. Intempéries que o estagnavam. Quando a febre emocional cessava, ele se via como um homem acordando num futuro desconhecido, um neandertal entre computadores e luzes ofuscantes. O tempo tinha passado, ele não. Uma existência sem enredo.

Depois que se afastaram, percorreu por sucessivos dias a rua em que ela morava. A fantasia de estar perto, de esbarrar com Lúcia na esquina. Decidiu escrever uma carta, marcar um encontro, informou data e hora à revelia do destinatário. Estava lá, pontualmente, no dia marcado. Nada. Ninguém. Passou horas esperando a sua quimera num ato triste de masoquismo. Costumava brincar consigo mesmo dizendo que seu corpo era composto por 70% de mágoas, não de água. Evitava a autopiedade, engolia o choro, mas não considerava justo o destino que lhe coube. Acreditava no destino como força, não como vontade. Um barco à deriva, à deriva. Se a leitura está desagradável, você constata o óbvio, perseverante leitor. A loucura causa desconforto e é capaz de nos constranger quando identificamos nela pequenas semelhanças do que somos.

A idade o tornou mais sereno. Começou a apreciar a paz do espírito. Ultrapassava os sessenta anos sem reconhecer a decadência física. O velho no espelho não era ele. Negava os decretos da natureza. Em vão. Lia, lia muito, lia compulsivamente. A leitura o consolava. Queria aprender a pintar. Não aprendeu. Procrastinava. A contemplação o jogava numa melancolia viciosa, inescapável.

– Pode falar sobre você? – Pediram a ele em uma entrevista para emprego.

Tobias travou. Mudo. Não sabia quem era. Um estranho. Aquela pergunta o fez cadáver. Ele existia sem existir. Um morto indigente boiando na multidão. À deriva, à deriva. Nunca mais conseguiu ser aprovado em entrevistas para empregos. Aquilo feria sua autoestima, até que não se importou mais, não procurou mais. Não o compreendiam. A diferença não é aceita, ele supôs. Numa das últimas oportunidades em que se candidatou a um trabalho, entregaram-lhe um formulário e num dos campos pediam que identificasse sua cor. Olhou a própria pele, não sabia definir. Branco, negro, pardo? Nada se mostrava nítido ou ele não queria que parecesse nítido. Pegou a caneta e preencheu o campo da pergunta: embaçado.

2

Era atormentado por sonhos que só se consumavam em pesadelos quando ele despertava. Sonhos em que estava novamente com os colegas, num escritório longínquo em que trabalhou. Brindava, ria. Quando abria os olhos, se angustiava, trêmulo. Um receio constante de ter cometido algum crime que esqueceu. Apreensão. Encolhia-se presumindo que a qualquer momento os homens de branco pudessem encarcerá-lo numa cela inóspita e fria.

– O que eu fiz? – Perguntava-se.

Em dias assim ele se esgueirava pelos cantos das sarjetas. Repulsa de gente. O médico o diagnosticou como sociofóbico. As caixas de remédio sobre a sua mesa de cabeceira emanavam um colorido decorativo, Tobias gostava de arrumá-las simetricamente.

Alguém o seguia. Para ele, invariavelmente, alguém o seguia. Olhava para trás. A cabeça zunia. As dores de cabeça constantes. Um zumbido no ouvido que o assustava quando evoluía num coro de vozes queixosas. Sua cabeça vivia cheia de fantasmas – ele revelava à irmã indulgente. Sua existência rodeada de sombras. Cada passo que dava movia o silêncio das assombrações. Refugiava-se como podia em distrações fugazes, mas os fantasmas o perseguiam. Bebia, contrariando as recomendações do seu psiquiatra. Não bebia muito, tinha o fígado fraco para o álcool. Quando leu as cartas de Van Gogh, comoveu-se demais. Van Gogh o compreenderia. Seriam amigos, grandes amigos. O pensamento de Tobias jorrava como torrente caudalosa, rompia todas as represas que ele tentava impor. Queria parar de pensar. Parar de pensar. Aos poucos, cansava-se. Exaustão. Sentia sono de repente, muito sono. Redemoinho. Adormecia afogado em sua correnteza.

3

Naquela manhã de março, ele acordou com um instinto de urgência, passou o dia inquieto, com uma ansiedade que pressionava o coração num pressentimento intraduzível. Sem fome, não almoçou. Assistiu aos jornais da TV, tentou ler um livro. Desconcentrava-se, embora os seus sentidos estivessem com a sensibilidade à flor da pele. Sufocado, deixou o apartamento e rumou para a pracinha que o acalmava. O céu negro, dominado por nuvens ameaçadoras, não o intimidou. Unidas e resolutas, as nuvens dominaram o Sol e a luz. Tobias rompeu a calçada numa cena tingida de cinza. Chegou à praça sob o som de trovões e faíscas de relâmpagos. Nada deteve a sua marcha até alcançar o seu banco cativo. Num bar próximo, do outro lado da pista, com o som do rádio de um carro ligado em alto volume, um grupo de jovens bebia alheio ao prenúncio da tempestade.

Assim que se sentou, Tobias ressentiu-se dos primeiros pingos que lhe bateram na testa, gotas volumosas que despencaram forte em cima dele, como se quisessem acordá-lo daquele torpor antigo. Da terra molhada subiu um aroma de alívio que invadiu o seu olfato, remetia ao cheiro de rosas, de almíscar, ao perfume de Lúcia. Sem mais cerimônias, o temporal desabou como o teto de uma casa em ruínas. Com a vista turva pela chuva, Tobias distinguiu uma mulher surgindo da mesma direção que Lúcia costumava vir. Cabelos compridos e negros, a tez pálida, os olhos de um castanho vívido e delicado, o sorriso de dentes com uma suave desarmonia que arrematava a imperfeição da legítima beleza. Tobias se ergueu incrédulo. Era Lúcia. Correu ofegante ao seu encontro. Ao longe, emergindo de onde estavam o grupo de jovens, um som ganhou potência. A voz de Renato Russo cantando “Tempo Perdido” embalou o abraço apoteótico que reuniu, após trinta anos, Lúcia e Tobias. Cantaram e dançaram juntos a música que celebravam na década de 80.

A curiosidade dos jovens abrigados no bar do outro lado da praça testemunhava inerte aquele homem envelhecido dançando sozinho sobre a grama. Com olhar eufórico e alienado, ele abraçava a si mesmo, num ritual intenso de alegria intangível. Naquele picadeiro deserto, regido pelo ruído do dilúvio, gritava com todos os pulmões a letra de “Tempo Perdido”. A água escorria pelo seu rosto, inundava suas roupas, diluía-se em seus sapatos. Lúcia e Tobias tornaram-se presença uníssona, a convergência uniforme de uma única consciência tortuosa. Cantando e rodopiando, num êxtase de si mesmo, lançava os braços no ar como se estivesse envolvendo uma entidade etérea e desejada.

“Veja o sol dessa manhã tão cinza, A tempestade que chega é da cor dos teus olhos
castanhos…”

O pragmatismo dos jovens não compreendia o que só se faz visível aos delírios e às ilusões que materializam a felicidade das almas irremediavelmente naufragadas. A loucura é um Robson Crusoé que encontra a sua ilha. Em meio à tormenta, Tobias finalmente desembarcava na plenitude refratária do ilhéu remoto que a maioria dos homens teme aportar. Solidão ecoando solidão.

O CLONE

O CLONE

— O senhor não é aquele ator da Globo? Aquele… Aquele antigo… Antigo, mas o senhor está bem de aparência, tá?… Francisco Cuoco. É o senhor, né? Tira uma selfie comigo?

Olhei ao redor para confirmar se mais alguém ouvia o absurdo que a menina de topless estava cometendo, não havia ninguém olhando. Aceitei fazer a selfie como Francisco Cuoco. Por que eu iria estragar um sonho?

— Minha vó não perdia as suas novelas. Até hoje ela comenta sobre o senhor.

Como o assédio começou a ficar um pouco inconveniente, dei boa tarde e subi ao próximo andar. Havia um movimento grande no local; uma quantidade maior de mulheres também, desde a minha última visita. O número de garotas jovens exibindo peitinhos-agulha é enorme. O topless virou um atrativo diferencial na Rua Uruguaiana, 24. Fui procurar uma garota com quem eu saí diversas vezes antes da pandemia, infelizmente não a encontrei. Trashes mais pesados como o 24 da Uruguaiana são um risco para o libertino idoso, muitas garotas ali fazem sexo como quem prepara um sanduíche de mortadela, vai no automático. Eu, no entanto, estava disposto a arriscar.

Subir todos os andares do prédio, girando naquelas escadas em caracol, é tarefa dura para os meus precários músculos cardíacos, mas fui indo. Cheguei a me imaginar levando uma barraca de camping para poder dar um intervalo de descanso entre um andar e outro. Este trash da Uruguaiana é um Pico Everest do sexo. A vontade, quando se chega ao último andar, é fincar uma bandeira e comemorar explodindo uma Chandon. De repente, vejo uma loirinha com um par de seios que pareciam um photoshop vivo, ela também me vê e sorri. Não precisei me aproximar, ela se aproximou (a coisa tá feia).

— Nossa. Como o senhor parece com aquele “repórti” da “Grobo”.

Tá de sacanagem, ser confundido com terceiros duas vezes no mesmo dia é demais, o florista vai dizer que é mentira. Acredite, forista sem fé, é verdade. Não é a primeira vez que acontece comigo.

— Que repórter, minha filha? — tento descobrir, mas já sei quem é.

— Num lembro o nome dele.

— André Luiz Azevedo? É esse?

— Esse! Esse! É o senhor??? Tá sumido.

Quando ela disse “está sumido”, não entendi. Se referia sumido da Globo ou do 24? Preferi não esticar o assunto e emendei na entrevista. A moça se mostrou receptiva, confirmou oral sem capa, beijo na boca e um anal se a ereção permitisse. Amélia é o nome que usa. É, você leu certo, o nome é Amélia. Decidi me embrenhar com ela numa das baias da boate. O problema do 24 é que as baias ficam no mesmo espaço da pista, então você faz sexo com trilha sonora, geralmente é Belo, Chitãozinho e Xororó, Anitta e outros bichos. É necessário manter uma concentração sobre-humana para a peteca não cair.

A menina iniciou o assunto com um boquete espetacular, viajei na Enterprise, entrei em velocidade de dobra e quase usei o teletransporte para o Éden antes do tempo. Segurei a onda dela antes que me causasse ejaculação precoce. Pedi para que ficasse de quatro. Quando eu ia meter, aumentaram o volume do som lá fora.

”Prepara que agora é a hora
Do show das poderosas
Que descem e rebolam…”

Puta que pariu. Dei uma rateada, mas Pikachu conseguiu reestabelecer a força auxiliar e alcancei a sagrada penetração. A menina gemia no ritmo do “Show das Poderosas” e eu fazia um exercício budista para não perder o pau ereto. Meti afobadamente, o objetivo era gozar com aquela batida sonora na minha cabeça, um desafio olímpico. Gozei. A menina se levanta, sai da cabine sem dizer nada (de praxe nesses locais) e eu me visto para ir embora.

Ganho as ruas e o anonimato, respiro aliviado. Caminho até a Casa do Café Capital, na nostálgica Av. Marechal Floriano, peço um cafezinho e me sento para contemplar a vida. Do outro lado do salão, um velhinho me encara como se me conhecesse…

— Porra. De novo não. 

CEMITÉRIO DO CAJU

CEMITÉRIO DO CAJU

O número dos que nos invejam confirma as nossas capacidades.

—Oscar Wilde

O silêncio se erguia tão absoluto que poderia ser comparado ao eco de um abismo insondável. Fazia frio, eu vestia um antigo sobretudo que me cobria quase até os joelhos, as botas reverberavam meus passos sobre a calçada e a noite cinza insinuava rejeitar o brilho das lâmpadas sobre o asfalto. Sozinho, sem saber o que procurar, eu fugia da maldição da insônia. Talvez, não procurasse uma mulher, mas um espelho que me obrigasse à redescoberta de mim mesmo, que me resgatasse daquela deriva urbana. O libertino não é alguém que atravessa a noite, ele é a noite, a sombra, a calmaria que camufla o caos, é alma derivante que busca, mas jamais encontra um porto. O libertino é um corsário do sexo.

Há anos não me arriscava por aquele perímetro do cemitério onde conheci Gisa, uma ruiva quase albina que marcou minha memória e o meu combalido pênis com o seu boquete sobrenatural. Acredite, forista sem fé, não se esquece uma mulher como Gisa, você pode tentar evita-la, mas um dia retorna ao local do crime. Se eu não tenho medo de andar por lugares como o Caju? É claro que tenho receio, mas como revelei por diversas vezes, atualmente o meu prazer está mais na adrenalina do que no gozo. A mesmice serve bem aos que não chegaram aonde cheguei, eu tento restaurar o mistério e o pulso acelerado que habitaram a juventude da luxúria.

— Que isso, Dante? Existe ponto de putas perto do cemitério? — pergunta-me o forista cético.

Afirmo que sim, existe há muitos anos. Os poucos que se aventuraram me escreveram surpresos por terem realmente encontrado mariposas rondando no território da última página de todos os homens, mulheres que se movem em revoada pelo entorno do campo santo. O cético enxerga o céu, mas duvida das nuvens. Vá e veja. É um ponto destinado aos caminhoneiros e taxistas que transitam por ali. Os uivos não brotam das assombrações, emergem da garganta de alguma criatura destemida que atingiu a ejaculação pelos lábios de uma puta carpideira.

Estacionei o Sucatão próximo a uma floricultura em que estavam descarregando coroas de flores. Nas ocasiões anteriores, sondei o local de dentro do carro, não desembarquei, mas desta vez preferi ir a pé e ver por outro ângulo as moças que trabalham nos arredores do Caju. Não pense que eu seja um valente, afeiçoado forista, sinto medo, mas é o medo que bombeia o sangue, dilata as pupilas, é ele que me excita. Avistei uma pequena colônia de putas quase em frente à entrada do Cemitério de São Francisco Xavier, percebi olhares que estranharam um homem bem-vestido vagando na área, meu faro me empurrou em direção a uma menina de corpo curvilíneo e seios à mostra. Apressei-me para abordá-la.

— Como eu faço para sair com você?

— Anjo, é setenta o boquete e cem o programa.

— Pode ser no carro? Estou estacionado na floricultura.

— Pode, mas melhor parar em frente a marmoraria.

Reparei que o estacionamento da marmoraria onde fiquei com a Gisa pela primeira vez ainda funcionava.

— Qual seu nome? — perguntei.

— Kelly e o seu?

— Dante, me chamo Dante. Vamos? Aceito o boquete.

De topless, Kelly caminhou comigo até o Sucatão; ao nosso lado, as grades vazadas do cemitério revelavam covas, jazigos e anjos heroicos. Não identificava imagens do demônio, ele estava ao meu lado. Entramos no carro, Kelly me ofereceu os seios irretocáveis e mamei como um moribundo imaginando beber a ambrosia dos Deuses, a menina fechou os olhos, gemeu, girou as mãos sobre a minha calça, afrouxou o cinto, abriu o zíper, pegou meu combalido pênis e o engoliu com ânsia. Um boquete inenarrável, sem preguiça, que dissimulava tesão legítimo. Escalava a minha glande com a língua e despencava como uma praticante de rapel até a raiz do meu pau. Eu estava em delírio, vendo crucifixos imensos e torres góticas despontarem diante do para-brisa. Gozei num último suspiro, meus espermatozoides flutuaram como fantasmas, lambuzaram os lábios de Kelly, o painel do carro e o meu abdômen. Paguei a garota, ela saiu e eu tentei controlar a respiração para recuperar o fôlego.

Refeito, girei a chave do automóvel, pisei na embreagem, acelerei e ganhei a Avenida Brasil. Inseri um disco aleatório no cd-player, um som nada celestial inundou a cabine e minha cabeça dançou desafiando a finitude. A vida não tem reprise.

Culture Beat – Mr. Vain

O Sucatão zunia contra o vento frio que vinha de todos os lados. Se existe vida após a morte, ela faz ponto em frente ao cemitério. Creia, a partir de agora qualquer aventura é possível.

#Libertine-se

CAVERNA DO DRAGÃO

CAVERNA DO DRAGÃO

Fui um andarilho noturno e no verão de uma década distante, quando a Lapa respirava entre as sombras de travestis e rufiões decadentes, longe da festa das luzes de neon que imperam atualmente, eu caminhava pelos burburinhos clandestinos da rua do Riachuelo. Não tinha um rumo, mas buscava um objetivo, parei em um boteco numa esquina arborizada da av. Nossa Senhora de Fátima e pedi uma Salinas.

Um boêmio fala, mas prefere ouvir. Escutar os papos sorrateiros ou gritantes de um botequim é colher histórias ou perceber convites para aventuras. Dois homens que aparentavam estar na faixa dos quarenta anos de idade comentavam sobre um amigo desgarrado.

— Cadê o Rufino, cara? O bicho sumiu, estava comigo agorinha mesmo.

— O Ladeira passou aqui e disse que ele foi para os lados da Caverna do Dragão.

— É ali no início da André Cavalcanti.

— É puteiro?

— Inferninho.

Atento ao diálogo entre os dois personagens notívagos, gravei as coordenadas e me decidi a explorar a tal Caverna do Dragão. Tomei três doses da minha cachaça favorita e parti deslizando com as minhas botas em direção ao lugar. Meu estado etílico dava aos meus passos um ritmo de levitação, as pupilas dilatadas pelo álcool me faziam ver estrelas cadentes no asfalto. A felicidade é um copo de caninha.

Comprei um maço desses cigarros de menta, na época eu gostava de ter algo entre os dedos exalando fumaça como um defumador. Alcancei a rua André Cavalcanti e avistei um toldo roxo piscando com luzes que me lembravam decoração de Natal. A placa na entrada mostrava-me que acertei o caminho. O nome Caverna do Dragão piscava em vermelho, ao lado das letras o dragão estilizado simulava soltar chamas pela boca. Entrei…

Sempre gostei de sair sozinho à noite, isso me dava liberdade, me permitia a mobilidade que eu quisesse exercer, não me fazia depender das preferências de uma companhia para entrar onde eu quisesse. A Caverna do Dragão não cobrava ingresso, pagava-se pelo consumo. A entrada desaguava em uma rampa que se aprofundava pelo subsolo de um prédio que aparentava ser residencial, segui por uma angustiante descida em caracol que não prometia fim, caí em uma sequência de corredores iluminados por pequenas luzes vermelhas e finalmente desemboquei em um salão amplo, decorado com candelabros e lustres antigos, como se fosse a sala de uma casa da nobreza imperial. O som altíssimo me anunciava uma região exótica, penetrei na pista ao som de A-Há com Take On Me…

A-HA

Debaixo de um dos lustres exuberantes, uma mesa de sinuca e no entorno algumas mesas pequenas rodeadas por duas cadeiras. Pelos cantos, vi pinballs e máquinas de fliperama; no centro de tudo uma pista de dança cercada por cordas, como se fosse um ringue para luta de boxe. A-Ha deve ter sido a introdução, pois logo o DJ emendou com Dreams…

DREAMS

De cara cheia, arrisquei minha veia dançante e soltei a franga enquanto observava o entorno. A boate era habitada por uma galera moderninha para aqueles anos remotos, meninas com maquiagem pesada, homens com cabelos estranhos, um clima gótico. Eu atraía a atenção por ser um elemento destoante naquele aquário de peixes ornamentais, estava vestido com um blazer, blusa social e as botas gaúchas inseparáveis nas minhas incursões pela noite. Uma loira com roupa semelhante a de uma colegial perdida no bordel me acompanhava de rabo de olho e um sorriso que poderia ser deboche ou curiosidade, eu queria abordá-la, mas precisava me fortalecer com mais uma dose e fui buscar o bar atrás de um uísque.

Assim que desci do ringue, a melodia de Simple Minds ecoou nos meus ouvidos que ainda ouviam, nesse momento fui possuído, esqueci o uísque, retornei ao ringue musical e encarnei um Baryshnikov insano.

SIMPLE MINDS

Não me lembro de ter dançado tanto na vida, talvez por isso me recorde das músicas, das sensações, do gosto de tudo, do sabor do batom da loira que consegui beijar quase no alvorecer da madrugada. Acendi um cigarro, lancei as mãos para o alto, rebolei como um hetero liberado de todos os preconceitos plantados na alma e conheci o Nirvana.

CARTA DE UMA PROSTITUTA SUICIDA

CARTA DE UMA PROSTITUTA SUICIDA

1

Há pouco, caminhei pela areia até a beirada da praia, sempre gostei de sentir as lambidas das marolas cansadas molhando meus pés, a água está morna e convidativa.

Nunca apreciei escrever, mas decidi improvisar estas palavras, rascunhar meus últimos pensamentos num guardanapo. Toda vida é um rascunho.

Nasci aos 27 anos, quando cheguei de Juiz de Fora para morar em Copacabana. Quem me pariu foi a maresia da praia do Leme. O mar me deu consciência do mundo, plantou em mim o infinito, a minha alma.

Havia economizado algum dinheiro, era pouco. Consegui me instalar no quarto de um apartamento na Barata Ribeiro, a dona era uma loira com olhos de ganância, se chamava Vera. Pelas mãos dela, fui levada às boates e às luzes da noite. Rápido, me acostumei ao toque lascivo dos homens, aprendi a cobrar pelo prazer que eu podia lhes proporcionar. Um dia me chamaram de prostituta e descobri o que eu era.

Falavam da minha beleza, elogiavam meus olhos, meu corpo, meus cabelos…  Deram-me um nome e esqueci meu próprio nome. Virei outra.

Conheci os vícios, aqueles que nos fazem conseguir ser o que não somos.

Um dejà-vu me atormenta, tudo me parece irreal. É a solidão. A solidão é o prefácio do existir. Só me estranho quando estou sozinha.

Daqui da areia vejo os prédios que margeiam a orla, pontos de luz que fogem pelas janelas, denunciando vidas que não são a minha, constelações artificiais sobre o asfalto. Eu fracassei. Queria alguém agora que me chamasse de prostituta, eu precisava lembrar-me do que eu era.

Aos 35 anos, conheci Omar, foi Vera quem nos apresentou. Ele quis reescrever meu rascunho. Levou-me para uma quitinete, me deu uma aliança e disse que cuidaria de mim. Chamava-me de filha. Era velho, nunca recebeu uma visita. Zelei por ele durante dois anos e o encontrei morto numa tarde de sábado. Ele me deixou seus bens: sua quitinete, uma mísera pensão e uma poupança modesta.

Certo dia, reencontrei Vera no calçadão, fazia uma década que não nos víamos. Ela se emocionou, me abraçou forte e tocou meus lábios num beijo roubado. Estremeci como se um projétil houvesse me atingido. Nunca nenhum toque me abalara tanto. Marcamos de nos ver no dia seguinte, mas ela não apareceu, jamais descobri seu paradeiro. Normal para quem é da vida. Prostitutas evaporam como a água que entra em ebulição.

O espelho revelou meus olhos confusos, perdidos entre sulcos e rugas de um rosto precocemente arado pelos anos. O tempo me fez outra novamente. Necessitava de alguém que me reconhecesse como prostituta. Nunca compreendi o fim da minha beleza.

Sou um calendário de dias vazios, todos iguais. Dejà-vu do nada num caldeirão de néon em Copacabana. Como não sei o que virá pela frente, vou descrever como imagino o meu epílogo…

2

Depois de alguns devaneios, ela ingere alguns comprimidos com aquela serenidade de quem se decidiu. Entra no mar e sente o carinho aconchegante das ondas. Lembrou-se do abraço forte de Vera a puxando para junto de si, sente o beijo que a fez pensar ter descoberto a paixão. Ficou boiando alguns minutos, parada, quis apenas sentir a sedução da água envolvê-la. De um lado, havia o negrume de um horizonte escondido. Do outro, a praia e o brilho do asfalto. Quis lembrar-se de alguma coisa, mas a mente já embotava. Só a recordação de Vera e do beijo insistiam em ser seu epitáfio. Os seus membros iam sendo dominados pela dormência, ela reagiu com braçadas fortes em direção a escuridão. Uma paralisia a tomou, avistou o céu e as verdadeiras estrelas, sua visão escureceu. O oceano gelou… Do calçadão, quem olhava para o mar não via ou ouvia nada além do breu pontilhado pela pálida espuma das vagas que quebravam surdas na areia. O silêncio era a luz da escuridão…

CARNE FRIA

CARNE FRIA

1

Descerrou os olhos devagar, contraíram-se dolorosamente com a sensação da luz. Um gosto amargo subia do estômago para a sua boca. Levantou-se lentamente, desequilibrado, apalpava cada mínimo apoio que encontrava para sustentá-lo. Não havia pensamentos, seu cérebro era uma nebulosa em formação. Existia só o mal-estar…

Sobre sua camisa pendia a gravata frouxa enlaçada ao colarinho e um paletó amarrotado. Estava sem as calças, mas continuava com os sapatos. Encontrou suas calças em cima da cama, ele havia dormido no chão. Fez questão de compor-se e arrastou-se até o banheiro.

Escorou-se na pia e se deparou com o espelho. Olhou, olhou, olhou… Não conseguia se reconhecer, não lembrava sequer do seu nome. A face contorceu-se numa expressão involuntária de angústia.

Jogou água ao rosto, aos lábios… Tentava livrar-se do gosto amargo da boca.

Suas mãos estavam sujas, as unhas encardidas por um vermelho vinho… Ele encarava o espelho, investigava os seus próprios olhos, mas o reflexo não lhe contava nada. Naquele instante, tudo era um grande segredo.

Cambaleante, retornou ao quarto.

Surpreendeu-se com a presença de um corpo na cama. Era uma mulher, ele reconhecia, era o corpo de uma mulher. Uma mancha rubra e viscosa tomava metade do lençol. Ele não entendia.

Achegou-se à cama.

Olhou, olhou, olhou… O corpo nada lhe dizia.

Tocou na carne alva sobre o colchão, sentiu um estranho choque. Assustou-se!

Carne fria!

Lembrou-se! Lembrou-se de um gosto de ferro, do gosto de sangue, do sabor amargo em sua boca. Era uma mulher, estava deitada sobre uma mancha rubra, entre os seus seios havia um corte que ainda fazia vazar a fonte do vermelho vivo incrustado em suas unhas.

Velou o corpo por horas, mergulhado naqueles olhos estáticos e abertos. Só havia o vazio. A Morte não lhe dizia nada.

Seu rosto modificou-se em frustração. Entediou-se.

Sentindo-se mais revigorado, saiu por uma porta que estava entreaberta, desceu alguns lances de escada, rompeu uma portaria deserta e viu-se tragado por um brilho fortíssimo e quente. O sol.

Sua pele parecia tomada por chamas. Tudo era intenso, ardia. Ele caminhou muito, sem rumo. Ouvia sons, música, vozes… Ele compreendia as palavras, mas não atinava o sentido. A cada passo, ficava mais firme, mais forte. Porém, aquela imensa claridade abrasava sua pele, consumia seus olhos.

Ele estava em frente ao mar e uma brisa morna enxugava o suor do seu rosto. Não suportava toda aquela luz, buscava uma sombra. Sentou-se defronte ao oceano. Olhou, olhou, olhou… O infinito é um confessionário inexpugnável e não lhe revelava nada.

O gosto acre em sua boca começava a se dissipar, mas ele não sentia alívio.

Voltou a caminhar, não havia mais sol. Todos os seus membros pareciam exalar um frescor que renovava o seu ânimo. Era noite… estava exausto das luzes, procurava abrigar-se nas sombras noturnas que acobertavam as esquinas.

O gosto amargo havia sumido e ele tinha sede.

Sua mente era uma cortina negra, não havia memória, mas ele sabia para onde estava indo. Penetrou numa rua decorada pela penumbra, mulheres seminuas o observavam da porta de casebres. Dentre todas, avistou uma bem jovem, ele a queria. Aproximou-se sem dizer nada e ela assentiu com um olhar.

Combinados no silêncio, foram para um pequeno quarto de hotel, perto de onde estavam. Não havia palavras. Quando a porta se fechou, ela despiu-se revelando a nudez promíscua. Ele sentiu o toque suave das mãos pequeninas em seu tórax. Ela fitou seus olhos e o instinto o fez saber como agir. Deitou-a na cama e beijou-lhe o vinco entre os seios.

Sua boca estava seca, a garganta doía. Ele tinha sede.

O semblante dela transfigurou-se numa imagem de terror. Descobriram, ambos, os motivos pelo qual estavam ali.

2

A claridade da manhã fez seus olhos abrirem e os castigou com o flagelo da luz. Ele esticou-se e girou os olhos em torno de si mesmo. Não havia memória. Tudo era como sempre foi, um hermético mistério…

Havia um gosto azedo em sua boca, um gosto de ferro, um gosto de sangue…

Viu um corpo ao seu lado e uma mancha rubra no lençol. Era uma mulher. Ele a tocou e saltou para trás num ato de repulsa.

Velou o corpo por horas.

Carne fria!

CANCELA PRETA (BANGU)

CANCELA PRETA (BANGU)

E assim, ao sair de mais uma visita à Vila Mimosa, decido imbicar pela Leopoldina e percorrer a Av. Brasil, para conferir a dica de um amigo Taxista, um lugar chamado Cancela Preta.

A Cancela Preta não chega a ser outro Planeta, mas é quase um Satélite da Terra, tal sua distância. Fica no limbo, embolada entre Padre Miguel, Realengo e Bangu. Não sei especificar sua localização, mas chega-se lá pela árida Av. Brasil e é indicada pelas sinalizações.

Quando caí no acesso da Brasil que desembocava na penumbrosa Cancela Preta, me dei conta que talvez fosse um lugar mais propício para caçar Vampiros do que mulheres. Não tinha jeito, após meia hora cruzando o asfalto, eu estava na Cancela Preta e, logo de cara, tive uma visão.

Creia, leitor sem fé! Num recuado de pista, dentre várias meninas, havia uma loira saradíssima, vestida com top e calça de ginástica, fazendo ponto num local batizado como Cancela Preta. Eu nem sei se acredito em mim mesmo quando conto isso, mas é a mais pura, translúcida e nutritiva verdade.

Seu nome é Laura, pedi que entrasse no carro e começamos a conversar.

Com este corpão, você deve fazer academia todos os dias! – Inicio minhas perguntas cretinas.

Não tenho dinheiro para a Academia. Comprei uns pesos na Casa & Vídeo e malho em casa.

Impressionante! A força de vontade faz milagres! Não me emocionou pelo rosto, mas pelo corpaço.

Tratei com ela o presente. O Sucatão mergulha no breu até o Motel Carbonara, também na Brasil, altura de Bangu. Peço um apartamento simples.

Introduzo a chave, abro a porta do quarto, acendo a luz e ouço um grito estridente… Era a menina que berrava e corria desesperada para o banheiro, perseguida por uma nuvem de mosquitos canibais que despertou quando entramos. Ao verem o primeiro ataque frustrado, a mosquitada partiu raivosa para cima de mim, agora era eu quem gritava e corria. Protegi-me com o cobertor, ao mesmo tempo, agitava o travesseiro para espantá-los. Consegui abrir a janela e ligar o ar-condicionado.

Em poucos segundos, fui semidevorado pelos hematófagos, mas venci uma das sete pragas da Cancela Preta.

Exausto, bati à porta do banheiro para avisar que a mosquitada havia feito um recuo estratégico. Laura abre a porta e sai de calcinha minúscula e com os pequenos seios durinhos expostos. Que delícia!

Uma perna malhada da moça devia dar duas da minha; barriga tanquinho; bunda de pedra e arrebitada; braços fortes e pele macia.

Começamos nos beijando, ela tem um beijo gostoso. Depois, desceu lambendo minha barriga, abocanhou meu membro e sugou-me como os mosquitos hematófagos que tentaram secar meu sangue.

Peço a minha posição favorita e ela fica de quatro. A visão daquela bunda trabalhada com pesos da Casa & Vídeo me deixou atordoado. Comecei a meter, a garota não gemia, arfava. Senti que ainda resistiram alguns mosquitos desertores da tropa que invadiu o quarto, volta e meia eu era assolado por picadas, mas o tesão era forte e gozei sem medo.

Deixamos o hotel e eu desovei a Laura novamente na Cancela Preta.

De volta à Av. Brasil, acelero o Sucatão. Tive a impressão de ver uma nuvem de insetos nos seguindo. Não, não podia ser! Era o trauma da situação vivida que me iludia. Voamos de volta para casa!

Até o próximo episódio…

Boate Sinônimo (Lapa)

BOATE SINÔNIMO (LAPA)

*Adentrando pela velhice, quando num dia tardio eu desaparecer, restarão os arquivos dessas memórias escritas nos fóruns e no livro que deixei sobre a vida mundana (O Paraíso de Dante). A morte de um Highlander nunca pode ser descartada, vi foristas falecerem de súbito, boêmios que hoje são lembrados somente por aqueles que compartilharam da companhia de quem muitas vezes levava uma vida dupla. Somos folhas caindo da árvore da existência.

Estava aos pés da madrugada tomando meu conhaque num pé-sujo na esquina da obscura Rua Ubaldino Amaral com Mem de Sá, na Lapa. O movimento intenso da calçada era ignorado pelos bêbados do balcão, todos debruçados sobre a vitrine de ovos coloridos e de uma gordurosa rabada que prometia um infarto fulminante a quem a ingerisse. Eu estava feliz agarrado ao copo, observando o entorno, misturado à alienação dos ébrios. Certa vez, um ancião de alto teor etílico me ensinou que o dia é a rotina, o trabalho, a preguiça da praia; já a noite é o imprevisível, o gozo, a pele em contato libidinoso, é o mistério, a perversão.

Eu tinha bebido tanto que começava a sentir dificuldade em focar os olhos num ponto fixo. A felicidade do álcool atordoa, obstrui os sentidos. O meu estado de suspensão animada não me impediu de ver a mulata que passou me encarando, quase me desafiando para um duelo sexual. Paguei esbaforido a bebida e saí no encalço da menina que pingava sensualidade a cada rebolado que a impulsionava para frente. Confesso, afeiçoado forista, eu fazia um esforço sobre-humano para me manter em linha reta, lutei heroicamente contra a sinuosidade dos meus pés. A garota parou em frente a um sobrado rosa, entregou um papel e entrou. Avancei na intenção de permanecer no seu encalço.

O sobrado rosa era uma boate de nome “Sinônimo” (a criatividade dos nomes ainda me espanta). Comprei um ingresso, entreguei ao porteiro, fui revistado e entrei. Gays, simpatizantes e provavelmente alienígenas me aguardavam no interior. O lugar tinha dois andares, dois ambientes. No térreo ficava o bar com música ao vivo, gente apinhada, um cara perto do caixa me mostrou a língua como se fosse uma serpente erótica. Assustador. Por alguma dessas coincidências sacanas do destino, o caixa da “Sinônimo” era um antigo barman da Mosaico, precisei de uns dez minutos para convencê-lo de que eu não pertencia ao mundo gay e que estava ali por acidente de percurso. Não sei se ele acreditou. Subi ao segundo andar à procura da mulata e até hoje não me esqueço, tocava uma música do The Cure (Lullaby).

Acredite, forista sem fé, não achei a mulata, mas avistei uma ruiva de cabelos cacheados, pele alvíssima e um corpo estonteante executando o que meu amigo Teixeirinha chama de “a dança da enguia”. A menina se contorcia, se agachava quase se arrastando no chão, levantava com as mãos os cabelos vermelhos num coque sexy. Vestia um top e uma calça justíssima de um tecido preto e brilhoso que devia ser couro. Fiquei hipnotizado, talvez até apaixonado. Como já expliquei, amigo forista, dileto companheiro dessas viagens psicodélicas pelas noites cariocas, o libertino não é aquele que não ama, o verdadeiro libertino ama demais, numa sequência quase vertiginosa de paixões que nascem e morrem. O libertino é um náufrago de amores interrompidos.

Quando estou bêbado, sou cara de pau. Não tirei mais os olhos da ruiva e esperei o momento conveniente para me aproximar. Assim que ela se afastou um pouco da muvuca, cheguei junto e perguntei se ela topava beber comigo. O noturno imprevisível aconteceu, ela aceitou. Seu nome era Raquel e sua primeira pergunta foi para saber se eu era gay, bissexual ou coisa que o valha. Novamente, me peguei explicando que eu não era gay, que havia entrado ali por acidente, para procurar uma pessoa. Não adiantou, amigo forista. Quando você entra numa arena gay, ninguém crê que você não seja gay. Relaxei, mas com receio de em algum momento Raquel me convencer a me assumir. Seria inusitado se isso acontecesse, me tornar o Seu Peru da Tijuca. Sentados num canto reservado da boate, ficamos conversando. A menina não teve pudor em me revelar que era bi.

As horas passaram, dançamos rodeados por monas, gays e travestis eufóricos. Foi uma baita experiência. Ela me apresentou a alguns amigos ou “amigas”. Bebemos todos. Estava perto de inventar que meu nome era Dantielle Morgan, só para não me sentir deslocado. Quase as quatro da manhã ela me disse que ia embora, me ofereci para levá-la. Andamos até o Sucatão e partimos. A menina morava sozinha numa quitinete da Rua República do Peru, em Copacabana (o destino é ou não é um sacana?).

– Quer subir pra saideira? – Ela pergunta.

O apartamento minimalista tinha metade do seu espaço tomado por uma mesa de passar roupa aberta. Sentei-me num pequeno sofá e ela entrou numa área reservada que devia ser o quarto avisando que iria ficar mais à vontade. Pediu que eu tirasse os sapatos. Voltou do quarto flutuando num parco baby-doll e acomodou-se no meu colo. Sim, profético forista, a transa aconteceu e foi magnífica ou ao menos é assim que me recordo dela.

Deixei o prédio trôpego e entrei no Sucatão. Começava a amanhecer e a sensação de ressaca se insinuava em minha cabeça. Desconheço se a boate Sinônimo ainda funciona. Passei um bom tempo sem conseguir contato com Raquel, mas um dia ela me ligou perguntando se eu poderia pegá-la no Grajaú. Fui. Depois disso nunca mais nos vemos. O libertino é um náufrago de amores que surgem como miragens e desaparecem no horizonte inalcançável.

ISA — SOBRE AS ILUSÕES DO ROMANCE

ISA — SOBRE AS ILUSÕES DO ROMANCE

Passei as últimas semanas com pensamentos engasgados. Eu precisava fazer este último relato, o último registro. As palavras brotaram dos meus dedos como a música que jorra sob a batuta de um maestro. Peço que sejam tolerantes com este velho escriba e que me perdoem por qualquer pieguice indefensável.

Foram quase nove meses, cerca de duzentos e quarenta dias, que me dediquei a estar com uma única mulher. Desde junho de 2022 até janeiro de 2023. 

Confesso que me esforcei mais para ser mais amigo de Isa do que simular algo semelhante a um namoro. Ao final, fui levado a compreender, de supetão, que um namoro seria impossível. Sem problemas, meu afeto nunca mudou, manteve-se firme.

Ontem, vi que o anúncio da Isa no ar saiu do ar e senti uma pontada de melancolia. Para o maior entendimento de todos, Isa é uma garota de programa, o que na minha visão nunca foi demérito.

Foram oito meses em que ela me telefonava todas as manhãs, muitas vezes a tarde e algumas à noite. Oito meses em que me acostumei a esperar sua última mensagem antes de dormir. Oito meses de conversas longas, às vezes divertidas, outras vezes tensas. Habituei-me, ela não.

Não conseguia tirá-la muito da sua ilha, da sua pequena sala, para onde me dirigi por incontáveis tardes vadias, durante inenarráveis semanas consecutivas. 

Acostumei-me a levar pão, frios e café da padaria da esquina para tomarmos juntos. Admito, o sexo se tornou secundário, meu carinho por Isa era o carinho por uma menina que eu poderia querer cuidar por oitenta meses e por muito mais do que duzentos e quarenta dias.

Desde que voltei a escrever crônicas eróticas, foi a mulher que mais permiti que visitasse a minha Fortaleza da Solidão na bucólica Tijuca. Foi a única que brincou com a minha cachorrinha e se apegou a ela. Lembro-me de um fim de tarde em que fomos para o meu escritório, confidenciamos e escutamos juntos as nossas músicas favoritas. Como esquecer?

Eu a chamo de menina porque havia nela uma face pueril, um ciúme fútil e dissimulado, uma vontade de se conectar que, ao mesmo tempo, era malograda pela necessidade imperiosa de se proteger, de se resguardar e de desconfiar. 

A ilha de Isa era um castelo quase inexpugnável. Muitos sabiam da história pessoal que ela compartilhava, mas pouquíssimos foram os que souberam de fato onde encarnavam as raízes dos seus verdadeiros amores.

Era doce, era feroz, era infinitamente atenciosa e aplacava a própria carência se apoiando em quem escolhia como referência na sua rotina de trabalho. Não sei se era somente para mim que ela telefonava todos os dias, se era só a mim que ela convocava para as tardes inesquecíveis ao seu lado e em sua pequena caverna. Preferi me convencer de que eu possuía esse privilégio, que eram somente meus esses gestos tão imensuráveis de atenção.

Estar com Isa por tanto tempo significava velejar por um lago sereno, sob um céu azul imaculado, ou naufragar nas ondas de um mar furioso e devastador. Tudo era intenso. A alegria por estar em sua companhia foi afogada, em muitas ocasiões, pelas marés da inconstância do seu temperamento. Felizmente, nunca nenhuma turbulência foi capaz de sufocar a minha perseverança.

A única frustração intelectual que senti ao seu lado ocorreu quando anunciei o relançamento de um dos meus livros e ela não exibiu qualquer interesse pela parceria para me ajudar. Porém, isso não a fez pior para mim. Nada era imperdoável.

Nas últimas semanas antes das suas férias, pressenti pela primeira vez que estávamos nos harmonizando, no afeto e na intimidade. As névoas pareciam se dissipar. Ela ria mais ao meu lado, cismava menos, demonstrava confiança e o desejo de criar um elo. Ou, quem sabe, nada disso aconteceu e eu é que me entreguei aos delírios da ansiedade. Seja como for, sou um otimista e sempre creio no melhor da vida.

Até o último dia em que trabalhou, nos falamos diariamente. Na última semana antes da licença, não consegui visitá-la. Não me aborreci por isso, a dedicação ao trabalho proporcionaria a ela um descanso merecido e sem preocupações. Assim pensei.

Logo nos primeiros dias das férias, Isa silenciou. Minhas manhãs não se iluminaram mais pela sua voz; minhas tardes deixaram de ser temperadas pelo pão-francês, café e frios em sua companhia; meus sonhos se esvaziaram sem as mensagens de boa noite. Tudo cessou. Sem nenhuma explicação, nenhum retorno. Simplesmente desapareceu, como uma estranha que não me reconhecia.

Por que não confessar que sou um velho sentimental? Eu sou. A falta de qualquer sinal de Isa me entristeceu, me ressentiu. Não me desapontei apenas por ter o orgulho ferido ao concluir que fui um mero objeto descartável, lamentei por toda a idealização e deferência pelas quais eu a enxergava.

Isa foi uma das raras mulheres que desejei admirar, é difícil entender o porquê de ela ter preferido se revelar como miragem no último capítulo. Restou-me retornar à aridez da promiscuidade.

Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado — escreveu Marx.

O propósito deste relato, para ser considerado um relato, está em contar que nas últimas semanas, antes do desolador sumiço. Eu e Isa nos conectamos. Se não foi real, não nego que acreditei que fosse. Estávamos próximos, arrisco-me a dizer que estávamos felizes por finalmente dividirmos emoções em comum. Pela primeira vez, em oito meses, ela me presenteou com dois livros comprados em uma visita que fizemos juntos a Biblioteca Nacional.

Como somos duas criaturas que encontram prazer na luxúria, fomos mais do que nunca uma dupla nas brincadeiras libertinas. Mergulhamos nas provocações eróticas. Foi divertido para mim e creio que para ela também.

Nossa fronteira eram os limites da sua sala. As restrições que cercavam Isa se mostravam intransponíveis, tanto pelas dificuldades burocráticas como pela aparente falta de vontade dela em se libertar. As barreiras, no entanto, nunca me impediram de continuar cultivando a ternura.

Como eu disse, sou um velho sentimental. Diante do maremoto do desgosto, sempre escolho guardar as melhores lembranças: o sorriso que me iluminava, o olhar delicado que me observava.

Quem sabe, na minha ingenuidade, eu ainda não esteja esperando para descobrir que entendi tudo errado, que tudo foi real, que nada é miragem. A porta pode se fechar, mas mantenho as janelas abertas para permitir que entre alguma aragem capaz de me consolar.

Que me julguem como ridículo, mas os maiores orgasmos que experimentei na vida derramaram-se do coração.

Se eu não sinto falta dela? Ainda sou um homem que não perdeu a sensibilidade, sinto falta do hábito que tínhamos de conversar, de nos vermos de vez em quando. O que ficou agora é aquele vazio de quem acreditava no outro e o tempo vai mostrando que o sentimento era unilateral. É provável que tudo fosse uma mentira erguida por Isa, um momento de diversão para preencher o tédio entre um programa e outro, a pequena tragédia estava na minha crença de que era real.

Não tem problema, eu transformo decepções em arte. Que se destaque neste texto o valor irrevogável que dou ao afeto e aos que se tornam próximos de quem eu sou. Que a memória seja infinita enquanto dure…

BOATE FLÓRIDA

BOATE FLÓRIDA

Somos fantasmas colonizando o tempo, os lugares pelos quais passamos, as lembranças daqueles com quem cruzamos, os amores que vivemos. Somos fantasmas pairando pelo nosso próprio rastro de vida.

Há poucas semanas atravessei a Praça Mauá, foi como se eu ultrapassasse um portal e me visse, através dos olhos do meu espectro, o cenário dos meados da década de 1990. As luzes, os sons, os bares abarrotados de homens famintos por sexo e mulheres de programa, as boates nos convidando à luxúria, foi como assistir a região portuária ressuscitar de um passado morto e sepultado por museus e novas camadas de concreto.

Reencarnado no meu fantasma de outras eras, estacionei o meu carro nos arredores da Avenida Rio branco e me preparei para subir os degraus estreitos da Boate Flórida. A nostalgia é uma arapuca perigosa, um labirinto difícil de se escapar, mas me deixei tragar pelo passado, retomei os resquícios da juventude desperdiçada na boemia improdutiva, revi o sombrio viaduto da perimetral, tomei um chope no antigo pé-sujo embaixo do inferninho, observei o porteiro da Scandinávia tentando pescar clientes, respirei o aroma libertário da maresia ancestral e decrépita que emergia do mar.

Tudo no mundo é frágil, tudo passa, quando me dizem isso toda a graça de uma boca divina fala em mim” — estes versos da poetiza Florbela Espanca ganharam mais vulto à medida em que envelheci. As árvores das calçadas resistem, os sobrados centenários e carcomidos se mantêm de pé, talvez a peça mais frágil da existência sejamos nós, que transpomos os anos inundados por uma torrente incessante de perdas que nos descaracterizam e corroem a nossa identidade.

Quando entrei na Flórida da minha memória e contemplei a pista da boate, revivi a emoção, a adrenalina dos dias remotos, mas jamais esquecidos. Pouca luz, mulheres dançando nos queijos que circundavam o ambiente, o DJ em sua cabine tocando os sucessos da época, os garçons incansáveis, gringos e brasileiros unidos pelo desejo em uma arena apinhada de garotas dispostas a nos conceder o orgasmo. Todos esses elementos formavam uma pequena maquete da felicidade para o pândego errante que não pensava no amanhã. Uma convenção de cigarras reunidas enquanto as formigas dormiam.

Na minha jornada proustiana, Be my lover vibrava nas caixas de som, o álcool, misturado às batidas da música, despertava a euforia coletiva. Pelas grandes janelas panorâmicas da Flórida, eu conseguia ver as águas mansas de uma Baía de Guanabara pontuada por pequenos brilhos distantes e misteriosos.

BE MY LOVER

Uma stripper gaúcha se apresenta no palco, alta, longos cabelos negros, um corpo irretocável e sinuoso. Desnuda-se, sabe do poder que enfeitiça os olhos que a esmiúçam em cada pedaço de sua pele. Eu a aprecio fascinado, ela se ondula no ritmo da melodia que transborda à sua volta. Sento-me em um canto, peço um martini, a bebida doce e rascante aquece a minha garganta, as pupilas se dilatam, os brilhos intensificam-se, as mulheres se tornam hipnóticas. Foi quando me deparei com uma loira colossal requebrando-se em um dos queijos, o corpo esguio, as pernas torneadas, os cabelos cacheados desabando sobre os ombros, os olhos ardiam verdes em contraste com as luzes de neon, ela sorria e despia-se impudica. Sensual como se fosse a manifestação física da luxúria, não consegui parar de encará-la, até que ela percebeu a minha presença. Sinalizei e convidei-a para se sentar ao meu lado, ela veio após terminar seu show.

Michele o seu nome, de perto ainda mais linda, paranaense em temporada no Rio, veio atrás do dinheiro e dos gringos ancorados no porto. Alta, devia atingir 1,70m, olhos verdes, lábios carnudos, pernas longilíneas e bem torneadas, barriga chapada, uma perfeição perdida naquele caldeirão de promiscuidade. Paguei algumas bebidas e perguntei se podíamos ficar juntos (não existiam quartos na Flórida nesta época). Ela aceitou, me informou o valor do cachê e me disse que poderíamos ir para o seu quarto no Hotel São Bento, localizado na esquina da Rua São Bento com Av. Rio Branco, naquele tempo restringia-se a um pulgueiro que abrigava prostitutas e clientes. Concordei e saímos juntos da boate.

No quarto do hotel, ela se despe lentamente, me encarando, como se quisesse me provocar, liga o rádio, dança ao som de Zombie, música que marcou aquele ano…

ZOMBIE

Pediu que eu me deitasse, veio por cima de mim como uma felina em chamas, lambeu meu rosto, meu tórax, minha barriga, deslizou sua língua até a minha virilha e abocanhou meu jovem pênis com o prazer de uma mulher que gosta de chupar um homem. Estremeci, mas lutei contra a ejaculação precoce, ela sobe novamente sobre o meu corpo, monta meu tronco como uma amazona e cavalga como a Sharon Stone em “Instinto Selvagem”. Leva a boca até a minha boca, sem interromper a cavalgada, me beija, lambe meus lábios, rebola mais intensamente. Resistir seria inútil, gozei meus infantes espermas ainda cheios da energia da flor da minha idade.

Voltei outras noites à boate Flórida, voltei outras noites ao Hotel São Bento, voltei mais e mais noites aos braços e abraços de Michele. Não me lembro quando deixamos de nos encontrar, quando parei de vê-la. O tempo é um rio caudaloso que vai erodindo tudo a nossa volta, deixando um vazio onde antes reconhecíamos nossas referências, até nos arrastar em seu fluxo para um mistério que desconhecemos.

Quando despertei de mim mesmo e retornei ao hoje, o Sol afogava-se colorindo o mar com o reflexo laranja de suas chamas, me senti sozinho naquele cenário agora irreconhecível para os meus olhos, não havia mais Michele, não havia mais Flórida ou Scandinávia, o pé-sujo se sofisticou e o jovem que eu abandonei no tempo nunca quis me acompanhar no meu envelhecer. O rio segue e eu ainda tento nadar contra a corrente.

Andarilho da Lapa

O ANDARILHO DA LAPA

Cansado… é a palavra que me vem à mente muitas vezes, quando estou prestes a entrar em uma sala do AA37 ou quando estou perambulando pelo Centro. Compreenda, entrei no meu primeiro bordel em 1980, depois disso me tornei um lobo desgarrado buscando saciar a fome da libido. Acredite, forista sem fé, mais do que uma necessidade, toda fome é um vício.

Foi a última noite em que saí para caçar, a mais recente, antes da invasão da falsa alegria do Carnaval. Confesso que sempre fui um velho misantropo, bem antes de me tornar um velho pela idade. Nunca gostei de muvuca, de calor humano ao meu redor, sofro de antropofobia. A única vez em que me senti bem no meio de uma multidão foi no Comício das Diretas em 1984, havia um romantismo idealista que unia e confortava quem esteve no miolo daquela turba.

Foi minha incansável insônia crônica que me jogou nos braços da madrugada, cogitei ir para a Vila Mimosa, mas concluí que seria um destino deprimente, a Av. Francisco Eugênio também não me apeteceu. Aonde ir? Copacabana já era, as frees estariam dormindo ou cuidando dos filhos. O que resta? A Lapa, o último reduto libertino, não que seja um lugar que me motive, apesar de toda a história boêmia que repousa naqueles sobrados. A Lapa continua resistindo às transformações do tempo, morrendo e ressuscitando através dos séculos.

Para o leitor casado ou àquele que está abandonando o casamento na tentativa de recuperar a juventude perdida, que se limita somente aos encontros nas salas dos corredores sombrios da rua Álvaro Alvim ou em prédios decadentes da cidade, para esses ainda é difícil recordarem-se de que o maior tesão do sexo está na adrenalina que o precede, nada que é programado favorece à adrenalina. Talvez, por isso, eu me sinta um pouco entediado atualmente, me deixei contaminar por um ritmo que não é o meu. Retomar a liberdade, o meu desejo por descobertas, é me libertar do bolor sexual dos outros.

Sei que para alguns é complicado crer que existe um mundo mundano além das salas de mulheres com anúncios, não é à toa que um ou outro forista me pergunta, após ler alguns dos meus relatos com mulheres aleatórias: “ela existe mesmo, Dante?” — Foi assim com a Gisele, com o Palácio de Cristal e com outras situações. No caso das minhas visitas ao Palácio de CristaL, dois foristas estiveram lá e me deram retorno, gostaram. No fórum não há essa cultura da rua, da caça aleatória, mesmo que envolva garotas de programa. Essa é a única modalidade que realmente me interessa agora.

Quem frequenta a Lapa com olhos de ver deve ter reparado que não é incomum sermos repentinamente abordados por mulheres que se apresentam como promoters em muitas das casas de diversões que ali estão instaladas, algumas a gente olha e sente a saliva pasma de desejo escorrer pelo canto da boca, são mulheres bonitas. O que pode acontecer é demorarmos para percebermos que algumas dessas mulheres estão ali para jogo.

Larguei um pouco a cachaça Salinas e voltei a abraçar o Black Label, o uísque é a única bebida alcoólica que opera uma transformação psicológica em mim, fico mais eufórico, mais solto, mais descontraído, chego a me sentir feliz. Após rodar para cima e para baixo na Av. Men de Sá, pedindo uma dose do Black em cada esquina em que vi um bar, decido entrar em um estabelecimento que fica entre a rua do Lavradio e a Gomes Freire, na mesma calçada da Up House. Tocava um funk quando passei em frente e me chamou a atenção uma cortina que me impedia de ver o que rolava lá dentro. Fiquei na tocaia, até que alguém saiu, a cortina se moveu e pude observar que o interior do lugar era pequeno e estava lotado. Entrei e fui recepcionado ao som de Michael Douglas…

MICHAEL DOUGLAS

PARTE 2

Saber escrever é perigoso. Você pode despertar admiração, competição ou recalques; pode erguer mundos, descrever cenários, conquistar a eternidade; pode enaltecer ou implodir pessoas; desmascarar mentiras e falsidades; pode dar fama ou relegar ao anonimato qualquer criatura ou situação que sirva como tema. A palavra é poderosa, é a arquiteta do nosso espírito, aprendo e confirmo isso à medida em que me aprimoro na articulação da língua.

É inegável que a idade pesa, mesmo que antes eu não tivesse essa melancólica noção sobre o princípio da velhice. Fui um guerreiro dos mais ativos, minha conta sobre a quantidade de ocasiões em que fiz sexo já se perdeu há tempos. Eu não poderia ter aderido ao matrimônio quando mais novo, pois seria mais um adúltero patético povoando as penumbras envergonhadas da prostituição e não suporto viver uma face de mentiras. Meu único ato de juízo foi me manter como um celibatário.

Hoje, percebo que estou maduro para um relacionamento mais estável. Talvez, por isso, eu esteja também mais suscetível às ilusões sentimentais. A experiência nem sempre nos faz imunes à malícia. Ser uma alma libertina não me priva de ainda possuir um tempero romântico. Sou da velha guarda, da safra dos boêmios que ainda amam.

Afirmo sempre que o libertino não é aquele que não ama, mas é o personagem que não se encaixou em qualquer espécie amor. É um errante, um náufrago do afeto, agarrando-se às pequenas boias que flutuam nesse imenso oceano das miragens, boias que logo afundam e o obrigam a continuar nadando. É uma vida solitária, mas em que a solidão não é castigo, é dádiva. Na ausência do amor, ama-te sem reservas ou pudores.

A passagem do tempo tenta impor aos que envelhecem um tipo de deslocamento geracional, sobrevivem aqueles que sabem se inserir em todas as épocas que testemunham e atravessam. Com o avançar da idade, precisamos escapar dos nossos próprios preconceitos e da armadilha tosca que o etarismo arma para nos encurralar. Após os quarenta anos, é preciso revolucionar-se diariamente para não se tornar um proscrito condenado pela frieza homicida do calendário cristão.

PARTE 3

O que ainda me empurra para a noite? Não tenho certeza, talvez a ansiedade, uma ponta de angústia, o breve incômodo por estar sozinho quando gostaria de me compartilhar com uma mulher que estivesse à minha altura.

O universo da luxúria é frio, principalmente no que diz respeito às mulheres. Uma prostituta tem seu lado social, de família, é onde ela preserva seus melhores sentimentos. Por outro lado, quando está com o homem que paga pela sua presença, não é incomum que assumam uma face maliciosa, que gira pelo interesse monetário, que não se importa com o outro, que quer apenas usar, se divertir com carências de forma muitas vezes implacável. As mulheres que cedem a essa bifurcação do caráter se perdem, se afogam em si mesmas. Nunca vi um final feliz em casos assim. O afeto não salva, mas atrai energias melhores.

Naquele buraco em que entrei, no meio de um bando de jovens saltitantes, envolvido pelo funk nas alturas, me senti um Matusalém. Não querendo ser pernóstico, mas sou um homem clássico, frequentador do Teatro Municipal, da Sala Cecília Meirelles, um adepto da música clássica, leitor sofisticado, me visto com sobriedade, considero-me um exemplar elegante da minha geração e cultivo tudo isso com dedicação. Estar no meio daquela arena selvagem me oprimiu, senti o impacto do choque de gerações, da ruptura com meu próprio tempo. Não suportei ficar cinco minutos naquele ringue juvenil, escapei dali como um presidiário desesperado pelo oxigênio das ruas. Também possuo meu limite de tolerância.

Voltei a perambular pelos descaminhos da Lapa, pensei em revisitar o Palácio de Cristal (PALÁCIO DE CRISTAL), mas a ausência da Gisele acentuaria o meu desânimo. Com as pernas cansadas, os olhos turvos pelo uísque, decidi encostar a carcaça no primeiro abrigo que avistei, um lugar chamado Cavern Pub. Estava cheio, uma banda de rock se apresentava, me embrenhei e pedi mais um Red Label que matei em um único gole. Creio, estimado forista, bebo pouco, mas quando saio para beber costumo compensar todos os dias em que não bebi.

A mágica acontece quando menos esperamos. Uma mulher de uns quarenta anos, trajada em um estilo gótico, surgiu do nada e se aproximou de mim.

— Desculpa perguntar. Você está bem? Achei seus olhos tristes?

O destino me pregava mais uma peça. Girei o pescoço para ver quem falava comigo e me deparei com uns olhos azuis que também teriam roubado o paraíso de Adão. A resposta à pergunta que me fez ficou entalada na minha garganta, pois me pareceu a oportunidade exótica de falar sobre toda a minha vida. Ela continuou me encarando. A banda começou a tocar Something, meus olhos quase marejaram…

SOMETHING

FINAL

Sou um insurgente. 

Sim, ao contrário do que alguns insistem em suspeitar, talvez por estarem mergulhados na ignorância da inexperiência, não escrevo ficção por aqui. Tenho na minha face de jornalista a inevitável simpatia por narrar histórias que brotam da vivência verídica do dia a dia ou do noite a noite. Aos que tentam me reprovar por escrever relatos com apelo sexual, respondo com os versos do inigualável poeta português José Régio:

“Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…”

—————————-Continuação—————————————–

— Se quiser conversar, sou psicóloga — me informa a coroa gótica.

O fato de se dizer psicóloga mais me desanimou do que motivou, no entanto, a torrente incessante do destino me oferecia a oportunidade de uma conversa inesperada. Perguntei se eu poderia pagar uma bebida, ela pediu uma caipirinha e aceitei o convite do acaso, despejei minhas infelizes experiências recentes no ouvido da suposta psicóloga. Ao terminar, lembrei-me de que não sabia o nome dela.

— Demmy, não estranhe. Sou filha de americanos — ela me responde.

Pela cor imaculada do azul dos olhos, tomei como verdade a origem do nome. Pareceu-me que estávamos os dois no mesmo patamar de embriaguez, Demmy foi muito simpática, demonstrou uma capacidade rara de ouvir sem julgar. Permanecemos ali, debaixo de um toldo com a inscrição “Boemia da Lapa”, trocando as nossas impressões sobre o vertiginoso ato de existir.

Com a conversa esgotada, me despedi de Demmy e segui no meu périplo noturno pela velha Lapa. Segui até ao Bar das Quengas, que nos meus tempos mais juvenis era um pé-sujo democrático frequentado por putas e travestis lutando pela sobrevivência. Busquei um lugar vago e sentei-me, pedi outro uísque. Sinceramente, perdi a conta de quantas doses de uísque tomei naquela noite, mas eu continuava um ébrio dono da razão.

— Tá sozinho, rapá? — perguntou-me um sujeito na mesa vizinha.

Respondi que sim.

— Tu é carioca? Senta aqui com a gente, somos de Manaus e estamos visitando essa cidade da porra.

A contragosto, mas por cortesia, troquei de lugar e me acomodei na mesa do amazonense, ele estava acompanhado de duas mulheres, uma delas grávida. Falei sobre o Rio, sobre a minha origem gaúcha, ele dissertou sobre Manaus e sobre sua própria vida. Contou-me que já tinha sido morador de rua em São Paulo, mas hoje é um orgulhoso empresário na área de informática. Expansivo, apresentou-se como Edvaldo, apontou para a morena bonita agarrada ao seu ombro, revelou ser sua namorada. Teceu elogios à grávida do meu lado, futura mãe solteira.

O interessante é que não detectei qualquer sotaque nos manauaras, talvez amazonenses não tenham sotaque, foram os primeiros que conheci de perto.

— Conhece algum lugar bom para a gente ir? Para virarmos a noite na farra? — me pergunta Edvaldo.

— Olha o lugar que conheço aqui por perto talvez você não aprove, é uma boate. Uma boate de swing.

O grupo se entreolhou e Edvaldo solta a exclamação.

— Homem, é tudo que a gente queria. Conhecer as sacanagens dessa cidade. Por isso, viemos à Lapa. Vai com a gente? Swing é casal, temos que formar dois casais.

— Mas ela também vai? — apontei para a grávida.

— Claro que eu vou — a própria gestante respondeu.

Quando dei por mim, estávamos os quatro entrando na boate Mistura Certa, com a grávida segurando em meu braço. Chamava-se Kássia, uma loira bonita que me fez lembrar a atriz Cheryl Ladd quando jovem.

Edvaldo encheu a mesa de bebidas. Eu estava entrando no começo desconfortável das vertigens alcoólicas, mas não quis estragar a festa. A namorada do Edvaldo era uma morena realmente lindíssima, cabelos longos, rosto de traços finos, olhos negros e expressivos, um corpaço de parar trânsito. Edvaldo cochichou ao meu ouvido que se tratava de uma garota de programa, amante de um advogado e que topou viajar para o Rio com ele pela “modesta” quantia de sete mil reais.

— E a grávida? — perguntei.

Também era uma garota de programa que deu mole e engravidou de um cliente que se comprometeu a bancar o filho.

No meu íntimo mais profundo, eu pensei: definitivamente, putas e libertinos se atraem como o mercúrio. Depois da Demmy psicóloga, a casualidade quase previsível me coloca no meio de um putanheiro com duas garotas de programa a tiracolo. Quem sabe ainda me livro dessa sina me submetendo a um descarrego?

Edvaldo e a morena fizeram a festa no labirinto da luxúria. Eu, que nunca havia ficado com uma grávida, me meti em uma cabine e recebi um dos boquetes mais arrepiantes da minha carreira, além de uma sequência de beijos na boca capazes ressuscitar Lázaro.

Fim de festa, o excesso de doses de uísque agora me provocava náuseas mais incômodas, preferi me despedir do grupo. Perguntei quanto devia a menina, Edvaldo disse que nada, tudo por conta dele, incluso nos sete mil reais. Por via das dúvidas, puxei duzentos e cinquenta reais e entreguei na mão da gestante, que me deu outro beijaço na boca como agradecimento.

Despedi-me de todos eles. Antes de sair, ouço a derradeira pergunta de Edvaldo.

— Homem, não seu teu nome, nem perguntei.

— Dante, meu nome é Dante.

VINHETA

Fiz sinal para um táxi, desfaleci na minha cama e quando acordei nem eu mesmo acreditei nas memórias que transbordavam em mim

Black Or White

BLACK OR WHITE

“Sou um organismo cibernético, tecido vivo expandido em um endo-esqueleto de metal. Ciborgue T-800, sistema Ciberdyne, modelo 1-0-1. Fui capturado e reprogramado para essa época no ano de 2029, com o objetivo de garantir a sobrevivência de John Connors, líder da resistência humana contra a Skynet. Venha comigo, se quiser viver.” (Terminator)

EXTERMINADOR DO FUTURO

Os pneus do automóvel, com marcas cruas de lanternagem, chiavam sobre o negrume do asfalto, o céu cor de chumbo respingava lágrimas sobre as paisagens esquecidas do Rio de Janeiro. Atravessar a Tijuca em direção ao bairro de Bonsucesso é semelhante a uma viagem de trem fantasma ou a um trailer do Exterminador do Futuro, cuja música não me saiu da cabeça durante o percurso. Um libertino não teme, mas também não perde a noção do perigo. Meu destino era a Black White, onde encontraria outros replicantes da minha mesma espécie.

A passagem pelo bairro do Rocha, Benfica, a travessia pela Avenida Leopoldo Bulhões, um cenário urbano que nos faz pensar que aquelas regiões sofreram alguma hecatombe recente. A penumbra de um semideserto, com velhos casarios em ruínas e prédios malcuidados, erguem-se em sombras de mistério e solidão. A única luz de vida que pude avistar no trajeto veio do bar Velho Adônis, local que ainda preciso conhecer de perto. Favela do Arara e Manguinhos tracejam diante dos meus olhos curiosos.

Chego ao destino. Entro em uma boate vazia, mas que rapidamente foi recheada por muitas mulheres, mas os clientes continuaram poucos. Bebo, misturo Brahma com Ice, o que me garantiu uma desagradável dor de cabeça no dia seguinte. Algumas garotas se apresentaram para mim, dispensei todas, não porque não fossem interessantes, mas pela minha preferência de ficar livre até escolher a fêmea para o abate. Abate talvez seja uma expressão forte, pois Pikachu, o breve, se mostrava indisposto naquela noite e provavelmente me renderia pouco sexo e um grande vexame.

A BW tem um clima simpático, algumas garotas realmente interessantes, perdidas na Zona da Leopoldina. O comandante da casa, muito educado, veio me cumprimentar, perguntou se estava tudo bem, sabia até que sou escritor. A fama corre. A princípio, fiquei em dúvida entre três moças, depois entre uma loira atraente chamada Lolita e uma morena extremamente sexy que usa o nome de Melissa. O papo com a Melissa fluiu, a menina se mostrou sem restrições, me deu um beijão de língua na pista e foi mais rápida para me convencer a escolhê-la. Alcova.

O período de uma hora na BW na suíte não é barato, mas considerei que Melissa merecia e subimos. No quarto pude vislumbrar seu corpo despido do minúsculo biquíne, um corpão de empolgar defunto cremado. Cintura finíssima, bundão esférico, barriguinha zero e um par de seios de adolescente que me fez salivar mais do que faz um sunday do McDonald’s.

Beijos fartos, roçadas perigosíssimas, chave de perna, gemidos estonteantes de Melissa e um boquete que faria inveja à despudorada Linda Lovelace. Entre gargantas profundas e esfregas de alta tensão, quase caí na armadilha da ejaculação precoce, mas para não sucumbir pedi que Melissa ficasse de quatro e tremi daquela paisagem que poderia ser confundida com a descoberta do novo mundo por um marujo desavisado. Ajoelho-me e penetro com respeito religioso naquele templo úmido e quente, a vagina. Estocadas leves que aumentam com o entusiasmo. Pikachu, o breve, se vê obrigado a atuar com disposição diante daquele monumento tropical que é Melissa. Gozei horrores, ejaculei a tabela periódica, a minha árvore genealógica e o tratado da evolução de Darwin. Despenco arfando no colchão que guarda com o silêncio de um monastério todas as fodas que sustentou e testemunhou naquela pequena suíte.

Encerrado o embate, ficamos abraçados, eu e Melissa, conversando sobre a vida. Ela ainda parecia estar cheia de fogo, enquanto eu não passava de um trapo tentando voltar a respirar no ritmo normal. Hora da despedida. Retorno à bucólica Tijuca pela Avenida Brasil, funil onde nossas vidas convergem. Ali, não existem belas paisagens, o que predomina é a realidade, feia como podem ser as realidades, retrato da nossa degradação. I’ll be back

Blue House e o existencialismo libertino

BLUE HOUSE E O EXISTENCIALISMO LIBERTINO

O rádio tocava Something In The Way, do Nirvana. O táxi escalava em marcha lenta, num quase sem fôlego que cobiçava o alto da estrada Grajaú – Jacarepaguá.

Something In The Way

Pela janela, eu contemplava a cidade, cemitério de vivos, se reduzir a pequenos pontos de luz, luzes brancas e amareladas, um pálido véu de estrelas falsas contemplando a imensidão enigmática do cosmos. Qual o sentido da vida que morre? Não conseguia evitar filosofices enquanto os pneus sofridos giravam em direção ao destino que escolhi. Viver sem buscar sentido, talvez seja a resposta. Meus olhos mergulhavam na mata árida, na favela que só encontra significado na miséria, na escuridão que me espreitava se misturando ao meu semblante interrogativo. As batidas da música me afogavam em mim mesmo.

Da Tijuca até a Blue House é um estirão. O taxista tagarelava reclamando dos passageiros, do trânsito, da vida. “Qual o sentido da sua vida?” — senti vontade de perguntar —, mas a resposta ele me oferecia com o seu papaguear interminável: é o caos que não aspira sentido algum.

Descendo a serra, minha mente submergia num Rio de Janeiro profundo, uma Gotham City sem Batman. Comungado com os pneus, com ritmo da canção estrangeira, eu corria em direção ao caos que me faz esquecer que não há sentido em nada, pois não pode haver sentido em vidas que morrem. Talvez, o único sentido da vida seja o orgasmo, a explosão de prazer que anseia germinar outras vidas sem sentido, num ciclo interminável de nascimento de natimortos.

A estrada de Jacarepaguá exibia bares luminosos, lotados de gente se alcoolizando, para esquecer, em busca do gozo que, numa duração de poucos segundos, nos eterniza neste planeta condenado.

— A boate está perto, é mais ali na frente — me avisava o taxista tagarela.

Eu vestia uma calça jeans, uma blusa escura e calçava as minhas botas inalienáveis. Ser libertino é o meu sentido, ser essa sombra que vaga pelos cabarés e pelos corpos mornos das prostitutas, sou a sombra que brilha. De súbito, o motorista diminui a velocidade. Chegamos. Pago os cinquenta reais da corrida e finco minhas botas na terra que circunda aquele território desconhecido.

Na recepção, sou recebido por um sujeito mal-encarado que pede o meu celular e mete pedaços de esparadrapos nas câmeras do aparelho.

— É por segurança. Já tivemos problemas — ele me explica por entre os dentes.

Recebo uma comanda, outra porta se abre e estou dentro da boate. Mesa de sinuca, pequenos sofás, bebidas espalhadas por bancadas redondas e triangulares. A luz tênue da boate projeta silhuetas com pouca roupa dançando, o espaço não é grande. Mulheres na pista, mulheres chegando, a atmosfera de flertes gananciosos e olhares lúbricos compõe o enredo do inferninho.

Uma loira altíssima, de corpo cavalar, me encara. Decido me aproximar. Ela me conta que também cumpre expediente na 65. Pergunto o nome, pergunto o que faz na cama. “Não beijo na boca” — a resposta me faz descartá-la imediatamente. “Uma mulher que custa 400 contos na 65 e não beija na boca” — murmurei com tom de indignação. Malandra, antes da resposta fatal, conseguiu me tirar um drink caríssimo como brinde.

Vaguei pelos cantos do lugar tentando encontrar uma presa, eu estava determinado a foder. Mulheres que não me interessam se aproximam, eu as descarto sem permitir que se demorem na abordagem. Ela veio caminhando em passos lentos, mulata de 1,70m, cabelos curtos, dotada de curvas vertiginosas e olhos que pingavam sensualidade a cada passo que ela dava. Vinha em direção ao bar, na minha rota de interceptação. Não hesitei, interrompi a rota da mulher.

— Preciso saber seu nome — perguntei.

— Bárbara. E o seu?

— Dante. Meu nome é Dante.

Perdoe-me pelo trocadilho infame, afeiçoado forista, mas a Bárbara é bárbara. Uma beleza sem exuberâncias nos traços do rosto, mas o corpo curvilíneo, a bunda empinada que poderia estampar capa de revista, os olhos de ressaca que causariam inveja à Capitu de Machado de Assis… Bárbara é o abismo do tesão. Conversou comigo sem pressa, bebemos juntos, ameaçamos beijos públicos e impudicos, ela esfregava sua pele na minha e roçava seu rabo irretocável no meu combalido pênis. Pedi uma alcova. Quarenta minutos por 180 reais, no cartão sai por 220 pilas.

Ela me conduz ao quarto, um quarto amplo, com box e chuveiro, poderia ser o aposento de algum motel barato e de boa qualidade. Gostei. Bárbara me avisa que irá pegar seus apetrechos, aguardo. Ela volta rapidamente, se despe do minúsculo biquine e me beija com a sede de uma mulher que atravessou a secura de um deserto. Nossas línguas se enroscam, Bárbara geme, me abraça com força, esfrega-se em mim, roça sua vagina em meu pau.

“Que porra de mulher maravilhosa” — eu pensava.

Acredite, forista sem fé, Bárbara é realmente maravilhosa. É daquelas que se entrega completamente, goza, chupa desejando sugar o nosso sémen. Alertou-me de que não fazia anal, mas no quarto conduziu meus dedos para o seu cuzinho macio e apertado. O altar é o cu — asseverava o Marquês de Sade com a propriedade do maior libertino que existiu. 

Bárbara cavalga em mim com o rosto virado para o meu, me beija, me lança seus seios duros e bicudos para que eu os lamba; me cavalga de costas, pede que eu enfie o dedo em sua bunda, geme alto, parece gozar; fica de quatro, eu ajoelho diante daquele templo sexual e o penetro rezando um Pai Nosso.

Bárbara pede que eu a chupe e caio em sua vagina como um mouro orando à Meca. Ela se contorce, grita, goza outra vez. Abre suas pernas e me convida para a mais básicas das posições, subo por cima do seu tronco, penetro novamente em sua boceta e meto enquanto nossas línguas se entrelaçam num nó cego. 

Gozei sentindo o infinito dos segundos em que os espermas saltam para a armadilha dos instintos. Desabei esgotado ao lado de Bárbara, semimorto. E naquele vazio depois do orgasmo, naquele breve momento em que deixamos de existir, lamentei por aqueles espermatozoides que jamais encontrarão um óvulo, senti a solidão ancestral de todos os libertinos, essas sombras que brilham. 

Bebel Sucuri

BEBEL SUCURI

Loucuras não se explicam, se cometem!

Foi numa sexta-feira, início da noite. Eu estava confortavelmente acomodado no escritório de casa assistindo umas fitas de um seriado antiquíssimo que um amigo da TV Globo conseguiu gravar: Xazan e Xerife. Alguns irão lembrar, era um programa com o Flávio Migliaccio e o Paulo José. Nostalgia braba. De repente, o telefone toca tão alto que chego a me assustar.

Teixeirinha do outro lado da linha.

– Dante?

– Fala, Teixe! O que manda?

– Preciso da sua ajuda hoje.

– Pô, mas hoje? Já estou até de pijama!

– Tem que ser hoje.

– Diz.

Eu havia tirado carteira de motorista há pouco tempo, me sentia inseguro ao volante. O Teixeirinha, com o pretexto de me ajudar a praticar mais a direção, me pediu para levá-lo até um

Motel na Av. Brasil, alegando que uma namorada insistia em conhecer o tal recanto. Ele, no entanto, queria ver primeiro onde ficava o prédio de alcovas.

– Mas Teixeirinha, por que você não vai com o seu Corcel e já leva logo a mulher?

– Cara, o Corcel está parado, quebrou a cruzeta!

– Quebrou o que, Teixe?

– A cruzeta!

– Cruzeta?!

– É, mas deixa para lá! Coisas do Corcel! Estou quase indo num Antiquário para poder consertá-lo. Mas vamos logo!

– Tudo bem. Vou me arrumar e passo na sua casa.

Bastou meia hora e eu estava na Av. Vinte Oito de Setembro pegando o Teixeirinha e depois ajustei o leme para a Av. Brasil.

O céu estava carregado. Chuva anunciada. Quando passamos em frente ao Caju, o Teixeirinha me informa que sua intenção era localizar o Motel Carbonara, ficava em Bangu.

-Pô, Teixeirinha! Você quer ir até Bangu só para saber onde fica um Motel?! Que isso?!

– Cara, preciso saber onde fica esse troço. Motel na Brasil eu não confio.

– Caramba! Mas a sua namorada não tem tara por um motel mais perto, não? Querer transar num motel de Bangu nem é mais tara, é perversidade sexual!

– O importante é que ela quer me dar, Dante! E se a fantasia dela é transar em Bangu, alugo até um barraquinho lá, o que não posso é perder a mulher.

Viajamos por quase quarenta minutos para aplacar a obsessão do Teixeirinha. O Carbonara ficava na altura do Conjunto da Marinha, a entrada era pela Brasil. A cena foi ridícula, identificamos o Motel aos gritos histéricos e fanhosos do meu amigo. Costumo descrever a voz do Teixeirinha dizendo que ela não está muito longe de uma dublagem do Pato Donald e é bem por aí mesmo.

– É o Carbonara! É o Carbonara, Dante!

– Beleza! E o que a gente faz? Entra e tira um cochilo?

– Perde o amigo, mas não perde a piada, né? Vamos voltar.

– Voltar? 

– Voltar. O retorno é ali na frente.

E voltamos. O Teixeirinha, cheio de sono, me orientou sobre o trajeto antes de começar a madornar do meu lado.

– Dante, não tem erro. É uma reta! Quando perceber que estamos saindo da Brasil, você me acorda. A gente pega a Francisco Bicalho e vamos sair na Praça da Bandeira. Molinho! Coisa de criança! Você me chama se ficar enrolado. E dormiu…

Na altura de Irajá, em direção ao Centro, uma tempestade desabou sem pedir licença. Eu mal podia enxergar meio metro à frente do carro. Fui prosseguindo devagar no caminho. Nisso, o Teixeirinha desperta por alguns segundos.

– Com essa chuva é que vou ficar constipado de vez! – Diz meu amigo.

– Constipado, Teixe?! Isso é o que?

– Estou ampliando meu vocabulário.

– Praticando o boiolês.

Com o meu copiloto novamente apagado, alcancei Manguinhos, onde a chuva havia perdido parte da força. Mantive-me na reta.

– Teixeirinha! Acorda! Estou subindo um viaduto. Faço o que depois?

– Viaduto?! Que viaduto?! – Fala o Teixe enquanto se espreguiça.

– Você é que tem que me dizer! – Respondo.

– Cara, que merda! Isto não é viaduto! É a Ponte Rio – Niterói!

– Putz! E vamos fazer o quê?

– Relaxar e aproveitar a paisagem. Não tem mais jeito.

– Pô! E onde a gente vai parar?

– Advinha? …

– Esquece! Já sei.

E, como nem eu e nem o Teixeirinha tínhamos um conhecimento profundo sobre a geografia de Niterói, fomos nos embrenhando pelo seu interior.

– Teixe, onde a gente está?

– Não sei, Dante. Vamos procurar alguma placa que nos tire daqui.

Placas eram ficção no lugar onde estávamos e, sem saber como, fomos desembocar em Charitas. Resolvemos parar o carro e tomar uma cerveja num bar próximo à praia.

– Vamos ter que comprar um mapa para sair daqui. – Digo.

– Cara, vamos seguir as placas!

Acontece que todo libertino sofre de um fenômeno conhecido como a Síndrome do Mercúrio. Ou seja, um libertino sempre atrai outro libertino e, juntos, são atraídos por um Bordel.

Não deu outra. Quando tentávamos encontrar a trilha de volta para o Rio, embicamos por uma Estrada sem nenhuma indicação que nos fornecesse seu nome. No meio do desvairado percurso, avistamos uma Casa toda iluminada, como se estivesse decorada para o Natal. Na fachada, uma placa:

“Não percam! Hoje tem Show da Mulher Serpente! Duas cervejas grátis! ”

– Dante, vamos entrar aí. A gente aproveita e pergunta como encontrar novamente a Ponte.

Estacionei e entramos.

Apesar da aparência faraônica, a casa por dentro era simples. Assemelhava-se a um bar de beira de estrada. Mesinhas de ferro espalhadas num salão espaçoso, sinuca, chão de cimento e, ao fundo, um tablado que serviria de palco para a grande apresentação da noite. A música do ambiente era vibrante, moderna e dançante. Mulheres circulavam por entre as mesas trajadas em shortinhos jeans e tops. A maioria era bagaceira, umas poucas atraentes. Serviam para acentuar o contraste no momento em que adentrava a Estrela da noite.

Uns quarenta minutos depois que chegamos, com o Teixeirinha chapado, um Mestre de Cerimônias anuncia a sensação da noite: A Mulher Serpente.

– E, com vocês, a nossa Feiticeira. Segurem seus corações porque ela os arranca com os olhos. Que entre a Rainha de todos os Sonhos, a Mulher Serpente!

Surge então uma mulher alvíssima, alta, cabelos negros cacheados escorrendo abaixo da cintura, um par de olhos azuis incandescentes. Lindíssima! Ao som de Erótica (Madonna), vestida numa justíssima roupa de couro acinzentada e atravessada por decotes ousados, ela começou a dançar sinuosamente fitando cada um dos presentes no salão. Era hipnótica.

– Cara, o que é isso?! – Meio que exclama o Teixeirinha.

– É a Mulher Serpente, Teixe.

– Dante, finalmente sei o que é o Amor.

– Segura a onda, Teixeirinha.

– Cara, eu estou apaixonado.

– Você está é mamado, Teixe.

– Cara, o meu coração está naquele palco, eu tenho que ir lá pegar.

– Pô, Teixeirinha, fica quieto aí.

Minhas objeções não o impediram. Logo ele estaria postado à beira do palco com um olhar babão para a dançarina. Ela não demorou a perceber e sinalizou para ele subir. Aqui, chegamos ao clímax, amigo leitor.

O alucinado Teixeirinha estava no palco. A beldade o fez deitar no tablado e começou a despi-lo. A cada peça arrancada dele, ela também deixava cair uma. E foi neste ritmo que os dois alcançaram a nudez absoluta. Ela em pé sobre o meu embevecido amigo deitado entre suas pernas. O Teixeirinha parecia um bebê no berço, maravilhado com um móbile suspenso diante dos seus olhos. Ria sem jeito cobrindo os genitais. A galera presente foi ao delírio, ria e zoava numa verdadeira farra.  Agora, o Teixeirinha era a Estrela.

A Mulher Serpente saca uma garrafa de vinha e olha para o Teixe como se pedisse seu consentimento para algo que está por vir. Inicia um banho de vinho sobre o corpo inerte do nosso herói. Depois, agacha-se por cima dele e começa a lambê-lo por onde o vinho corria. Aplausos, gritos, assobios e o Teixeirinha rindo, rindo sem parar.  O show termina, ela cochicha algo no ouvido do nosso protagonista e ele vem ao meu encontro na mesa com um sorriso largo e ar de vitorioso.

– Vou precisar que você me empreste R$ X,00.

– Como é? Mas para quê? – Questiono.

– É o aluguel da suíte aqui em cima. Ela me convidou para ficarmos juntos.

– E o convite custa R$ X,00?

– Custa R$ X,00. Preciso dos seus R$ X,00 para inteirar os meus R$ X,00.

– Teixeirinha, você aloprou de vez!

– Nem pense em me negar isso, cara!

– Mas e o Carbonara com a sua namoradinha?

– Dante, a minha Gordinha perdeu a prioridade para este monumento.

– E como o monumento se chama? Você perguntou o nome?

– Não sei se devo falar. Você vai querer sacanear.

– Quer o dinheiro? Vai falando.

– Bebel Sucuri. Foi como que ela se apresentou.

– Bebel Sucuri?! Perdi até o tesão, Teixeirinha.

– Não importa o nome, o importante é a qualidade do produto.

Emprestei o dinheiro e o Teixeirinha desapareceu pelas escadas que levavam ao andar de cima do sobrado. Esperei por uma hora até que o avistasse descendo os degraus com um semblante de poucos amigos.

– O que houve, Teixe? Desembucha! Como foi o desempenho da garota?

– Cara, não teve desempenho de ninguém!

– Xiihh! Não acredito! Qual foi a merda que deu?

– Vamos sair daqui. No carro eu conto.

Dentro do carro, retomando a nossa Odisseia em busca da Ponte Rio – Niterói, o Teixeirinha passou a narrar o drama.

– Vai, me conta o que aconteceu, Teixe!

– Você nem vai acreditar…. Uma tragédia!

– Conta! Deixa de melodrama e conta.

– Vou resumir.

– Resuma.

– Chegamos à suíte, bonitinha até, tomei meu banho e deixei a Bebel no chuveiro. Voltei pra cama. Em cima de uma cômoda vi um potinho de creme, abri, cheirei, achei o aroma gostoso e resolvi esfregar um pouco no pau e no saco. Quis dar uma moral, deixar tudo cheirosinho pra gata.

– Mas e aí?

– Aí é que são elas. Assim que terminei de passar o creme comecei a sentir uma sensação estranha, uma dormência no saco.

– Peguei o pote novamente para ler o rótulo.

– E que creme era esse, Teixeirinha?

– Cara, era xilocaína. Meu pau não subiu nem com guindaste. Morreu! Morreu tudo!

– O que é isso, Teixeirinha? E como se resolveu com a Sucuri?

– Lá vem você querendo me sacanear. Não estou para isso! Falei que estava me sentindo mal, fiquei deitado por uma hora e saí fora.

– E o dinheiro?

Nem quis saber. Cara, eu estou inválido até agora por causa da merda da xilocaína e você vem me falar de dinheiro, porra! -O tom do depoimento era dramático, mas tive um acesso de risos que só terminou quando cheguei ao meu ansiado lar. Findava a Odisseia. Deitei exausto na cama e antes de fechar os olhos ainda pensei: o mundo é surreal!

Ariel

ARIEL

Insone crônico. Já perdi a conta do número de anos que padeço da dificuldade para dormir à noite, não é uma das experiências mais agradáveis perceber que o dia amanhece sabendo que ainda não cerrei os olhos. Não é fácil se acostumar a condição de vigília involuntária, já fiz tratamentos, consultei neurologista, até psiquiatra, mas nenhuma solução oferecida foi mais poderosa do que a minha resistência ao restaurador sono noturno. Nesta última sexta-feira, eu estava assim, desperto, inquieto, precisando atender à convocação das ruas, do céu cinza, da ameaça opressora da chuva. Esperei o temporal estiar, embarquei em um táxi e comuniquei o destino ao motorneiro.

— Camarada, me deixa na Rua Ceará.

Os pneus cortavam os bolsões d’água chiando como lobos no cio, enfrentaram os obstáculos aquáticos da Praça da Bandeira como bravos bandeirantes desbravando um território hostil. Quando alcançamos a esquina da rua Hilário Ribeiro com a Ceará, desembarquei. As nuvens voltaram a chorar com o volume de um temporal. Abri o guarda-chuva e fui atravessando os fluxos de correnteza que se formavam em direção à entrada da Vila Mimosa. Minhas botas encharcaram, as meias cuspiam a água de procedência suspeita, mas segui impávido, marchando firme sob os paralelepípedos do colosso da vida mundana.

Dezenas de copos de plástico boiavam sobre as sarjetas, camisinhas flutuantes giravam no desesperado balé das vidas sem sentido, rios artificiais se formavam com força do dilúvio, homens e mulheres de corpo ensopado passavam por mim procurando abrigo. Eu seguia indiferente, não buscava o sexo, mas caçava a exaustão que me trouxesse os sonhos do adormecer. O guarda-chuva não me protegia muito dos pingos graúdos que o vento lançava contra o meu rosto.

— Caralho. O que estou fazendo aqui? — um lampejo de juízo esbofeteou meu cérebro.

Penetrei no primeiro corredor da Zona, o chão alagado, um cheiro de fossa transpirava do piso, mulheres se amontoavam como se evitassem o contato com o ambiente insalubre. As adversidades enfrentadas até aquele momento não prometiam um desfecho promissor. Digo com sinceridade, afeiçoado leitor que me acompanha neste passeio, eu não fui ali para gozar, estava em fuga, talvez de mim mesmo. Rodei pelos dois corredores principais umas cinco vezes, não via nada que me interessasse. Minha libido estava pálida, apática. Se avaliarmos com honestidade, todos os relatos de fóruns são iguais, uma profusão de tédios que terminam no gozo ou na ausência dele. Somos máquinas narrando a produção industrial de espermas inúteis.

Uma voz de mulher me puxa do meu redemoinho mental.

— Vamos brincar hoje, tesão?

O convite saltava da boca carregada de batom de uma coroa loira que me soou familiar de outras eras da Vila. Os seios espremidos pela compressão de um decote precário alertavam que poderiam explodir a qualquer momento; com um brilho diabólico de quem conhecia a alma de todos os homens, os olhos verdes me encaravam aguardando resposta; os cabelos ruços da marafona estavam arrepiados como que desfeitos por uma ventania.

— Hoje não estou disposto para brincar, estou mais para um bater papo. Qual seu nome?

— Tá no lugar errado, né, tesão? Procura um padre — terminou o deboche com uma dessas gargalhadas de puta velha que devem ter ouvido na Central do Brasil — meu nome é Ariel.

A aparência carcomida pelo tempo não me despertava atração pela mulher, mas aceitei subir a uma alcova para receber o matador boquete sem camisinha que me prometeu. Ela pediu setenta reais, ofereci cem mangos para conversarmos um pouco e quebrar o gelo antes do ato. Aceitou e subimos a estreita escada em caracol da casa 21. A coroa me contou que mora em Santa Cruz, tem três filhos e um está preso em Bangu por roubo, que começou na vida com dezoito anos (tem 55) e ficará até quando der, que ainda faz um bom dinheiro. Parou de falar de repente, me olhou fixo e disse que eu tenho os olhos tristes. Desamarrou meu cinto, arriou a minha calça, sentou-me sobre o lençol puído da cama e abocanhou meu pau como se quisesse arrancá-lo pela raiz. Com movimentos de quem conhece a arte dos orgasmos, me fez gozar em dois minutos. Gozei forte, de olhos fechados, minha respiração transmitia o tufão pulmonar que me assolou. Quando abri os olhos, não havia mais ninguém na cabine, a coroa saiu em silêncio e me deixou só. Vesti a roupa, desci a escada tortuosa e ganhei a rua. Continuava a chover, não abri o guarda-chuva dessa vez, a água corria pelo meu rosto, invadia meu corpo, gelada, fria como a coroa que me chupou. Caminhei com as roupas alagadas até um ponto de táxi próximo à Mosaico.

— Me deixa na Praça Xavier de Brito, motorista.

Encostei a cabeça no vidro da janela e, por um instante, adormeci.

Anhinhanha

ANHINHANHA

Disse-me um amigo, após saber deste relato, que eu deveria procurar uma benzedeira. Talvez, seja um bom conselho.

Tarde quente, o suor inevitável molhava meu rosto, estaciono o Sucatão e decido conhecer o tal Paraíso das Panteras, conforme denominava o painel exposto acima de uma casa. Para amenizar a sensação térmica, decidi tomar três doses cerveja antes de entrar, quis buscar inspiração. Meus poros ficaram sobrecarregados diante da quantidade de água que eu expelia pelo corpo. Mais um pouco e eu me tornaria a nascente de algum rio caudaloso.

Entrei na Termas. Ao passar pela recepção, disseram que eu não precisaria pagar entrada. Penetrei no salão penumbroso, era fim de tarde, não havia muitas meninas. Pelo que me informaram, o movimento forte começaria a partir das 19h30. Sentei-me, pedi um Red Bull para debelar a sede e uns petiscos para alimentar a fome. Fiquei observando o salão quase vazio e avistei uma loira ajeitada que me chamou a atenção. Consegui contato visual, mantive o flerte por uns cinco minutos e então ela se aproximou…

Cerca de 1,60m; falsa magra; pernas grossas; bundinha arrebitada; lábios carnudos; cabelos abaixo dos ombros; rostinho de anjo. Graciosa!

Oim – Ela me cumprimenta.

Sim, leitor sem fé! Como você, eu também senti uma leve entonação do M no final do OI, mas não dei importância. Afinal, o que é um minúsculo M diante de um tamanho Tesão?

– Tudo bem? – Respondo.

– Tundo! – Agora, foi um N que surgiu, talvez seguindo a regra do “antes de P e B.”

– Qual seu nome? – Emendo com outra pergunta.

– Anhinhanha – Foi isso que ela pronunciou.

– Qual?! – Peço um replay para tentar entender.

– ANHINHANHA! – Ela eleva o tom de voz.

O que fazer num momento desses? Qual manual ensina a nos livramos desse tipo de embaraço? Eu ainda não havia compreendido o nome da menina, no entanto, não tinha coragem de perguntar novamente.

– Diferente seu nome! Bonito! É de origem indígena? – Ah, hipocrisia! Doce hipocrisia, como a vida seria mais amarga sem as suas sábias intervenções.

– Oncên anchã? Que nhada! Tão comum nheu nhome!

Era o início do meu pânico, eu não conseguia compreender o estranho dialeto nasalado que brotava daqueles lábios tão delicados. Porém, meu cavalheirismo e minha esmerada educação me obrigavam a agir como se tudo aquilo fosse a manifestação mais límpida da língua portuguesa.

– In o seun? – Ela desejava saber meu nome.

– Dante. Prazer!

– Jã conhenhia a cãsan?

– Como? – Tive que perguntar de novo.

– Jã conhenhia a cãsan?

Refleti por uns segundos para decodificar…. Ela me perguntava se eu já conhecia a casa! Era quase uma emoção traduzi-la.

-Não. Primeira vez!

-Tã gostanho?

O que seria gostanho? Gostando! É isso!

– É legal! Gostei! – Respondo para agradar.

Não precisei de muito mais para saber que a loira, além de gostosa, era fanha. Sim, incrédulo leitor, a loira era fanha! Nem no paraíso encontramos a perfeição, esbarrei com uma pantera fanha dentro do Paraíso das Panteras.

Prosseguir naquele diálogo estava me causando náuseas, era como manter o cérebro ligado a um tradutor simultâneo. Preferi encurtar o caminho e avisei que gostaria de ficar com ela. A menina abriu um sorriso que me fez perdoar todos os tiles (~), emes e enes que recheavam sua linguagem quase incompreensível. Fomos para o quarto. As dimensões eram pequenas, mas havia o conforto básico. Minha cabeça girava pelo efeito da bebida. Sem a roupa, o corpo da garota me impressionou ainda mais. Seios firmes, chana completamente depilada, bumbum emoldurado numa marquinha de biquíni minúscula. Beijos, boquete, bolinação. A menina era quente! Fica de quatro e tenta me provocar.

-Menhe na sua canchõrra! – Tradução: Mete na sua cachorra.

Aquele idioleto nasal estava me enlouquecendo, decidi precipitar o fim do encontro: meti!

– Aim, aim! Isso, come nhua canchõrra! Aim! Aim!

Sim, colega leitor! Eu concordo! Isto é incrível! A puta era fanha até para gemer! O gemido da mulher parecia grito de cachorro espancado, aquelas onomatopeias que vemos nas revistas de quadrinhos: caim, caim…. Eu me senti sodomizando o Bidu, o personagem canino da Turma da Mônica.

A tragédia se fez, não consegui gozar! A cada “aim” que a moça proferia, emergia a imagem do Bidu em minha lembrança. Joguei a toalha!

– Não vaim gonza? Gonzaaaan, gostonso! – Insistiu a fanha.

– Não estou bem…. Bebi muito! Estou cansado. – As velhas desculpas de quem só ansiava por fugir.
Paguei a conta, mas continuava intrigado. Não conseguia traduzir o nome da menina. Arrisquei perguntar mais uma vez.

– Desculpa, me repete seu nome? Esqueci…

– Ponxã! Jã esqueceum! É Anhinhanha!

– Ah! Ta! Não esqueço mais! – Eu não poderia esquecer o que continuava sem entender.

Mas de que vale um nome? Resgatei o Sucatão e voltamos a sobrevoar o negrume do asfalto da Av. Suburbana.

Amor de Pinóquio

AMOR DE PINÓQUIO

Para mim, a experiência do amor romântico sempre foi uma porta para a humilhação. Talvez, por ter demorado a intuir que o impulso da paixão é uma espécie de loucura momentânea, eu enfrentava problemas para controlá-lo e, principalmente, para lidar com episódios de rejeição sentimental. Tonar-se libertino, como eu gosto de definir, é uma metamorfose que nasce do simulado sofrimento das relações românticas. Não existe amor romântico, existe a química que dá ao desejo sexual uma aura de fascinação que não existe de fato. É uma armadilha, afirmava Schopenhauer.

Se atravessei muitos desses amores românticos? Sim, atravessei e atravessei mal. Viver a ilusão do romance com a convicção de manter o celibato e a regra de não procriação é um conflito interno sangrento. Devido a isso, provavelmente, o que encontrei nessas relações sentimentais não foi o lado onírico, mas a realidade concreta da traição, da deslealdade e, não poucas vezes, da rejeição e do aviltamento voluntário. A dor emocional mata ou liberta, no meu caso encontrei a libertação. 

Não posso contestar indivíduos que acreditam no casamento, mesmo quando eles atuam para demonstrar que o casamento é uma farsa burocrática. O indivíduo quer acreditar no matrimônio, quer crer que a procriação e a ideia de família completam a existência, mas ele busca prostitutas e desvia o dinheiro que deveria servir para consolidar sua fé em todas essas crenças.

Os cônjuges são criaturas que se agarram na mentira e fazem de si mesmos personagens hipócritas dissimulando a idiotice. Tudo isso resume uma doença psicológica derivada da insistente fé no amor romântico. O amor é uma mentira que a mente impõe para atingir objetivos vulgares, o homem vulgar a adota como valor absoluto, ignora a confirmação da mentira que ele demonstra em todos as ocasiões em que se desvia dos princípios que poderiam justificar seus fundamentos.

Atingindo a meia-idade, afirmo que nunca casei e não tenho filhos, essa sentença faz de mim um homem livre, não um homem triste; essa sentença comprova que escapei do destino ordinário de grande parte da humanidade, revela um sucesso, não um fracasso. O fracasso estaria na cena patética que revelasse um personagem se esgueirando por bordéis e salas penumbrosas do meretrício, consultando o relógio, desligando o celular, buscando prostitutas e enganando uma companheira que também se enganou ao acreditar na veracidade da união romântica. Repito, não existe amor. A parte mais divertida da ideia do romance é premeditar a traição. O amor só é capaz de conceber bebês e grandes canalhas.

Alegria do Catete

ALEGRIA DO CATETE

Existem noites que são perpétuas, um libertino é forjado nessas noites intermináveis, atravessando a cidade, farejando feromônios, desejando o roçar de peles. Há uma fase da vida em que o Sol é um incômodo frio e a Lua uma carícia que arde. Foi uma dessas noites dos meados da década de 80 que descobri um lugar que me proporcionaria incontáveis encontros sexuais, descobri por ouvir falar, peguei o metrô, desembarquei no Largo do Machado, fui caminhando incerto pela Rua do Catete, perguntei num boteco se conheciam um forró naquelas redondezas, engoli um fogo paulista e encontrei o templo onde uma parte das minhas melhores noites se perpetuariam na memória.

Alegria do Catete, que nome poderia ser melhor para um forró, para um bate coxa, como chamavam na época. Instalado em um prédio baixo, onde até pouco tempo funcionava uma loja do Ponto Frio, na esquina da Rua do Catete com Buarque de Macedo. Quando entrei pela primeira vez, me deparei com uma multidão dançando ao som do triângulo e da sanfona, um mar de mulheres predominantemente nordestinas, homens que não negavam a origem simples. Atravessei o salão vestido de príncipe, denunciando para os olhos desconfiavam que me seguiam que aquele não era o meu habitat natural. No início senti algum desconforto, depois não mais me importei, percebi que a minha pompa no vestir e na postura é que me abriria um o harém onde eu me tornaria sultão por um bom período.

Eu não tinha carro, minha grana podia ser contada em poucas notas heroicas na carteira surrada, mas eu sabia me vestir, estava no auge da energia de um universitário bem nutrido, sabia me expressar com classe, começava a aprender a arte de seduzir e aquele forró seria a minha primeira grande escola, de sexo e de vida. Saía de casa, pegava o metrô empolgado, a testosterona explodia pelo meu corpo e eu não abandonava a arena sem antes conquistar uma fêmea qualquer do lugar. A volta se mostrava mais complicada, saía do forró com o céu refletindo os primeiros raios de luz, andava até a Praia do Flamengo e esperava algum ônibus que me levasse de volta à bucólica Tijuca. Muitas vezes enfrentei a solidão da madrugada esperando a condução, os perigos da cidade eram menores, mas a melancolia da dureza que me impedia de pegar um táxi sempre foi igual.

Sim, eu fui um tímido e os forrós me ajudaram a superar um pouco a trava do acanhamento. Às vezes eu intercalava a frequência nos forrós com idas a boate Circus no Leblon, dois mundos paralelos e heterogêneos. Na Circus, eu não pegava ninguém; no forró, me tornei rei. Havia ocasiões em que eu entrava no Alegria do Catete e mulheres colocavam bilhetinhos no meu bolso, me encaravam despudoradamente, ofereciam-se exibindo a libido devassa. Precisei eleger motéis próximos que coubessem no meu orçamento, encontrei o Alameda (na rua Cândido Mendes) e outro muito precário que havia na rua Bento Lisboa. Quando a minha carteira estava mais recheada, eu lambia os beiços no Hotel Único que ficava praticamente ao lado do forró.

No princípio, eu contava o número de mulheres que comia, foi quando iniciei minha coleção de coitos até perder a conta. Não demorei para conhecer mais dois forrós que fariam das minhas noites de fim de semana um campo de caça farto de lebres. Os forrós me fizeram homem, já que eu não recebia grandes patrocínios da família, sempre precisei apelar para a minha criatividade, meu espírito de aventura e minha ausência de preconceitos. Jovem, eu possuía uma disposição inabalável, varava madrugadas seguidas, chegava em casa com o sol no rosto, me viciei na arte de amar.

Outros tempos… Fui uma espécie de Indiana Jones libertino, durante o dia eu explorava sebos atrás de toda espécie de livros; à noite, rompia becos e penumbras atrás de qualquer tipo de mulher que eu pudesse tentar conquistar e levar para a cama. Na década de 90 surgiu o forró do Asa Branca, na Lapa, minha existência ainda se equilibrava com pouco dinheiro, não era incomum me postar na porta do local para pegar um dos ingressos gratuitos que eles distribuíram, eu precisava economizar de todas as maneiras para conseguir consumar o sexo com alguma mulher que eu conhecesse. 

Que infinidade de mulheres eu provei numa época em que as putas não me eram acessíveis. A dureza me fez desenvolver a criatividade que me permitiu curtir a vida mesmo diante das limitações de grana. Aprendi a ser simples sentindo minhas pernas cansarem no meio-fio enquanto aguardava a esperança de uma condução, sacudindo em ônibus pelas madrugadas, comendo empregadas domésticas e me apaixonando por elas, percebendo que ter dinheiro é bom, mas não ter estimula o cérebro. De lá para cá, envelheci, mas não é tão ruim envelhecer, o ruim é testemunhar um mundo que envelhece mal, mas ao mesmo tempo constatar que os fóruns permanecem com a mesma infantilidade desde os primórdios em que escrevi a primeira frase no primeiro

A Praça Mauá e a gentrificação do meretrício

A PRAÇA MAUÁ E A GENTRIFICAÇÃO DO MERETRÍCIO

Final dos anos 80 e início da década de 90, fui trabalhar na Praça Mauá, primeiro como funcionário de uma grande empresa privada e depois como concursado em uma estatal. Um tempo em que a região borbulhava de gente, de botecos e boates dedicadas à prostituição. Escandinávia, Flórida, Cabaré Kalesa, MV 30, as noites de amor no Hotel São Bento, no Villa Régia, tudo aos pés do Mosteiro de São Bento. 

A Pedra do Sal era apenas a Pedra do Sal, onde eu pedia um pingado com pão na chapa, nada tinha a ver com o feudo que se tornou, mas é o feudo que ainda mantém algum vestígio de vida naquela área. Vendo a Praça Mauá dos dias atuais, que decaiu muito mais rápido do que o resto do Centro, sou tomado por uma tristeza nostálgica e por uma conclusão irrefutável, o que sustentou a vida na Praça Mauá foi a prostituição.

Durante o dia e à noite, tudo fervilhava no porto. Lembro-me de um boteco horroroso que exibia o nome de “Tubarão 2” e eu ficava imaginando onde seria o “Tubarão 1”. Muitas vezes, dirigi o carro, na madrugada, estacionava no entorno da praça e entrava na Flórida repleta de marujos e gringos aportados.

A Flórida tinha a pista de dança envidraçada, o que lançava os nossos olhos sobre a paisagem magnética da Baía de Guanabara. Os cafetas estendiam bandeiras na porta dos bordéis fazendo referência ao país de cada navio que chegava. Fico imaginando o que deve ser a Praça Mauá durante as atuais madrugadas. Tudo passa, tudo acaba, mas o que observo é que as áreas de prostituição são exterminadas pela gentrificação que se utiliza de supostos motivos nobres.

A Praça Mauá sepultou as prostitutas sob o Museu do Amanhã, do MAR e do VLT; a Help, na avenida Atlântica, se tornou o jazigo dos libertinos, enterrados debaixo de um Museu da Imagem e do Som que nunca foi concluído; a Vila Mimosa foi expulsa do seu berço para dar lugar ao Teleporto, às estações do Metrô; hoje, após a abertura da rua Ceará, a Vila Mimosa definha e volta a correr risco de ser empurrada para outro ponto do Rio, vítima da especulação imobiliária ou dos interesses políticos; a Lapa, que foi um dos nascedouros da prostituição carioca, antes reprimida pelo Estado Novo, agora foi transformada em polo de bares da juventude de classe média, espremendo garotas e travestis que tinham ali um local de trabalho. A verdade é que sempre, de uma forma ou de outra, arrumam um jeito para jogarem as prostitutas para debaixo do tapete da hipocrisia.

Temos hoje um prostíbulo vertical, que é o conhecido prédio da Álvaro Alvim, ao lado da Câmara dos Vereadores. Até quando irão permitir? Há muitos anos, havia um prédio semelhante na Senador Dantas, acabaram com a farra ali. O preconceito que expulsa a prostituição de tantos locais da cidade vem acompanhado de motivos que parecem justificarem-se, mas que não passam de ferramentas para impedir o trabalho das mulheres, fazendo com que elas retornem ao domínio dos cafetões ou resvalem para opções que oferecem pouca segurança.

A Help, que além de ser uma boate onde homens buscavam o sexo pago, também alcançou o perfil de ponto turístico da cidade, mas então criam o termo “turismo sexual” e imaginam que restringindo lugares desse tipo estão “limpando” a cidade. Garotas de programa exercem uma função social, se avaliarmos com profundidade.

Copacabana, a antiga cidadela do pecado, perdeu grande parte de suas boates. Inventaram um programa de “higienização social” chamado “Copacabana Legal” e hoje o bairro está pior do que nunca no aspecto social. A prostituição não faz mal a nenhuma cidade, o que faz mal a qualquer cidade é esconder a sensualidade, os pontos de prazer, as fugas do estresse urbano. Com o Brasil se tornando, cada vez mais rápido, um talibã tropical, a diversão de homens e mulheres estão ameaçadas por uma possível repressão crescente e puritana.   

A mulher do Diabo

A MULHER DO DIABO

Noite chuvosa de terça-feira, o relógio estava prestes a anunciar chegada da meia noite, não havia sono, foi quando convoquei o Sucatão e varamos a garagem para romper o asfalto molhado e nebuloso da Tijuca. Ruas vazias, uma garoa fina que insistia em ofuscar o para-brisa, nada indicava ser uma boa oportunidade para se buscar um momento de luxúria.

O horário avançado inviabilizava o sexo de cativeiro nas nossas conhecidas jaulinhas que chamamos de Termas, elas já estariam trancadas ou fechando naquela altura. Também não seria conveniente ligar para alguma das Mulheres-Pizza ou trepada delivery: as Frees, como nós conhecemos.

Para buscar o gozo quente naquela madrugada fria seria preciso me aventurar. Pense, leitor sem fé: o que é o sexo sem o tempero da aventura? O prazer repetitivo e sem emoção é quase como levarmos o pau para autenticar num Cartório.

Sim. Era melhor que aquela noite estivesse oculta sob a seda do imprevisível. Um Libertino escolhe ser libertino justamente por nutrir aversão ao tédio obeso e bolorento daquilo que já se conhece. Mas atente, meu devasso amigo, nem todo imprevisto significa ventura e nem toda empreitada nos rende um troféu.

Atravessamos a Presidente Vargas como num rali pelo deserto; ganhamos a Rio Branco, uma cidade fantasma; finalmente alcançamos a Ilha de Neon, penetramos na Lapa. Vila Mimosa, Lapa e Copacabana, os três únicos Reinos onde um Libertino pode encontrar páginas em branco para escrever suas letras épicas na alta madrugada.

Os faróis do Sucatão iam rasgando o negrume do piche correndo sob os pneus, meus olhos giravam em busca de alguma presa desgarrada pelas sarjetas. Cruzamos a Mem de Sá até a Rua do Senado, foi quando avistei a dupla: uma loira e uma mulata esboçando poses de me leva. Desacelerei o motor do meu combalido carro e aportei próximo à calçada, onde as duas vampes estavam estacionadas.

A mulata era fabulosa! Encaixada num vestido tubinho branco, bem justo; pernas grossas; cabelos alisados que despencavam pelas costas; a bunda em forma de colina; seios pequenos; barriguinha zero; lábios carnudos. A mulher pingava sexo quando andava.

A loira era apagada, sem que eu tenha necessidade de me estender mais na descrição.

— Gostei de você! Qual o seu nome? – Perguntei à mulata.

— Você vai foder com o nome, Gostoso? – Resposta à queima-roupa.

— É verdade, o nome não faz diferença. Mas você manda bem na cama?

— Você não perguntou meu nome? Sabe como me chamam? A Mulher do Diabo. Pergunta para ela? – Afirma ao mesmo tempo em que aponta para a amiga.

Responda-me, velho companheiro de tantas jornadas incrédulas, meu amigo leitor sem fé, do que mais eu precisaria para convidá-la a entrar no automóvel?

Partimos para a Glória, me decidi por um Motel na Rua Cândido Mendes, um antigo refúgio nas minhas fugas noturnas. Durante o percurso, a Mulher do Diabo ia apertando meu membro como se quisesse espremer um suco, não vou dizer que estava confortável, meu saco começava a ficar dolorido, mas aquele ímpeto de esmagar minhas bolas pelo menos revelava a empolgação da menina. Se os meus genitais sobrevivessem, o encontro prometia ser quente.

Segui suas instruções sobre o valor da doação que eu deveria oferecer, ficaríamos uma hora juntos, aceitei. Pedi um dos cubículos baratos do matadouro. Ao entrarmos no quarto somos recepcionados pelo cheiro festivo do mofo, algo comum nas alcovas do estabelecimento que escolhi.

A mulata não perde tempo, me imprensa no espelho da parede, me dá um nó de coxas e intimida:

— Gostoso, o pagamento é adiantado.

Concordo com a dedução do colega que me lê. Enviar mensagem de cobrança quando a febre começa a nos fazer superar a gravidade é algo brochante, mas era um direito dela. Não reclamei, paguei.

A menina ligou a TV, que deixou muda, depois ligou o rádio, colocando o volume nas alturas. Perguntei novamente pelo seu nome e ela respondeu que mesmo se dissesse um, seria falso. Portanto, não faria diferença dizer ou não dizer. Desisti. Fui para o banheiro, tranquei a porta, tirei a roupa e entrei no banho. Do lado de fora, o flashback de motel rolava solto e eu escutava uma voz esganiçada tentando acompanhar as músicas estrangeiras num idioleto desconhecido.

Terminei a ducha. Eu estava excitado com a ideia de abater aquela negra colossal. Enxugada rápida, enrolei a toalha no corpo e me precipitei para abrir a porta do banheiro. Não abriu. Rodei a chave outra vez. Nada. Forcei a maçaneta. Não abria. A ansiedade foi tomando conta. Sacudi novamente a maçaneta e dei umas pancadas na chave. Trancado por dentro! A claustrofobia começava a me fazer transpirar. Chamei a Mulher do Diabo e ela tentou me libertar por fora. A porta não se movia, era um tronco de madeira enraizado e fortificado entre mim e o orgasmo desejado.

Diante da frustração, sugeri que ela fosse pedir ajuda na recepção. Eu mal a escutei se vestindo, o som do rádio estava programado para aniquilar tímpanos. Só consegui ouvir a porta do quarto se fechando quando ela saiu para buscar auxílio. Fiquei de pé, escorado à porta, aguardando… Depois de vinte minutos de espera, desconfiei. Quarenta minutos se passaram e perdi a esperança. Soquei a porta. Gritei pelo basculante que eu estava preso no banheiro. Absolutamente nada! O quarto parecia envolvido num isolante acústico, a única coisa que se ouvia era o rádio estourando as paradas de sucesso do tempo do onça.

Sentei na privada e fiz um exercício de respiração para evitar o pânico. Minha certeza era imaginar que a piranha da Mulher do Diabo aproveitou-se da minha prisão involuntária para fugir com o cachê.

Talvez, por um nervosismo causado pela insólita situação, talvez pela falta do que fazer, eu senti vontade de defecar. Abri a tampa da latrina e caguei pensando nas pessoas das quais eu não gostava. Que passatempo maravilhoso! Limpei o intestino e a alma. Isso me ajudou a ficar mais calmo.

Um dos momentos mais comoventes da noite foi quando começou a tocar Sol de Primavera, do Beto Guedes. Lembrei das minhas paixões de outrora, da minha infância e até de alguns campeonatos de bolinha de gude que participei quando criança. O banheiro é realmente um lugar propício à meditação.

Mais de três horas se passaram…. Eu quase adormecia sentado no vaso sanitário, foi quando escutei alguém entrando no aposento. Corri para bater na porta, usei minhas últimas energias para pedir socorro. Uma voz idosa identificou-se como arrumadeira e foi chamar o gerente.

Logo escutei a voz de dois homens que me pediram paciência, iriam dar um jeito.

Aproveitei para vestir a roupa. Meia hora depois a porta se abria. Abracei, emocionado, os meus salvadores. O gerente me disse para ficar à vontade, me cobraria apenas o período, se desculpou pelo ocorrido. Revelou que estranhou quando viu a Mulher do Diabo saiu sozinha do motel, mas não quis incomodar.

Antes de me despedir, ajeitei meus cabelos, conferi meus pertences e ainda pude ouvir vazar pelos alto-falantes da alcova um som do passado, que brotava junto com as primeiras luzes do dia. Era o Eduardo Dusek cantando Nostradamus.

A loira do Tinder

A LOIRA DO TINDER

Meu lábio superior começou a tremer involuntariamente, eu não conseguia controlá-lo enquanto via o vulto se aproximar de mim em passos lentos e firmes. Farei aqui uma pausa para contar a história desde o início.

Fevereiro foi um mês de decepções pessoais imensas para mim, nessas ocasiões sempre me sinto empurrado para o doce abismo da caça sexual. Como já contei, não gosto muito do sexo no esquema delivery, esta coisa de chamar pelo zap para agendar o sexo pago. Sempre necessitei do tempero da adrenalina, do mistério que envolve um encontro.

Tudo aconteceu a partir de um match no Tinder, ela me passou o whatsapp, eu chamei e começamos a nos falar. Laura é o seu nome, suas fotos não eram nítidas, mesmo aquelas que me enviou, não conseguia ver o rosto, mas o corpo me pareceu interessante. Conversamos durante uma semana inteira antes de finalmente marcarmos o encontro, senti a menina muito curiosa por me conhecer, repetia que apreciava homens inteligentes, tento não me envaidecer. Saímos das limitações do zap e nos falamos diretamente ao telefone, ela tinha uma voz envolvente, sexy. Toda essa situação nos excitava.

Como ela não revelou o rosto, a minha insegurança sobre a aparência de Laura se mantinha. Disse morar no Meier, na rua Dias da Cruz, mencionou trabalhar como modelo fotográfico (detalhe que atiçou ainda mais a minha curiosidade) e que não exibia o rosto para evitar exposição desnecessária, garantiu ser bonita. Acertamos nos encontrar à noite, num dia útil da semana. O local seria o próprio Meier, ficava melhor para ela, na esquina da Travessa Miracema.

Na década de 90, funcionava um bordel de luxo na tal Travessa, chamava-se Termas 2001, uma espécie de Centaurus da Zona Norte. A lembrança desse fato não me pareceu um bom sinal, mas eu estava motivado, a garota realmente me despertou o interesse. Apesar de estar evitando dirigir, minha visão à noite não é mais a mesma, sacudi o Sucatão da garagem, acionei o motor adormecido e mergulhei no negrume do asfalto.

Quando embico na 24 de maio, saindo da rua Barão do Bom Retiro, encaixo um CD no aparelho e o som de Radiohead toma a cabine do carro de assalto…

Aquela melodia teve o efeito de uma porrada no meu peito, lançou-me para trás no tempo de uma forma tão brusca que quase perdi o foco na direção do automóvel. Era perto das oito da noite, mas a pista fluía no ritmo suave de um rio descompromissado com o destino.

Sucatão seguia em velocidade de cruzeiro, ladeando as margens castigadas da linha do trem, até dobrarmos à esquerda na rua Dias da Cruz, a Travessa Miracema fica logo no começo, dobrei a direita e estacionei. Pisei com minhas botas naquele território que há tento tempo parei de frequentar, olhei para a direção onde ficava o antigo bordel e nada mais existe ali, fora as lembranças remotas e os fantasmas que emergem das boas memórias.

Posicionei-me na esquina combinada, enviei mensagem avisando sobre a minha chegada. Não demorou, logo avistei uma loira alta, vestida em um macacão branco, cabelos compridos, escorridos e soltos, uma mulher absurda de linda. É verdade, ela só podia ser modelo fotográfica, sua imagem tinha a força de uma explosão nuclear, de um abalo sísmico. Meu aparelho auditivo sincronizou com o meu celular e obrigou os meus ouvidos a vibrarem com uma das minhas músicas pré-programadas.

A música, aquele vulto de um dourado reluzente se aproximando, meu lábio superior começou a tremer involuntariamente, eu não conseguia controlar. Minhas pernas bambearam, não esperavam esbarrar com aquela fêmea descomunal, um match do Tinder… Fiquei ali, esperando que ela chegasse diante de mim, com a sensação de quem estava com a cabeça aguardando a queda da guilhotina. Velho, barrigudinho, imaginei que ela passaria direto, me ignorando. Sinceramente, eu teria ficado aliviado caso ela escolhesse essa opção.

— Você é o Dante? — ela questionou assim que quase colou o corpo no meu.

— Sou, sou, sou eu. Sou o Dante — por pouco, não gaguejei.

— Mesmo com a sua foto, eu te imaginava diferente.

— Eu também — retruquei.

— Melhor ou pior?

— Laura, você é um assombro de linda.

Sugeri que fôssemos dar uma volta de carro, perguntei se ela topava beber um chope na Urca. Aceitou. Entramos no Sucatão, virei a chave e os pneus deslizaram pelo asfalto morno do subúrbio. No meu som, INXS nos brindou com os acordes de Disappear.

Subitamente, quando engato a quarta marcha, Laura põe uma das mãos na minha perna direita. Acredite, forista sem fé, quase tive uma ejaculação precoce. Ela foi puxando assunto, perguntou sobre como tinha sido o meu dia, o meu trabalho, eu me sentia tão intimidado pela sua escandalosa beleza que respondia em monossílabos. Falou sobre o trabalho de modelo, das fotos que faz para anúncios e lojas, da faculdade de Biomedicina que está concluindo.

— Qual sua idade? — perguntei.

— Vinte e cinco e você?

— Sou velho. Não digo a minha idade, pois irei me sentir ainda mais velho se disser.

Laura riu, um riso contido. A mulher, além de linda, possuía um charme espontâneo. Na Urca, sugeri que parássemos em frente a Praia Vermelha, ela gostou da ideia. Estaciono o Sucatão, giro o pescoço para admirá-la e nos beijamos. Foi um beijo faminto, enlevado por uma libido selvagem, nossos lábios disputavam para ver quem engolia quem.

Enquanto nossas línguas se enroscavam, ousei, passei mão sobre um dos seus seios, Laura emitiu um gemido baixinho, jogou a mão sobre o meu combalido pênis. Ousei mais, enfiei a mão sob o macacão e senti a textura da pele dos seus peitos duros, bicudinhos. Ela não fez menção de censurar. O carro queimava, nossos corpos quase em chamas, mas nos agarrávamos mais, nos sarrávamos mais. Eu estava próximo de outra ameaça de ejaculação precoce, lancei meus pensamentos para temas aleatórios, pensei no zoológico, na Quinta da Boa Vista, no incêndio do Museu Nacional. Resisti, mas resistir é inútil, já nos ensinavam os Borgs de Star Trek.

Minha playlist nos envolveu com One, do U2.

— Adoro U2 — ela interrompe o amasso para me confessar sua preferência.

Laura começou a tentar soltar meu cinto, forçar minha calça, ela queria me abocanhar. Transtornado e estabanado, quase tirei a calça pela cabeça. Libertei Pikachu e a garota o abocanhou como se fosse o último pênis do planeta Terra (que tragédia se fosse).

O escritor mais talentoso em qualquer língua não conseguira descrever o boquete de Laura. Ela passava a língua desde a raiz do saco até a cabeça do pênis. Lambia como se chupasse um sorvete. De repente, engolia o pau inteiro e apertava com delicadeza os meus testículos. Eu pressenti que a qualquer momento ia me autoejetar do carro de tanto tesão. Tentei inutilmente fazê-la interromper o boquete, a garota não chupava para agradar, ela gosta, gosta demais.

Com a boca no meu pênis, ela desbotoou a parte de cima do macacão e permitiu que seus seios escapassem. Duas esferas perfeitas com bicos rosados em que ela esfregou meu pau enquanto o devorava. Eu tentei, tentei, porém, não consegui mais. Gozei as entranhas na garganta da menina, ela engolia a minha seiva como quem executa um ritual diabólico. Os vidros do Sucatão embaçados, o oxigênio se esvaiu da cabine, eu precisava respirar.

Recompostos, fomos andar próximo à areia. Ela de mãos dadas comigo. Inebriado, enlouquecido, não conseguia parar de contemplar aquela beldade. O cheiro do mar, as palmeiras, a visão do oceano. Sim, eu poderia me apaixonar por aquela mulher. Infelizmente, no mundo libertino nada é perfeito e eu sempre costumo crer que o meu celibato não é uma opção, mas uma imposição do destino.

Laura me contou que tem namorado, mas que curte encontros casuais, que o parceiro sabe e que praticam o poliamor, um nome moderno para a poligamia. Gentil, afirmou que gostou de mim, que nos veríamos de novo, mas não acredito que aconteça. Retornamos ao Meier, ela desembarcou no ponto em que a encontrei, nos despedimos com um beijo feroz que arranhou nossas línguas.

Antes de nos despedirmos, perguntou se eu poderia dar um “presentinho”, para dar uma força. Eu hipotecaria o meu chalé na bucólica Tijuca por ela. Dei o que eu tinha na carteira e ela partiu.

Manobro o Sucatão, acelero, ligo o som e a cabine afoga-se na voz de Tina Turner com Golden Eye

Os pneus do Sucatão dançavam rasgando a penumbra das luzes de vapor de mercúrio no retorno à bucólica Tijuca. Meu nome? Dante, me chamo Dante. E a partir de agora, qualquer aventura é possível.

A gênese do libertino

Cada libertino tem o seu ponto de virada, um marco único para cada um, gatilhos distintos que dissolvem o casto e fazem nascer o promíscuo. Fui um adolescente e um jovem adulto extremamente romântico, contaminado pelos nefastos filmes hollywoodianos da Sessão da Tarde. Quando isso se quebrou? Quando a inocência se esfacelou contra a parede da realidade que a vida, em algum ponto, nos impõe? Creio que ocorreu em um processo gradativo, que culminou no rompimento súbito e brutal entre o jovem ingênuo que fui e o homem desconectado dos amores idílicos que me tornei.

As fêmeas costumam acusar os machos de infiéis, posso concordar com isso, mas não é possível aceitar a restrição somente ao gênero masculino. Eu, por exemplo, sempre fui fidelíssimo nas minhas antigas relações românticas, me portei como um homem dedicado e carinhoso, mas atravessei o karma de conhecer uma sequência de mulheres dissimuladas e desleais. Chamam esse fenômeno de “dedo podre”. Meu dedo, de tão podre, gangrenou e já não aponta para mais nada. Se eu fui tão habitualmente enganado, alguém poderia dizer que devo ser um amante fraco, sem gravidade suficiente para manter qualquer mulher em minha órbita. É possível que essa explicação esclareça o desvio, mas não o justifica.

Nas primeiras experiências em que fui traído e depois rejeitado, não reagi de maneira sã, pois eu insistia em retomar os laços, ia às raias da humilhação para tentar me reaproximar da infiel. Carência? Provavelmente. As lembranças que guardo desses meus momentos de rastejo me envergonham, mas todos nós temos uma via crucis a percorrer e percorri a minha, uma estrada que me fez experimentar a indignidade, a tristeza massacrante e o desprezo absoluto. É impossível não sair transformado de travessias assim. Um libertino é uma alma órfã, com cicatrizes abissais.

Não há um padrão para quem assimila a infelicidade. No meu caso, me recolhi em mim mesmo, como lagarta tecendo o casulo, mergulhei nas minhas trevas, na minha solidão, desenvolvi uma nostalgia insalubre por alguns períodos do passado em que me ancorei. Todos os libertinos possuem uma árvore genealógica, têm pai e mãe. Os meus progenitores são o desterro e a melancolia. A figura do libertino, que parece solar e livre, é consequência das feridas emocionais provocadas pelos estilhaços de muita ilusões destroçadas. Renasci da minha própria implosão.

O amor não é um sentimento, nem sequer é uma perturbação. O amor é a cilada dos instintos, um condicionamento psicológico e biológico que nos bombardeia por toda uma existência. Não é fácil arrebentar as correntes, não é simples despertar de Matrix. Quando é inevitável acordar, o que vemos é um mundo árido, habitado por delirantes que reverenciam uma trilha de mitos inexistentes.

— Você é pessimista, Dante — diria o leitor incomodado com o desengano deste texto.

A realidade jamais será otimista, afeiçoado leitor. Há os dias de sol e de frescor primaveril, que nos fazem sentir como sementes que desabrocham eufóricas com o mundo, mas também há os tantos dias que avançam cada vez mais cinzas, em que lutamos contra os cadáveres acumulados que nos assombram. O libertino é aquele que começa a enxergar a fugacidade do existir, os riscos das constantes intempéries, a dissolução do universo que o rodeia, por isso adere ao celibato e não procria. Ciente da finitude de tudo, o libertino aperta os grãos de areia fina nas mãos e explora todo o prazer de senti-los escorrer por entre os dedos.

Ninguém nasce libertino, torna-se. Nenhum libertino brota da felicidade, mas do desencanto. O libertino não é filho das manhãs ensolaradas, ele germina nas noites mais escuras. Podemos dizer que todo libertino é como um anjo decaído; é um Adão trapaceado por Eva e expulso do falso paraíso, paraíso que era, na verdade, uma prisão moralista. O libertino, apesar do desgosto que carrega, compreende a revelação suprema: a alegria do resistir são os picos dos orgasmos aleatórios, o desfalecimento após o coito, o fastio da carne que separa os corpos e o retorno irrevogável à solidão original que nos habita. O libertino veio do pó e termina em pedra.

A garota da Urca

A GAROTA DA URCA

CASUALIDADE

Eu preferia estar escrevendo um relato tradicional, informando o telefone, o site e as fotos da protagonista, mas não será possível porque a garota prefere não se expor em espaços como os fóruns. Por isso, o que teremos aqui será um relato off. Caso se interessem pela personagem, sugiro que soltem os perdigueiros e tentem encontrá-la com as pistas que irei exibir.

BUSCA FRENÉTICA

Há cerca de três semanas, eu navegava no Tinder, onde frequento cada vez mais raramente. Naquele esquema tedioso do cara-crachá, marcava o coraçãozinho nas faces mais expressivas. Alguns matches aconteciam, enviava mensagem, mas sem resposta. Quando já estava para fechar o aplicativo, recebo um retorno.

— Olá — envia-me a mulher.

— Oi. Tudo bem? — Respondo.

— Tudo bem, sim.

— De onde você fala?

— Da Urca e você?

— Estou na Tijuca. Qual seu nome?

— Clara.

A conversa prosseguiu por mais algumas linhas até que sugeri que continuássemos o papo pelo WhatsApp. Clara aceitou.

Não posso dizer que fiquei surpreso quando Clara se revelou uma sugar baby, o eufemismo pós-moderno para garota de programa. Nas fotos do Tinder a moça é tão inacreditavelmente bonita que perguntei se poderia me enviar fotos pelo zap, ela atendeu o meu pedido sem cerimônias ou frescuras hipócritas de quem teme pela identidade. 

Clara é uma loira de olhos verdes, disse ter 1,70m, seios médios em forma de pera e com o biquinho dos mamilos apontados para o espaço sideral, pernas longas e grossas cobertas por uma penugem loira formada por pelos naturais, o rosto possui uma simetria invejável que denuncia ascendência europeia. Lindíssima. Decidi ser mais objetivo diante da revelação fotográfica daquela beldade.

— Quanto é para poder ficar com você? — Pergunto na lata.

— Docinho, não estipulo valor. Você me dá o que achar que mereço.

Estranhíssimo — pensei. Não confio nesses discursos de “você me dá o que mereço”. Fiquei desconfiado e temeroso. Uma loira portentosa, moradora da Urca, fazendo programas e não querendo garantias? Algo de podre no Reino da Dinamarca.

— Não pode nem sequer me dar uma ideia do valor? Fico inseguro desse jeito — joguei aberto.

— Docinho, confio no seu bom senso.

Havia um sotaque na pronúncia de Clara que eu não conseguia identificar.

— Você é do Rio?

— Não. Sou do Espírito Santo. Capixaba. Filha de brasileira com alemão.

Estava explicada a aparência escandalosamente nórdica da moça. É interessante perceber o quanto o sangue nórdico fascina as nossas veias de brasilidade mestiça. Clara possui um sotaque mixado entre mineira e falante do interior de São Paulo. É melódico, gostoso de ouvir, acaba servindo como mais uma ferramenta de sedução da menina, como se já não bastasse a sua beleza estonteante. Continuamos conversando, percebi que estava falando com uma mulher inteligente, foi quando ela me revelou ser formada em Letras pela PUC e lecionar como professora em escolas particulares. Por que fazer programa?

— Porque eu gosto e me gera uma renda a mais para as minhas futilidades.

Eu estava com muitas dúvidas sobre arriscar conhecê-la. Em um momento em que conversávamos sobre livros, ela me revelou possuir mais de um exemplar de um título raro que procurei por metade da minha vida sem encontrar. Perguntei se ela me venderia o livro, ela respondeu que sim. As minhas dúvidas se dissiparam, decidi conhecer Clara.

A BELA DA URCA

Ela me passa o endereço, um prédio na Urca, em uma rua próxima a uma praça no miolo do bairro. Acionei os motores de Herbie, meu fusca, e partimos rumo ao desconhecido. Nunca cultivei o costume de me aventurar em encontros sexuais sob a luz do Sol, mas o advento da pandemia obrigou-me a alterar hábitos seculares em mim. 

Marcamos após o almoço, o dia estava belíssimo, com um céu azul tão impecável que se afigurava opressor. Qualquer beleza excessiva intimida o homem comum. Para uma sexta-feira, o trânsito estava tranquilo e Herbie deslizava sereno sobre o asfalto, ostentando a sabedoria milenar dos fuscas. Atravessamos Botafogo, entramos na avenida da Urca que margeia a Baía de Guanabara e nos abismamos com aquela paisagem eletrizante do melhor Rio de Janeiro. Parei o carro e tirei fotos como um turista inebriado. Não tive dificuldades para estacionar. Envio mensagem pelo celular perguntando o número do apartamento, conforme instruções de Clara, ela informa e prossigo na operação.

Um prédio baixo, discreto, com porteiro eletrônico. Toco no apartamento e a voz feminina com sotaque me recebe.

— Bem-vindo, querido.

A descarga elétrica libera a porta. Sem elevador, subo pelas escadas envoltas em penumbras e alcanço o segundo andar. A porta estava semiaberta, mas toco a campainha. A porta se escancara subitamente e o meu coração quase interrompe o fluxo delicado da vida. Acredite, afeiçoado forista, que mulher absurda. 

Clara é a mulher elevada a raiz quadrada de algum teorema supremo e divino. Atendeu-me à porta com um top e um shortinho que revelavam toda a sua dourada exuberância feminina. Foi como se meus pulmões entrassem em modo de suspensão, creio que parei de respirar por uns vinte segundos. As batidas dos meus bolorentos músculos cardíacos dispararam como se estivessem em uma crise de ansiedade. Clara percebeu meu nervosismo e riu.

— Entra, guri — ordenou-me com um sorriso que escandalizava seus dentes perfeitos, pérolas esculpidas entre seus lábios carnudos.

LAR DOCE LAR

Sei que alguns dos afeiçoados foristas duvidarão desta história. No mínimo, se perguntarão na intimidade dos pensamentos: “será que é verdade?” — Eu sou capaz de compreender o ceticismo desses amigos, é difícil enxergar outras possibilidades quando estamos totalmente acostumados ao sexo delivery. No entanto, creia estimado parceiro de aventuras, é verdade o que narro aqui. Tento preservar todos os detalhes dos quais me recordo para que a história transmita a veracidade do que vivenciei. Não nego, fiquei tenso durante o tempo em que estive com Clara. Passei por uma outra experiência semelhante no Tinder, mas não com a profundidade da que relato agora para vocês.

O interior do apartamento mostrava simplicidade. As paredes em tom bege refletiam a minha palidez diante da Vênus radiante. Uma estante de madeira escura guardava livros e revistas em pilhas aparentemente desordenadas. A luz natural invadia todos os cômodos, tudo muito solar, o que não deixava dúvidas sobre a extrema beleza de Clara. Aqueles pelinhos dourados das pernas brilhando a cada toque da claridade começou a me causar um tesão quase incontrolável. É uma confidência, mas adoro mulheres com pelos loiros nas pernas, considero um elemento excitante. Além disso, a garota ia à minha frente com o short minúsculo deixando escapar a polpa de sua bunda digna de capa de revista.

— Vem conhecer a casa — ela me diz.

Pega a minha mão e me leva a cada canto do apê. A cozinha pequena quase fazia parte da sala; dois quartos também de dimensões modestas, um deles abrigava uma cama de casal e o outro estava repleto de bagulhos e com uma gaiola habitada. A menina criava um furão. Sim, meus amigos, um furão como bicho doméstico. Quando o animal me viu, pulou nervosíssimo, como se fosse arrebentar as grades da gaiola. Ele me encarava e emitia uns grunhidos assustadores. Fiquei com a sensação de que se ele escapasse da cela sobraria pouco de mim. Clara me puxa do quarto selvagem e fecha a porta.

Entra comigo no seu recanto mais íntimo, o quarto em que dorme. Havia duas prateleiras com uma coleção de pênis de borracha, desde o tamanho Terra de Gigantes ao diminuto modelo Tatoo, da Ilha da Fantasia. Na parede atrás da cama, algemas prateadas estavam penduradas como se fossem objetos decorativos. Num mural lateral, vi chicotes expostos. Em frente à cama, um retrato da Sharon Stone segurando o picador de gelo do filme Instinto Selvagem. Parecia o set de filmagem de “Cinquenta Tons de Cinza”. Tudo era estranho.

De volta à sala e Clara me pergunta se aceito um suco de laranja.

— Aceito.

Ela sai e retorna com um copo suando de gelado, bebo quase que em um só gole para irrigar a minha boca seca pela ansiedade. De repente, ela coloca a mão na minha perna e fica friccionando as unhas numa região muito próxima ao Pikachu, que nesta altura já não sabia se queria fugir ou ficar. Calor. Clara sugere que fiquemos no seu quarto, ela ligaria o ar-condicionado e colocaria música. Segui a líder.

Clara é calma, gestos lentos, voz serena. Conversar com ela é quase como se estivéssemos em uma sessão de Tai Chi Chuan. Os olhos emitem um tom verde faiscante, capaz de hipnotizar a serpente bíblica. Conta-me um pouco da sua vida, fez parte da Marinha por um período como enfermeira, mas depois decidiu seguir o magistério. Jovem, morando bem, deve ter se esforçado para compor a trajetória. Perguntei de novo: por que fazer programas?

— Fantasia e vontade de ter mais dinheiro — ela responde.

— Não tem medo de trazer estranhos na sua casa?

— Nem todos vêm aqui, sou muito criteriosa nas escolhas. Sinta-se um privilegiado.

Articuladíssima, a garota sabe seduzir. Talvez, nem precisasse saber, pois com aquela estampa europeia ela seduz até estátua do século 19 cagada por pombos.

Realmente, eu gostaria de poder colocar aqui os dados de contato da loira. Quando perguntei sobre fóruns, ela disse que conhecia; quando a questionei novamente se me permitiria escrever sobre nosso encontro, ela explicou que preferia clientes aleatórios que a encontrassem pelo aplicativo. Não me restam opções além de respeitar a vontade da mulher.

A campainha toca, meu coração quase sai pela boca e Pikachu quase comete um salto suicida pela janela. Quem seria?

— Gato, dá um minutinho que eu vou atender. Você se importa?

Não sei se balancei a cabeça aprovando a intenção de Clara ou se a minha cabeça apenas tremeu histérica motivada por lembranças de cenas de filme de terror. Ela se levantou e foi abrir a porta.

— Gal? Tava por onde, mona?

— Ai Barbie, nem te conto…

Quando dou por mim, irrompe pela sala uma travesti esbaforida, de cabelos compridos com mexas claras de reflexo, usava uma bermuda de causar hemorroidas e falava com uma voz dotada de um inconfundível tom de malemolência da goiabada. Apalpei minha calça e não localizei Pikachu, temi pelo pior. Eu só pensava em correr e entrar no Herbie, numa simulação de fuga espetacular de Alcatraz.

— Dante, essa é a Gal. Gal, esse é o Dante.

— Dante é seu nome?

— É, sim.

— Huhuhuhuhahahaha…

A risada estridente da Gal causou interferência no meu aparelho auditivo. Tarde demais para fugir…

A dança da enguia

A DANÇA DA ENGUIA

Era uma sexta-feira do mês de dezembro, um fim de tarde muito quente no Rio e a sensação de calor convidava para uma noite de novas aventuras. Como de hábito, eu e meu sócio da night, o Teixeirinha, marcamos o nosso tradicional chope de final de ano. Era uma data ímpar: iríamos comemorar 15 anos de uma sólida amizade e, por isso, haveria também uma esticada a um dos nossos points prediletos onde pretendíamos romper a madrugada.

Marcamos de nos encontrar pelas 19h30 próximo ao Mourisco, em Botafogo. Uma das marcantes características do Teixeirinha é a impontualidade, portanto, ele só chegou às 20h, mas eu já estava lá, pacientemente, esperando. Apareceu todo eufórico, segurando uma embalagem numa das mãos. Quando se aproximou, vi que se tratava de um LP. O Teixeirinha tinha dessas coisas, virou colecionador de LPs somente quando pararam de fabricar LPs. Foi logo anunciando com a voz grave de tom meio nasalado:

— Encontrei, cara! Encontrei! O LP do Michael Jackson. Thriller! Mais um pra coleção!

Ele estava bastante empolgado com o novo item para aquela o seu acervo jurássico.

Estávamos os dois sem carro nesse dia e sugeri que pegássemos um táxi para fazermos uma boquinha no Rio Sul, perto dali. O Teixeirinha topou de imediato, mas achou que estava cedo e pediu para irmos caminhando, atravessando a pé o Túnel do Pasmado. Não entendi muito bem o objetivo da caminhada, mas lá fomos nós…

Quando alcançamos, mais ou menos, o meio do túnel, o Teixeirinha pisou em falso numa das lajotas do piso, que quebrou na hora e criou uma fenda onde ele caiu em pé, cravando as duas pernas no buraco. Começou a afundar lentamente, como se estivesse em areia movediça. Quando vi, a cabeça dele já estava na altura do meu joelho.

Imediatamente, tentei segurar o braço do meu amigo para tentar resgatá-lo daquele atoleiro, mas o Teixeirinha é daquele tipo que quando fica nervoso quase beira o histerismo. Quando agarrei seu braço, ele passou a agitar convulsivamente sobre a cabeça o LP que tinha nas mãos e, ao mesmo tempo, gritava:

— Salva o Michael Salva o Michael Primeiro salva o Michael!

Fez-se a ocorrência surrealista, no meio do Pasmado, onde eu decidia se deveria salvar primeiro o Michael Jackson ou o Teixeirinha. No final, consegui resgatar os dois e poupá-los de serem tragados pelo Túnel movediço.

Conseguimos chegar ao Rio Sul, jantamos e partimos para Copacabana, onde tomaríamos nosso chope.

Paramos num pé-sujo ali na Miguel Lemos e começamos nosso ritual de chapar. Lá pelas 23h30 traçamos que iríamos entrar na Help, o local mais próximo de onde estávamos.

Fim de ano, a Help estava abarrotada. Muitas mulheres e uma grande diversidade de gringos. O Teixeirinha, que já estava para lá de Marrakesh, era só felicidade. Ficava o tempo todo falando em inglês, tentando se passar por americano, achando que assim teria mais atenção. Eu, que às sextas-feiras, me fantasiava de executivo, num terno e gravata, porque julgava que me conferia mais moral sair assim, não havia mais poros para suar, o calor me massacrava.

Pelas 2h da madruga, outro acontecimento. Estávamos bebendo numa das extremidades do salão, quando surge do meio da pista de dança uma morena exuberante: cabelos compridos, um vestido preto justo, alta e bem charmosa. Ela mirou direto o Teixeirinha e parecia estar vindo lentamente em sua direção, vinha dançando e não desviava os olhos dele. Quando me virei para o rosto do Teixeirinha, querendo saber se ele tinha percebido, o sujeito estava apoplético e sem reação. De repente, se manifestou com a frase que ficaria registrada para sempre em nossos arquivos:

— Que isso, cara! Olha a mulher que tá vindo aí fazendo a dança da enguia! – Exclamou. 

E era verdade, a menina vinha num tal contorcionismo que faria inveja a muita Odalisca profissional. Como eu já estava explodindo em risos, resolvi me afastar e acompanhar o episódio a uma distância segura. O Teixeirinha começar a dançar, indo ao encontro da garota e imitando a mesma coreografia erótica que havia batizado como dança da enguia.

O meu parceiro se torcia em movimentos sofríveis de um corpo bêbado que já năo respondia pela integridade da sua coordenação motora. Mas o Teixeirinha se esforçava, num heroísmo suicida, tentando impressionar a garota que também continuava a se lançar insinuante.

De repente, perdi o Teixeirinha de vista! Ele desapareceu! Forcei a vista na procura e nada… A garota continuava dançando, mas cadê o Teixeirinha? Comecei a notar que se abria uma clareira na pista de dança e pensei logo: “Deu merda! ”

Corri em à pista e encontrei o Teixeirinha, estatelado no chão, cercado de gringos que tentavam ajudá-lo, ele gemia alto e ainda tentava explicar:

— Porra! É cãibra! Cãibra! Eu não sei falar essa porra em inglês, mas é căaaaibra! – Lastimava-se o meu camarada. 

Tive que chamar um dos seguranças para me ajudar a erguer o Teixeirinha, ele não se levantar de jeito nenhum, alegava que a gravidade era mais forte do que ele.

Terminamos numa mesinha do Bob’s, devorando saborosos sanduíches e sorrindo para o borbulhar das ondas que acariciavam as areias da praia.

Cest La vie!

A pombagira

A POMBAJIRA

A POMBAJIRA

Para ser livre é preciso fracassar! Não me tome como insano, pois se lhe revelo uma das minhas maiores iluminações, o faço por ter sido eu próprio a cobaia de onde brotou essa sentença.

Qualquer êxito, por mínimo que seja, transforma o bem-sucedido em servo de uma prepotente implacável: a vaidade. Conquistar o sucesso é iniciar um ciclo de escravidão.

Aos 48 anos, eu não tinha problemas por ter trabalhado pouco, não me envergonhava por não haver construído nada com o suor do meu rosto; não me incomodava viver confortavelmente, graças a uma gorda parcela da pensão de minha mãe, viúva generosa de um militar falecido; menos ainda me constrangia o fato de me abrigar sob a asa materna, num amplo apartamento em Santa Teresa, próximo ao Largo das Neves. A despreocupação da cigarra é sempre muito mais saborosa do que a rotina gananciosa das formigas.

Em certa altura, para disfarçar minha sina de desocupado, convenci minha genitora a me comprar um táxi. Eu deixava de ser um vagabundo oficial para me tornar um malandro com álibi. A vizinhança ficou satisfeita, minha mãe mostrou-se orgulhosa e eu podia desfilar num carrão amarelo, mais afeito a transportar libertinas à passageiros que me remunerassem.

Com o fluir dos dias e a verdade inevitável que emerge de cada alvorecer, a vizinhança alcoviteira apercebeu-se de que eu não me tornara um regenerado da esbórnia ou um ex-boêmio catequizado. Continuava, mais do que nunca, o mesmo hedonista que afrontava o moralismo dos hábitos pequeno-burgueses. Por se sentirem ludibriados, passaram a maldizer meu táxi divulgando que ele possuía dois bigorrilhos, um que ficava sobre o teto do carro e outro que se postava atrás do volante. Infames! Mas eu desprezava essas pequenas vilezas, o que realmente me importava era abraçar os prazeres que nos proporcionam sorver as delícias do tempo presente.

Fiz-me um notívago. O Sol embalava meu sono e a Lua era a musa da minha adoração. Eu apreciava ver o dia apagar da janela do meu apartamento, o prédio se debruçava sobre um abismo que abria a vista para o Centro e parte da zona norte. As sombras começavam a exibir pequenos diamantes, pontos de luz que se derramavam por vales e montanhas. O anoitecer é uma metamorfose. Eu acendia um cigarro e o consumia em breves tragos enquanto contemplava o desabrochar daquela imensa mariposa: a Noite.

A felicidade não é um momento esparso, tampouco é uma busca interminável que devemos trilhar. A felicidade é apenas uma frequência captada quando nos sintonizamos ao que nos rodeia.

Debaixo de um céu estrelado, entro no carro, ligo o rádio, seleciono uma estação para encontrar a música que me servirá como anfetamina e alimentará o meu entusiasmo. Uma batida sexy invade a cabine do automóvel. Acelero, antes de engatar a marcha, ouço o motor vibrando, recolho a âncora e começo a navegar pelo negrume do asfalto.

Conheci Selene no baixo meretrício, a Vila Mimosa, uma menina de 21 anos, menos da metade da minha idade. Ela guardava uma eletricidade que me fascinava, além de ser uma negra bonita, de porte vistoso. Já no primeiro encontro, tivemos aquela afinidade que é fatal para os instintos, a simpatia da pele.

Eu, que era acostumado ao clima claustrofóbico dos bordéis do Centro da Cidade, fui esbarrar com a Vila Mimosa somente durante o ofício de taxista, ao levar dois nordestinos que me indicaram o caminho da Zona boêmia. Confesso que a primeira impressão que tive, ao atravessar um pequeno arco sob os trilhos da linha de trem que margeia a Praça da Bandeira, foi a de estar penetrando num lugar macabro. 

As ruas são penumbrosas e a paisagem é devastada até alcançarmos o miolo, onde tudo se parece com uma grande festa junina, é a jubilação da luxúria. Constatei que não fui eu quem conduziu os nordestinos, eles é que me arrancaram do tédio arrogante dos que não acreditam haver mais nada para descobrir. Havia a Vila Mimosa e o meu amor por ela foi brutal, desmedido!

Selene senta-se no banco do carona e não espera que eu respire para me dizer que desejava conhecer uma boate de swing naquela noite. O Rio, como toda metrópole decadente, abriga suas alcovas de devassidão. O swing, que é a prática da troca de casais, se transformou em febre entre os libertinos. Eu, que nunca me neguei à lascívia, aceitei o convite.

— Então vamos logo que hoje estou com a Pombagira! — a afirmação de Selene antecipava uma transfiguração quase literal. Durante a madrugada, eu enfrentaria a Pombagira.

Estamos em 2008, percorrer o Rio nas altas horas noturnas era navegar por uma cidade deserta, escura, os burburinhos de vida se manifestavam em ilhas esparsas e raras. A atmosfera era composta por ares que comungavam selvageria e medo. A Cidade Maravilhosa se tornara sinônimo de uma aventura perigosa e opressora.

A boate escolhida por Selene localizava-se no Centro, perto ao desamparado Campo de Santana, em frente à casa onde nasceu o Barão do Rio Branco.

Ao chegar, atravessamos uma pequena recepção, recebi uma cartela para registrar nosso consumo e a chave de um armário onde guardamos nossos pertences. Subimos uma longa escada e desembocamos num salão espaçoso. Um telão suspenso exibia clipes musicais. Em torno da pista de dança, estendia-se um prolongado sofá onde as pessoas sentadas entreolhavam-se como quem avalia a qualidade das carnes na vitrine de um açougue.

Talvez, tenha sido a bebida a responsável pela transformação. Ao final da noite, eu e ela havíamos, cada um, alcançado cinco doses de vodca com Red Bull.

Selene levanta-se e me puxa pela mão na direção a uma pequena fenda, entramos. Não havia luz, era um complexo de corredores confusos, penumbrosos, um labirinto. Pelo caminho, era possível perceber a presença de casais embolados num nó cego de braços e pernas, entregues ao mais absoluto bacanal.

Ela me viu e me chamou. Estava cercada por um cinturão de homens e mulheres, totalmente nua, possuída pela Pombajira e pela loucura da orgia. Uma serial killer do sexo! Aquela visão me intimidou, me acanhou. Eu, que sempre me considerei um desregrado sem fronteiras, me senti afrontado diante daquela volúpia coletiva. Bastaram poucos segundos para que eu abandonasse a máscara do libertino e me assumisse um pudico.

Como não me movi, ela me apontou e gritou para a turba orgíaca que eu era o seu namorado, foi o que bastou para que a embolada humana começasse a se arrastar em minha direção num alvoroço de mãos e braços formando os tentáculos de uma gigantesca Medusa erótica. Aos trancos e barrancos, driblei o polvo pervertido e resgatei Selene daquele estupro voluntário, ela cedeu a contragosto.

Voltamos para a pista e um funk embalava os corpos, todos tomados por um espírito desregrado. Selene, tal qual uma serpente encantada pela flauta indiana, iniciou uma dança em que se agachava e se empinava, simulando ondulações provocantes. Eu me mantive estático, impassível, apático. O clima devasso não me contagiou. Aborrecida com a minha frieza, ela pediu para ir embora.

Tento explicar a Selene que cada um possui seus limites, mas percebi que eu tentava era justificar para mim mesmo a minha fuga. As novas gerações já nascem com o vírus da depravação inoculado nos genes.

Entro no carro, giro a chave na ignição, piso no acelerador sem engatar a marcha, ouço o grito feroz do motor, ligo o rádio e deixo a música inundar a cabine. Provo a boca da mulata ninfomaníaca que serpenteia ao embalo do som.

O refrão estrangeiro se repetia através dos alto-falantes: “Set me free”.

Uma gargalhada estridente vaza do automóvel, deve ter reverberado como eco na Central do Brasil, era a Pombagira se despedindo. Eu havia sobrevivido! Mas a noite nunca tem fim. Solto as amarras e os pneus ganham o asfalto, meu oceano.

Meu nome? Podem me chamar de Dante.

A despedida

Anoitecia em Copacabana, fim de tarde de céu avermelhado e límpido. O trânsito estava intenso naquele início de dezembro de 1994, eu desfrutava das férias ao lado de Karin, apaixonado. Esperávamos o táxi que a levaria ao aeroporto, ela decidira voltar à velha Europa, primeiro para a Espanha e em seguida para a Inglaterra, de onde ela tinha sido deportada anos antes. Prometia voltar, mas a minha paixão intensa por ela dilacerava qualquer inocente esperança. O táxi aportou, ela embarcou carregando a única mala que levava e eu a acompanhei.

Já escrevi sobre Karin, uma gaúcha bonita ao seu modo, inteligentíssima, que conheci por um anúncio nos classificados do finado Jornal do Brasil, uma mulher que hoje eu poderia classificar como acompanhante de luxo. Morava na rua Tonelero quando a conheci pelo telefone, o nosso primeiro encontro também foi a nossa primeira noite juntos. Talvez, ela tenha gostado de mim, fomos ficando, dormíamos juntos, ela não me cobrava, não me exigia nada e cultivava a minha presença. Os quase três meses que passei ao seu lado, me envolvendo visceralmente com ela, resultou na inevitável paixão febril que me tomou o corpo e a alma.  

Karin tinha uns 25 anos, sofisticada, classuda, um corpo irretocável, cabelos loiros, olhos verdes e um sotaque do Sul ainda forte. Falava inglês fluentemente, fluência que conquistou nos seus anos morando em Londres. A garota foi um sonho, décadas se passaram e a memória dela ainda exala frescor em minha mente.

Ousei, apresentei-a a minha família, levei-a em minha casa e planejava, secretamente, uma vida com ela. Entre nós, havia a Europa e a profunda rejeição de Karim pelo Brasil. Convidou-me para ir com ela e eu, num gesto que me arrependerei até o fim dos meus dias, recusei-me a ir, aleguei que preferia esperá-la e preparar uma estrutura para quando ela retornasse. Nunca retornou, casou-se com um inglês, teve dois filhos e mora no interior de Londres.

Karin uniu em mim o amor romântico e o desejo da carne. Eu agonizava de uma atração abissal por ela. Nossa despedia foi um jantar triste, em um restaurante extinto de Copacabana, que se localizava em frente à Praça Serzedelo Correia. Quando cruzo por ali, não vejo mais a praça, não vejo a rua, não vejo os carros nem os pedestres, só vejo o jazigo de uma parte de mim. Existem pessoas e lugares que se tornam buracos negros da nossa existência.

A paisagem até o antigo aeroporto do Galeão ia se desfazendo em sombras diante dos meus olhos, tudo se desconstruía conforme o automóvel avançava. Eu ia de mãos dadas com ela, em silêncio, como lançado em uma oração inútil perdida entre todas as orações inúteis. Se um dia amei alguma mulher, essa mulher foi Karin, uma garota de programa que amava mais os próprios projetos, a própria ambição e a futilidade de querer ser uma inglesa que jamais será inglesa de fato.

Feito o check-in, ela precisava ir para a área de embarque. Seus olhos verdes, seus cabelos loiros, seu corpo impecável, no fundo eu sabia que aquela seria a última oportunidade para contemplar a sua presença. Um abraço, um beijo amargo na boca e ela começou a caminhar enquanto o abismo se abria entre nós. Antes que desaparecesse, olhou para trás, olhou para mim e sumiu na névoa labiríntica dos desencontros. Cartas, alguns telefonemas, uma ausência que me esmagava. Nunca mais, nunca mais — me gritava o corvo de Edgar Alan Poe.

Nunca mais. Ficou-me a cicatriz, um desses poucos ferimentos capazes de dizimar um libertino. Por sorte, em mim foi um ferimento que sangrou, sangrou de morte, mas fortaleceu a carcaça das minhas emoções. Não demorou para que a minha natureza mundana imperasse sobre o sofrimento poético. Mesmo assim, todas as vezes que atravesso Copacabana, que passo pela rua Tonelero, ouço o corvo me amaldiçoar…

— Nunca mais, nunca mais…

A fera camuflada

A FERA CAMUFLADA

Aos quarenta e cinco anos, ele ganhara a aparência de um homem distinto. Fazia uma década que havia constituído família, esposa e uma filha que amava imensamente. 

Mantinha uma rota rigorosa entre o escritório de advocacia, no Centro da cidade, e sua residência no Largo do Machado. Recusava os constantes convites de colegas e clientes para beber e confraternizar nos animados bares da Praça XV. Foi seguindo uma disciplina austera, mantida por muitas regras e mandamentos, que conseguiu escapar da Fera que o perseguia desde os primórdios da sua adolescência. Preferia nunca negligenciar a vigilância. Tinha medo do Animal e o pressentia espreitando em cada esquina sombria. 

Ao descer do prédio onde trabalhava, na Rua México, firmava os passos em direção ao Metrô. Evitava olhar os painéis de néon porque eles representavam perigo. Luzes noturnas encantavam a Fera.

Não ouvia música, não ingeria bebidas alcoólicas, repudiava conversas informais com mulheres. Na missa dos domingos, agradecia a concessão da sua apática existência. Entretanto, sabia que o Animal o estudava e tramava com cruel paciência, numa tocaia incansável. Mas ele não descuidava, não esquecia da Fera camuflada.

Entrava em casa, abraçava sua mulher, afagava a filha, respirava a atmosfera segura do seu apartamento, orgulhava-se por continuar ludibriando o monstro. Tomava o banho frio de todos os dias, jantava, assistia o noticiário da TV, beijava fraternalmente a esposa, deitava-se e dormia.

Havia noites em que a Fera dominava seus sonhos, manipulava seus pensamentos. Ele acordava suado, possuído por uma incontida ansiedade. Erguia-se, tomava outro banho, sua esposa tentava acalmá-lo, o acariciava, lembrava-lhe que era somente um pesadelo. Por solidariedade, faziam o sexo contaminado pelo mofo do hábito. Sua inquietude aplacava-se, ele adormecia.

Às sete horas da manhã o despertador tocava, mas ele permanecia preguiçoso na cama. Sua companheira apressava-se para preparar o café. Lentamente, ele realizava seu asseio matinal. Depois, sentava-se à mesa, ligava a televisão para saber das primeiras notícias, trocava umas poucas palavras com a mulher, comia seu pão aquecido, refletia entre os goles do café misturado ao leite e saía para o trabalho.

A parte da manhã era o período em que relaxava, não existia a suspeita da Fera, ele não a sentia nas primeiras horas da sua rotina. O animal não gostava do alvorecer.

Um expediente agitado, era o que ele rogava antes de chegar ao escritório. O corre-corre espantava o chacal, o guardava a uma segura distância. Burocracias, protocolos e a adrenalina de um dia produtivo eram a alvenaria que constituíam a sua fortaleza. 

Seu cotidiano cinza eram movimentos de uma sinfonia monótona e monofônica, mantinha entorpecida a Fera que o rondava. Mas a fome engendra o ataque e o instinto trapaceia a razão.

Naquela noite, ao sair do escritório, seu roteiro narcotizante seria corrompido por um vírus letal a qualquer mecanicismo: o imprevisível. 

Marchava reto em direção ao Metrô, concentrando-se na própria respiração, mas o seu silêncio interior foi rachado por uma voz grave e rouca chamando seu nome. Era um senhor que prestava serviços de contínuo no escritório e que o tratava com paternal simpatia. O idoso o agarrou pelo braço, contou que aniversariava e, com um sorriso suplicante, o convidou para se sentarem juntos por alguns minutos num botequim próximo. Ele tentou recusar, mas o senhor insistiu explicando que morava só e não desejava passar em branco aquela data. Contrariado, porém, tocado pela solidão do velho, aceitou o convite. 

Quando deu por si, brindava constrangido aos 65 anos daquele homem. Cada tulipa que era colocada à mesa fazia escorrer pela garganta o chope gelado que rompia, como foice, a teia secular que abafava a sua fala. De repente, o mundo tomou cor como um ressuscitado, as luzes brilharam quase ofuscantes e ele escutou a própria voz. Todo o seu corpo estalava, como se voltasse de uma letargia involuntária. Riu de si mesmo.

Abraçados, deixaram o bar, ele e o velho. Juntos, entraram num táxi e foram até a Praça Mauá. Conduziu o idoso até um sobrado da Rua do Acre, onde o mesmo morava. Num caminhar tortuoso e incerto, prosseguiu a jornada, até subir os degraus de um inferninho que avistou no trajeto.

Música alta, fumaça de cigarro, mulheres seminuas, cheiro de lascívia. 

Uma ruiva bonita se aproximou com as curvas expostas por um minúsculo biquíni. Ela pergunta seu nome, apoia-se em seu corpo, beija sua boca. Ele sente uma fisgada, foi como se afrouxassem, subitamente, um torniquete. O sangue represado voltou a circular por todas as suas veias esclerosadas pelo tédio. Ele a abraça com ânsia, sente uma sede diferente, uma sede ancestral.

Ela o guia a um pequeno quarto, deixa cair o biquíni, ele a beija afoito, necessita da sua saliva. A sede aumenta, os membros se entrelaçam, a carne se funde. Ela se coloca de quatro, submissa, implora que ele a possua. Ele obedece. Uma brasa, que parecia consumi-lo de dentro para fora, faz com que se sinta febril. Transpirava com todos os poros.

Por um grande espelho, preso ao seu lado, ele vê sua imagem. Seus olhos irradiavam uma vibração oca. Não era ele, era a Fera, ela o havia devorado pelas vísceras e o tomado para si novamente. Dele, só restava uma tênue fagulha de consciência. O Animal nunca o rodeou, esteve sempre dentro da trincheira protetora que ergueu ao seu redor. Não havia mais alma, só havia a sede do orgasmo. Ele era a Fera!

Entra em casa, respira a atmosfera morna do seu apartamento. Explica, mentindo, o atraso e o bafo de álcool à esposa: foi pego de surpresa pelo aniversário do chefe. Afaga a filha, toma um banho morno (como há muito tempo não fazia) e janta assistindo a TV. Recolhe-se ao quarto, beija fraternalmente a companheira, deita-se, lembra da ruiva e dissolve-se no prazer de sentir a gradual falência da mente. Ri de si mesmo. Adormece e não sonha.

A catraca

A CATRACA

Hoje, só sobrevivem do tal lupanar o trauma de ex-virgens acuados e as reminiscências dementes de idosos nostálgicos da distante e desbotada virilidade.

Aconteceu no meio de uma tarde ensolarada. Bateram à minha porta e avisaram que havia chegado a hora. Como se tudo já estivesse combinado, o pai empilhou uns tostões na minha mão, me colocaram num carro e parti para o desconhecido.

Quem visse o meu semblante tenso, poderia supor que me conduziam à força para o DOI-CODI, nunca imaginariam que aquela viagem tinha como destino o crepúsculo da minha insossa inocência pelo alvorecer temperado da luxúria. O trajeto, por caminhos tortuosos, embalou na subida de uma ladeira no Rio Comprido, mergulhou num túnel esquecido e desembocou na enigmática Rua Alice.

Como se não bastasse o pânico do novilho ameaçado pelo abate, incomodava-me a ideia de um randevu localizado numa via batizada com o mesmo nome da minha bisavó. Para um garoto recém-catequizado, a sugestão do pecado ganhava sons incestuosos e desestimulantes. Não demorou para que estacionássemos em frente àquela fastuosa mansão cravada às margens do nobre bairro de Laranjeiras. Que vista! Rodeada pela paz da paisagem bucólica, erguia-se a rosácea e imponente construção, cercada por um muro que lhe dava o aspecto de fortaleza. Se me afirmassem que era um convento, eu acreditaria. No centro da murada, um arco apresentava o portão destrancado, acesso que se abria para os mistérios da carne. Ignorando as minhas pernas trêmulas, a boca seca, a voz afogada, meus companheiros me empurraram para o interior da arena das leoas. Entrei em cena como um personagem inútil, jogado de última hora nas páginas do Decamerão.

Recordo, com certo pudor, que as minhas primeiras manifestações libidinosas ocorreram quando eu assistia ao seriado “Jeannie é um gênio”. A imagem erotizada daquela odalisca loira piscando os olhos me causava a precoce mágica incompreendida e constrangedora da ereção. Talvez, Barbara Eden tenha sido o símbolo sexual de uma geração de ingênuos.

Por dentro, o casarão de Laranjeiras lembrava um cabaré rústico de filmes do velho oeste americano. O piso de madeira, mesas espalhadas por um amplo salão de grandes janelas escancaradas que revelavam a curiosidade de árvores indiscretas. Sentamos e nos serviram uma cerveja. A alguns metros de nós, uma bela balzaquiana, de pele clara e longos cabelos lisos, fumava abstraída do ambiente. Um dos meus camaradas mais desembaraçados a selecionou como protagonista da minha temida estreia. Nunca me esqueci do nome da mulher: Selma.

Ela se aproximou, perguntou o meu nome e me estendeu a mão… num ato de submissão, não resisti. Caminhamos juntos até a beira de uma longa escadaria que levava aos aposentos superiores, Selma me soltou, seguiu por uma brecha lateral e apontou o local por onde eu deveria subir. Estaquei perplexo diante da visão: uma catraca, semelhante às roletas que reinavam nos ônibus antigos.

Com a mente perturbada por aquele momento crucial, ao qual me lançavam sem manual de instruções, me apaguei a imagem da catraca. Fiquei fascinado. Como poderia um puteiro alcançar tal inteligência? Freud sofreria orgasmos antes do sexo ao perceber que a catraca assumia o significado mais perfeito da prostituição. Como são cruéis as traduções exatas do universo. Um sujeito cruzou meus olhos e atravessou insensível os braços abertos da roleta, eles estalaram e imediatamente o contador em sua base fez girar os números que se assemelhavam a uma carreira de dominós caindo uns sobre os outros. Não havia romance, não transpirava amor, apenas a fria e exata sequência matemática. Aquele vislumbre mecânico aquietou meus sentidos e como a Selma me aguardava no topo da escada, entreguei-me ao abraço gélido da catraca. Fui mais um dígito intrépido acrescentado ao milhar. Subimos à alcova…

Um imenso quarto de teto alto, uma velha cama de casal, uma pia com sabão de coco e papel higiênico formavam o kit libertino. Selma perguntou se era a minha primeira vez, não sei se ela compreendeu a resposta, pois eu só conseguia balbuciar. Ela tirou a roupa e imitei a coreografia. Ela se deitou e eu me joguei ao seu lado olhando para o teto, que parecia estar a quilômetros de distância. Ela toca no meu segredo, na profunda intimidade do meu ser. Sinto uma forte descarga elétrica percorrer o corpo, um torpor de todas as sensações. Acabou. Não havia mais nada a fazer, a não ser pagar.

Ao sair, não precisei passar pela catraca. Dígitos descartados não contam. Os amigos perguntavam como tinha sido a experiência, continuei balbuciando. Não perdi a virgindade naquele dia, mas descobri a ejaculação precoce. Estive na Casa Rosa e a catraca não me deixa mentir. Jurei sobre o sêmen que escreveria este capítulo. A catraca é o mundo.

Brisa

BRISA

A Help, saudoso e difamado inferninho, um épico de Copacabana. Cravada na Av. Atlântica, a boate confrontava orgulhosa o oceano, sem esconder a sua vocação libertina. Templo preferido das garotas de programa e dos gringos peregrinando em busca de aventuras sexuais.

Em muitas ocasiões, me serviu como refúgio, abrigando meus solos pelas madrugadas. Por dentro, uma festa psicodélica, guardava as dimensões de um coliseu, com paredes revestidas de lantejoulas azuis e a pista iluminada por estroboscópios refletidos em enormes globos espelhados. Sobreviveu à virada para o século 21 como um cenário imutável dos anos 80. Hoje, demolida, está perto de virar o Museu da Imagem e do Som. Ali jaz a luxúria, fossilizada e morna sob o mausoléu de concreto.

Foi entre amazonas, caçadores e forasteiros que ela despontou da arena erótica e me pediu uma cerveja. Morena e bonita, não neguei a gentileza. Bebemos e conversamos por algum tempo, até que a jovem me disse que não queria trabalhar naquela noite e me convidou para sentar à beira da praia e esperar o Sol nascer. Estranhei o chamado, mas aceitei. Acomodados na areia, me ocorreu que eu não havia perguntado o nome da mulher.

“Brisa” — ela me responde. Imaginando que fosse apelido de guerra, perguntei pelo nome real.

“É Brisa” — confirma mostrando a carteira de identidade com registro na Bahia.

Que força milagrosa carrega a natureza. Cultiva flores em desertos e sopra brisas poéticas na penumbra árida dos porões humanos. Consegue inspirar uma prostituta a abdicar da grana, apenas para assistir os primeiros raios do dia ao lado de um homem qualquer. Então, com um beijo delicado, a alvorada banhou-se no mar.

Dante Versus Sade

DANTE VERSUS SADE

Dante é o alter ego do autor deste blog, Sade é o ícone de uma pornografia que camuflava o ideário político e libertário do escritor. O que poderia haver em comum entre dois autores separados pelas areias do tempo?

Sade nasceu no século XVIII, presenciou o alvorecer do século XIX e integrou fatos que mudaram o rumo da história da França e do Mundo: a queda da Bastilha, a Revolução Francesa e a ascensão de Napoleão Bonaparte. Nesse ínterim, ele escreveu suas obras. Repletas de pornografia, perversões e crimes que servem para contrabandear uma filosofia insubordinada. A literatura de Sade marcaria espaço além de sua época.

Dante nasce no século XX e observa as primeiras luzes do século XXI. Vive a Revolução digital, o surgimento estrondoso da Internet, testemunha o atentado terrorista que abalou o coração da maior potência do Ocidente (EUA) e convive com as incertezas climáticas de um planeta que começa a se ressentir da presença do homem. E é pela Internet que o nosso autor descobre que a libertinagem idolatrada por Sade continua sendo uma face incendiária da humanidade.

Navegando pelo universo virtual, Dante descobre os fóruns de sexo e decide conhecer de perto a prostituição. A voz da narrativa se faz através do protagonista, é dele que surgem os relatos verídicos dessa viagem libertina.

Dois autores, dois mundos. Em comum, a presença da pornografia em suas literaturas, a afirmação do erótico. O vulgar ornamentado com joias de valor; o libertino como um herói que desafia os costumes.

Sade foi um valente indomável que jamais desistiu de suas letras, mesmo encarcerado a maior parte da vida. Talvez, o Dante também traga em si uma dose de heroísmo: torna-se fanático por uma liberdade ilusória que o mantém acorrentado aos próprios instintos. Ambos corrompem a ideia que se espera de um cidadão convencional e nos fazem desconfiar que, na verdade, todos os heróis legítimos são subversivos.